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Licença menstrual "seria, no mínimo, a humanização das relações laborais"

Fátima Messias, coordenadora da Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), é a convidada desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

Licença menstrual "seria, no mínimo, a humanização das relações laborais"
Notícias ao Minuto

26/09/22 por Daniela Filipe

País Licença menstrual

A desigualdade associada à menstruação viu-se no centro do debate do Orçamento de Estado para 2022 (OE2022), mediante a aprovação de propostas do partido Livre tanto quanto à promoção de um estudo sobre o impacto da menstruação no trabalho e na qualidade de vida, como à alteração ao Código do IVA, que clarificou que todos os produtos de higiene menstrual passariam a ter uma taxa reduzida de 6%.

Por seu turno, a iniciativa do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), que determinava a criação de uma licença menstrual de três dias, – à semelhança da medida aprovada em Espanha –, foi rejeitada em plenário, motivando uma troca de acusações acesas entre a deputada Inês Sousa Real e o partido Chega.

Contudo, no final dos anos 70, a licença menstrual era uma realidade no seio das empresas portuguesas, levada a cabo através de uma dispensa de até dois dias, destinada às mulheres com dores menstruais incapacitantes. Acontece que, em 2003, a introdução do Código do Trabalho e as suas consequentes revisões determinaram que a medida era 'ilegal', deixando, por isso, de ser adotada pelo patronado.

Em conversa com o Notícias ao Minuto, Fátima Messias, coordenadora da Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), fez uma reflexão sobre as razões por detrás do declínio das reivindicações sobre os direitos das mulheres quanto a esta matéria, considerando que o seu retorno "seria, no mínimo, uma humanização das relações de trabalho".

As entidades patronais tendem a considerar que toda e qualquer tipo de ausência ao trabalho, mesmo licenças de maternidade, de paternidade, e outras, são absentismo

As licenças menstruais não são propriamente algo novo, tendo surgido em 1980, no nosso país. Como é que funcionavam e em que setores foram aplicadas, de uma maneira geral?

Esta matéria apareceu na contratação coletiva nos finais dos anos 70, e apareceu enquanto dispensas. Ou seja, não era uma falta justificada, era uma dispensa, – geralmente aparecia nesse capítulo das convenções coletivas de trabalho –, com direito a um dia ou dois por mês, em alguns casos um deles remunerado, e o outro justificado.

Nasceu na contratação coletiva por reivindicação das próprias trabalhadoras. Em concreto, os setores que temos conhecimento são os da hotelaria e restauração, e também alguns ramos da indústria, nomeadamente das indústrias elétricas e da metalurgia, que tinham um elevado número de mulheres.

Por que é que foram abolidas e qual o impacto dessa restrição?

Com a introdução do Código do Trabalho, em 2003, e a "Imperatividade do regime de faltas", estas dispensas, apesar de não estarem no capítulo das faltas, começaram a ser questionadas sobre a sua legalidade, [assim como] se eram consideradas medidas de ação positiva. Essa discussão fez com que, ao longo das várias revisões, fosse encarado como imperativo o tipo de ausências.

As dispensas em si, como também eram ausências ao trabalho, justificadas e, em alguns casos, retribuídas, acabaram por ser afastadas das convenções coletivas, por serem consideradas não consonantes com a lei que, entretanto, ficou a vigorar. Ou seja, desde o Código do Trabalho, estas matérias foram ‘varridas’ da contratação coletiva. Desde logo, o patronato deixou de as aceitar.

Recentemente, o PAN propôs a criação de uma licença menstrual de “até três dias”, mas a proposta foi chumbada no Parlamento. Quais teriam de ser os requisitos para a sua aprovação, de modo a proteger tanto as empresas, como as trabalhadoras?

É um problema que continua a existir, ou seja, há mulheres que sofrem, e muito, durante os seus períodos menstruais, e isso tem a ver com outros problemas de saúde associados que resultam nesses sintomas. [No entanto,] deixou de ser uma reivindicação, entre tantas que são essenciais. O mais importante hoje é o vínculo, o salário, o horário, e a categoria profissional, e esta matéria não aparece à cabeça como reivindicação, daí que os sindicatos também não as tenham vindo a apresentar na mesa das negociações.

Achamos que, qualquer que fosse a lei ou a regulamentação coletiva, há que acautelar que este tipo de ausência seja justificada, e seja remunerada pelas empresas porque, no fim de contas, o trabalho é para as empresas – no caso do setor privado, se for no setor público é diferente –, e que não acarrete qualquer tipo de discriminação para as trabalhadoras.

Isto porquê? Com o passar dos anos, passou a haver uma menor sensibilidade às ausências justificadas. Ou seja, as entidades patronais tendem a considerar que toda e qualquer tipo de ausência ao trabalho, mesmo licenças de maternidade, de paternidade, e outras, são absentismo; não para efeitos de penalização direta no salário, mas para efeitos de menos atribuição de prémios, ou maiores dificuldades na evolução profissional. Qualquer tipo de ausência é penalizada.

Portanto, teria de ser sempre acautelado que este tipo de dispensa não acarreta nenhum prejuízo, nem de ordem remuneratória, nem de evolução de carreira ou qualquer garantia das trabalhadoras. Se não vivêssemos no país em que vivemos, se não tivéssemos as empresas e a mentalidade patronal que temos, tal não seria necessário; era natural que assim fosse. Mas, no nosso país, nada disto é natural.

[Mulheres] têm passado por isto sofrendo e trabalhando. Metendo dias de férias, em limite, e prejudicando-se a si próprias

Por que é que as mulheres deixaram de se manifestar, tendo em conta que, atualmente, há cada vez mais informação sobre doenças como a endometriose, e que os períodos dolorosos não são normais?

Não se manifestam em clamor coletivo por múltiplas razões. Muitas dessas mulheres que sofrem [estão], uma boa parte delas, em vínculo precário, e são, na sua maioria, jovens. O facto de ter um contrato a termo, um trabalho temporário, ou estar em regime de falso recibo verde, [faz com que] levantar a necessidade de se ausentar do trabalho, para quem pouco mais tem do que o salário mínimo nacional e, às vezes, subsídio de refeição miserável, sem certeza de que o seu contrato será renovado, [torne] a voz muito mais baixa.

Não vai reclamar individualmente, é um caso numa secção, está isolada. Esse isolamento, essa estratificação do exercício desse direito, logo à partida faz com que não haja reivindicação comum, porque é só para uma, ou para duas. O vínculo laboral precário inibe bastante o exercício de alguns direitos que já temos hoje, quanto mais outros que não temos, ainda, na lei.

As difíceis e desumanizadas condições de trabalho que hoje temos, e o facto de ser uma medida que abrangeria um número reduzido, porque não sabemos a dimensão do problema, [faz com que não seja] uma reivindicação que se generalize para uma grande camada de mulheres, e elas estão individualizadas. Isso dificulta a junção da reivindicação. É possível fazê-lo, por exemplo, através das redes sociais. Aliás, recentemente, foi assim que se alargou a licença de ausência para descendentes. Mas, no local de trabalho, são poucas e, de certa forma, têm passado por isto sofrendo e trabalhando. Metendo dias de férias, em limite, e prejudicando-se a si próprias.

É uma questão de género, porque são elas quem mais se ausenta, mas também é uma questão de como as empresas encaram os direitos do trabalho. Se os encararem como uma obrigação de trabalhar, ponto final, então, a partir dali, todas as ausências acabam por ser penalizadas indiretamente

Houve uma altura, na contratação coletiva, em que as trabalhadoras eram mais ativas na construção dos seus direitos. Mas, hoje, muitos desses direitos que foram construídos acabam por ser violados, mesmo estando na contratação coletiva e na legislação, por muitas discriminações indiretas que as empresas passaram a fazer, e que antes não faziam.

Há muitos anos, a base da retribuição era o salário base. Hoje, uma parte da retribuição mensal que, às vezes, não é pequena, é atribuída através de prémios variáveis. Esses chamados “prémios” não são mais do que um sinal do absentismo permanente. Ora, esse absentismo permanente choca de frente com o exercício de direitos individuais e coletivos, e é por aí que, muitas vezes, aparecem as discriminações contra as mulheres. Porque são as mulheres que mais se ausentam para assistência a filhos ou a dependentes, são as mulheres que acompanham as crianças mais do que os pais, são as mulheres que têm a licença de maternidade. Os homens também e, à medida que vão ganhando maiores direitos na área da parentalidade, vão sofrendo maiores discriminações nos prémios.

Ou seja, é uma questão de género, porque são elas quem mais se ausenta, mas também é uma questão de como as empresas encaram os direitos do trabalho. Se os encararem como uma obrigação de trabalhar, ponto final, então, a partir dali, todas as ausências acabam por ser penalizadas indiretamente por via das retribuições variáveis, que ou deixam de ser atribuídas, ou são reduzidas.

Portanto, tudo isto acaba por ter a ver com a mentalidade capitalista das empresas o que, em torno, acaba por deteriorar os direitos dos trabalhadores.

Sem dúvida. Em relação a tudo, e esta matéria não é exceção.

E as mulheres acabam por ser as mais prejudicadas.

São, ainda são. As mais jovens são as mais precárias. As mulheres ganham, em média, menos do que os homens, trabalham mais horas entre o trabalho profissional e o trabalho familiar, são as que utilizam mais os transportes públicos, demoram mais tempo [nas deslocações entre o emprego e a residência], ganham menos pensões de reforma. No caso de uma família com dois elementos, para descontar menos no orçamento familiar, a tendência é que [sejam elas a faltar, por receberem menos]. Em cima delas, vai parar tudo.

E são quem está nas áreas sociais, da educação, e da saúde, com salários mais baixos. Portanto, temos muito caminho para andar, e é por este caminho todo que o recuperar de uma licença que já existiu parece mais longínquo, quando comparado com aquilo que é prioritário.

O prioritário é um bom salário, um bom horário e, no entanto, as mulheres cada vez mais trabalham por turnos, aos fins de semana, nos feriados, à noite, e tudo isto entra em choque. No meio de toda a falta de qualidade de emprego que hoje temos, ficam mais distantes outras reivindicações, que não são tão essenciais. Pensamos que é também por isso que esta matéria não aparece à cabeça.

Nessa linha, qual seria o impacto para as empresas e as vantagens para os trabalhadores perante a aplicação desta medida?

Quando falamos do valor do trabalho, temos de ter em conta que quem o desempenha são pessoas. Não somos máquinas, nem o queremos ser. Mesmo as máquinas também avariam. Temos necessidade de ausências ao trabalho, por motivos de saúde, e todos os motivos que a lei já prevê.

Portanto, os impactos para a empresa são aqueles que qualquer empresa tem de contar, [uma vez] que tem homens e mulheres – pessoas – a trabalhar para ela, que têm vicissitudes na vida, na saúde, nos seus familiares, e têm necessidade de se ausentar. Isso não acarreta menor produtividade para as empresas, porque se houver um bom ambiente de trabalho, os trabalhadores e as trabalhadoras sabem qual é o seu trabalho e compensam-no.

[Assim], não tem efeitos para as empresas, porque as ausências justificadas são ausências previstas na lei, na contratação coletiva, e as empresas vivem com isso. É com estas disponibilidades e indisponibilidades temporárias que sempre terão de conviver, porque somos pessoas sujeitas às vicissitudes da nossa vida, que não é só trabalho.

[As vantagens seriam para] um número de mulheres, que supomos que não seja muito significativo. Mas, para aquelas mulheres que têm muita dificuldade em conciliar o seu estado de saúde com o desempenho das suas tarefas profissionais, seria, no mínimo, uma humanização das relações de trabalho.

"Feminismo bacoco"? Temos de considerar quem defende a igualdade

Como é que encara as críticas de que a proposta do PAN não passava de “um golpe mediático”, baseado em “feminismo bacoco”, que representa “mais um fator de discriminação”?

Não acompanhamos esse tipo de considerações, até porque, geralmente, essas considerações são rótulos que colam às mulheres, em tudo quanto são avanços civilizacionais. Temos de considerar que quem defende a igualdade, e parece que todos os partidos defendem. Ninguém é contra a igualdade, então a igualdade na vida e no trabalho tem de ter reflexos desta natureza. Não pode haver preconceitos nem estereótipos desse género, de forma alguma.

Só seria [um fator de discriminação] se a aproveitassem com esse objetivo. Por isso é que consideramos que tem de ter sempre essa retaguarda de proteção. E temos de ter entidades que fiscalizem as violações da lei, que é um outro problema. Há leis boas que não são efetivadas e não há entidade que fiscalize nem sancione as entidades patronais, ou os institutos públicos e do Estado, que não as praticam. Não basta legislar; há que fazer aplicar sem discriminação e com efetividade.

À semelhança de Espanha, que aprovou, em maio, um projeto de lei que prevê uma licença menstrual para as mulheres que sofrem com dores menstruais incapacitantes, poderá Portugal ter, em breve, novas propostas nesse sentido?

Admito que sim. As propostas estão dependentes dos partidos as apresentarem na Assembleia na República, e de serem aprovadas, ou não. Mas é importante ouvir o sentimento das trabalhadoras. Temos esta perceção, em termos dos sindicatos, que qualquer lei ganha, até na sua aceitação e na sua adesão na sociedade, se for uma lei que expresse um sentimento de camadas da população, porque vai ao encontro do sentimento e das necessidades.

É também importante ouvir as mulheres porque, às vezes, há incompreensões sobre essa temática [entre as mulheres]. Mas quem sofre com os problemas com certeza que tem uma opinião, e essa opinião é, de facto, prioritária. Temos de atender à defesa da saúde no trabalho, o objetivo é esse. Senão, corremos o risco de termos leis a ser aprovadas que não têm concretização no terreno, por motivos vários.

Não é, de facto, uma matéria que sentimos nos locais de trabalho como uma reivindicação. Mesmo antes de se falar da lei em Espanha, não era matéria que surgisse. Mas admitimos que possa estar em falta, tendo em conta que o problema subsiste. Ou seja, continua a haver grande sofrimento nessas alturas do mês para muitas mulheres e, se assim é, se defendemos a saúde no trabalho, acho que temos de evoluir para essa e outras matérias, acautelando a efetividade da lei para que não traga outros prejuízos às trabalhadoras.

Considera que, tal como a semana de quatro dias, que será introduzida em Portugal através de um projeto piloto, será necessário um estudo no que toca a aplicação da licença menstrual?

Neste caso, não me parece que seja necessário. Não é uma situação tão geral. Quando falamos de período normal de trabalho semanal, é uma situação que se prevê que seja generalizada. Mas, aqui, não me parece que seja esse [o caso]. Deve é ter uma base de suporte, uma fundamentação sólida, para poder entrar em vigor. Se for bem fundamentada, encontrará espaço.

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