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Escrutínio? "É muito mais embaraçoso apanhar alguém que já está no cargo"

Rui Tavares, deputado único e dirigente do Livre, é o convidado desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

Escrutínio? "É muito mais embaraçoso apanhar alguém que já está no cargo"
Notícias ao Minuto

16/01/23 por Ema Gil Pires

Política Livre

As últimas semanas têm sido de elevada instabilidade governativa, marcada pelas sucessivas demissões registadas no Executivo liderado por António Costa. A situação tem motivado críticas por parte dos vários partidos com assento parlamentar - tendo, inclusive, levado a Iniciativa Liberal a avançar com uma moção de censura, entretanto rejeitada pela maioria dos deputados.

Um dos partidos a contribuir para o chumbo dessa iniciativa parlamentar foi o Livre, por via do seu dirigente e deputado único. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Rui Tavares salientou, ainda assim, que o “Governo não pode mesmo culpar mais ninguém” pela atual crise política - reforçando, assim, a necessidade de haver um escrutínio prévio da Assembleia da República no processo de nomeação de governantes, tal como tem vindo a defender publicamente.

Apesar das falhas que identifica na atuação do Governo, o deputado único do Livre considera que, por outro lado, os partidos da Direita têm sido incapazes de dar esclarecimentos sobre que “alternativa de Governo” têm para oferecer ao país e sobre se a mesma envolveria, ou não, a colaboração da “extrema-direita”.

Da educação à ecologia, passando pelo potencial de aplicação do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) em vários setores da sociedade, o líder do partido que se assume como de “Esquerda”, “ecologista, europeísta” e defensor “das causas sociais democráticas” defende que os governantes devem estar empenhados em tomar medidas capazes de contribuir para a criação de uma “economia mais produtiva, com mais valor acrescentado, uma economia do conhecimento e da descarbonização, que pague bons salários e que atraia pessoas”.

Vamos ter, em Portugal, três problemas que podem influenciar essa questão da crise de representação democrática

As previsões apontam para que 2023 seja um ano desafiante, marcado por questões como a inflação, a guerra na Ucrânia e a continuação da recuperação pós-pandemia. Na perspetiva do Livre, quais devem ser as principais preocupações do Governo para este ano que acaba de ter início?

Juntava a essas preocupações todas, que são as que estão agora na ribalta, uma outra, que tem a ver com a crise de representação democrática e das instituições do Estado de Direito, e com as ameaças ao Estado de Direito e à democracia. Apesar de estarem em pano de fundo, a verdade é que, em 2023, elas podem ser mais sérias do que aquilo que pensamos.

De momento, está toda a gente atenta à inflação, mas o seu valor pode, este ano, descer substancialmente. A situação da guerra, por sua vez, depende de muitos fatores, mas a verdade é que a Europa já conseguiu divergir uma boa parte dos seus fornecimentos de gás e de combustíveis fósseis da Rússia e, portanto, os impactos da mesma sobre a economia europeia já começam a ser geridos. Mas a verdade é que, além disso, vamos ter, em Portugal, três problemas que podem influenciar essa questão da crise de representação democrática.

Que problemas são esses em concreto?

Um destes problemas, que já estamos a viver, está relacionado com a maioria absoluta e com as dificuldades em construir uma maioria absoluta que seja aberta à sociedade civil e facilmente responsabilizável. O segundo problema diz respeito ao PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) - se é executado, se é executado com transparência e de maneira a que as pessoas vejam que o país está a ir na direção certa. Se não for assim, o sentimento de frustração pode ser bastante grande, e com razão. 

Em Portugal, nós vimos já um episódio desta natureza, que foi revelado por um consórcio de jornalistas de investigação, com a ajuda de polícias íntegros que ajudaram a revelar o que se passava dentro dos fóruns policiais

E, em terceiro lugar, o tipo de situações que nós já vimos em países como o Brasil, mas em que facilmente percebemos que não era apenas uma realidade apenas brasileira, e em que certas fragilidades são exploradas por alguns atores políticos. Como aconteceu também nos Estados Unidos e, tal como na Alemanha, houve uma conspiração contra o Estado de Direito, que foi há pouco tempo identificada e que levou a prisões. Em Portugal, nós vimos já um episódio desta natureza, que foi revelado por um consórcio de jornalistas de investigação, com a ajuda de polícias íntegros que ajudaram a revelar o que se passava dentro dos fóruns policiais. A linguagem é a mesma: contra os políticos, a falar-se de assassinos profissionais, de comprar armas e munições. Podemos olhar para aquilo e dizer que é apenas da boca para fora e que não tem importância. Mas os outros países fizeram o mesmo e agora vemos até onde chegaram.

Que iniciativas parlamentares o Livre tem já preparadas com vista, precisamente, a motivar o debate público e a ação do Governo para fazer face a estas questões?

Em termos de ação parlamentar, nós continuamos a acompanhar estes casos divulgados através da investigação do referido consórcio de jornalistas, sobre as redes internas de polícias. Não estamos muito descansados com o facto de isto estar a ser enquadrado apenas como uma inspeção, levada a cabo pela Inspeção-Geral da Administração Interna, precisamente porque se os polícias denunciaram e procuraram os jornalistas, é porque não sentiram confiança nos mecanismos internos para fazer face a esta ameaça. Nesse caso, o que temos feito é usar o Parlamento como forma de dizer - já o fizemos em declarações políticas e ontem fi-lo diretamente ao primeiro-ministro - que isto pode não estar a ser levado suficientemente a sério, que gostaríamos que fosse e que queremos acreditar que seja, mas que não ficamos de consciência tranquila ao manter as dúvidas só para nós. É preciso que as pessoas saibam que há quem não esteja a achar isto suficiente e que há quem já tenha avisado o primeiro-ministro de que o assunto pode não estar a ser levado suficientemente a sério. 

Relativamente à outra questão, tínhamos apresentado uma outra proposta, que já tinha sido entregue antes desta crise no Governo, que é a proposta de fazer audições prévias, no Parlamento, aos governantes. Claro que podemos debater se as mesmas devem ser feitas apenas a ministros e ministras, ou se devem incluir também as secretarias de Estado, mas a verdade é que isso é algo que acontece noutros países e, também, ao nível da União Europeia. E até acontece em Portugal, nos Açores, ao nível de presidentes de empresas públicas, dando um maior escrutínio e maiores possibilidades ao público de seguir o questionamento dos ministros. Não quer dizer que tenha sido uma coisa pensada exclusivamente para o tipo de problemas que vimos nas últimas semanas, de casos judiciais, de indemnizações que não foram reveladas, mas também serve para fazer um escrutínio de um ponto de vista mais programático.

Audições aos governantes? Vejo com alguma preocupação o facto de que nem PS, nem PSD parecem querer comprometer-se com a ideia

Que mais-valias podem advir, então, da realização de audições dessa natureza aos governantes?

O que acontece no Parlamento Europeu, com os comissários, é que às vezes identificam-se problemas de facto - a nossa comissária Elisa Ferreira, por exemplo, decidiu vender ações que tinha de uma empresa, depois dessa audição prévia no Parlamento Europeu. Mas, muitas vezes, fala-se essencialmente sobre o trabalho que há a fazer. Isto é positivo e vejo com alguma preocupação o facto de que nem PS, nem PSD parecem querer comprometer-se com a ideia e colocam muitas objeções que às vezes são especiosas - dizem que isto só acontece nos regimes parlamentares, ou, então, só nos regimes presidenciais. Não é nem em uns, nem em outros, mas, sim, nos países que têm a maturidade democrática suficiente e a vontade política, por parte dos governantes, para que isso aconteça. 

O primeiro-ministro, António Costa, disse, no debate parlamentar de quarta-feira [11 de janeiro], discordar em grande medida da proposta apresentada pelo Livre, que previa esse tal escrutínio prévio da Assembleia da República no processo de nomeação de governantes. Como vê essa posição do chefe do Executivo, na sequência dos vários casos que têm surgido devido, precisamente, ao currículo passado dos governantes?

Há uma certa evolução porque, na verdade, admitiu - até porque não poderia fazer de outra maneira, visto que ele teve uma proposta semelhante, em 2019, no programa do Governo - que haja esta audiência prévia no âmbito da discussão do programa do Executivo. A questão aqui é: por analogia, se os ministros são todos audicionados antes do programa do Governo passar na Assembleia da República, então quando, no meio do mandato, há um ministro que muda, então também deveria, entre a nomeação e a sua confirmação, ser audicionado. Mas, evidentemente, a vontade não é grande, do ponto de vista do PS, precisamente pelas piores razões, que é perceberem que, se vem um nomeado que faz uma audição fraca, ou a quem são identificados problemas, isso pode ser embaraçoso. Agora, o que eles deveriam pensar é que, para eles e para o país, é muito mais embaraçoso apanhar, dois ou três meses depois, alguém que já está no cargo e que não era capaz de desempenhá-lo. 

O PSD está a pensar que um dia em que esteja no Governo, não quer os seus ministros a passarem por isso

E como vê, de forma mais concreta, o posicionamento do PSD face a esta proposta?

Vejo também com bastante preocupação o silêncio do PSD acerca disto. Não sei se o partido está um pouco naquela posição em que são colocadas as pessoas que gostam que os ricos paguem poucos impostos porque têm a esperança de, um dia, serem ricos e, assim, também pagarem poucos impostos. O PSD está a pensar que um dia em que esteja no Governo, não quer os seus ministros a passarem por isso. Vejo isso, inclusive, com algum espanto, em pessoas que são eurodeputadas, como o Nuno Melo e o Paulo Rangel. Eles próprios beneficiam da possibilidade de fazer isto aos comissários europeus, cujo poder é, muitas vezes, maior do que os nossos ministros. Mas, nos nossos ministros, podem não querer fazê-lo. Há, portanto, um conservadorismo da classe política em relação a isso, que é, às vezes, até acompanhado por alguma imprensa parlamentar ou que segue política, e que está habituada a fazer as coisas de certa forma e, por isso, não quer mudar. 

Por outro lado, eu vejo que a sociedade civil e muitos comentadores atentos à causa pública estão a favor desta ideia - exatamente nesta forma, ou podendo debater-se se é uma audição com possibilidade de veto ou sem veto. Desde Luís Marques Mendes, Alexandra Leitão, Pacheco Pereira, Daniel Oliveira e José Eduardo Martins. Estas são apenas algumas das pessoas, dos vários partidos, a dizerem que são a favor da proposta. Ainda não houve nenhuma empresa de sondagens a perguntar às pessoas o que acham, mas acho que essa seria uma boa ideia, porque esta revisão constitucional está a ser feita sem nenhum debate público e nós devíamos, efetivamente, sair do Parlamento, para procurar ouvir as pessoas. Creio que seria um avanço de maturidade democrática para o país. A medida não se destina a resolver, em concreto, estes problemas que nós temos visto nos últimos tempos, mas pode ter um efeito colateral nesse sentido: ao evitá-los, ou então ao permitir saber se a pessoa que foi a essa audição foi questionada sobre determinados temas de incompatibilidades e de indemnizações, de acumulações de cargos, de experiência na gestão de empresas públicas ou privadas. Assim não ficaríamos neste vazio, de agora não saber se a culpa é de quem não disse ou de quem não perguntou, em que os ministros dizem que não sabiam e nós não sabermos se sabiam ou não. 

O Livre foi um dos partidos que votou contra a moção de censura apresentada recentemente pela Iniciativa Liberal, na sequência desta última vaga de demissões no Governo, ainda que acuse o PS de ser o grande culpado por toda esta situação de crise política. O que é que se exigia de diferente na atuação do Governo nesta altura?

Esta crise tem uma natureza singular e rara, porque o Governo não pode mesmo culpar mais ninguém. Nem a situação internacional, nem os jornalistas, nem a oposição. Ninguém. O facto de o Governo, e o primeiro-ministro em particular, que demonstra sete anos no cargo, não ter criado, até agora, metodologias que lhe permitissem identificar estes problemas, é grave. E o problema não é o Governo não ter a capacidade, antes de nomear uma  pessoa, de vasculhar a sua vida, as suas contas ou os seus processos judiciais, e ter de passar a dispor desse direito. O Governo não o tem e ainda bem que não o tem. A questão é se o Governo faz as perguntas certas quando convida as pessoas. Porque, se as faz e se a pessoa convidada não responde com verdade, aí a culpa política não é do Governo, mas sim da pessoa que não respondeu com verdade.

O Governo tem de, por um lado, mudar o que há a mudar em relação a estes casos em concreto, mas acima de tudo tem de deixar de falar da maioria absoluta. E tem de deixar de usar a maioria absoluta como uma espécie de argumento para tudo - que, normalmente, se destina a convencer as pessoas de uma coisa que elas sabem que não é verdade, isto é, de que o PS teve uma maioria absoluta porque os eleitores confiam na maneira de governar do PS. Não é esse o caso. O PS teve uma maioria absoluta porque havia uma solução anterior que colapsou - e aí sim, não colapsou só por culpa do PS nem do Governo, porque o PCP e o BE também a deixaram colapsar. Mas a vontade do eleitorado, em 2019, para uma legislatura de quatro anos, era continuar com um Governo de ‘Geringonça’, mas com uma ‘Geringonça’ mais atualizada. Todos os partidos de Esquerda aumentaram a sua votação em 2019. Em 2022 já não foi assim, porque essa solução colapsou e as pessoas foram para a segunda melhor escolha, que passava pela maioria absoluta do PS. 

O eleitorado não quis ir para essa situação de incerteza nas últimas eleições

No âmbito dessa mesma moção de censura, que o Livre classificou de “inconsequente”, o partido destacou aquilo que considera ser uma falta de “alternativa governativa”. O que o leva a sustentar tal observação?

A Direita política em Portugal, tanto a Direita como a Extrema-Direita, não conseguem esclarecer as pessoas acerca da sua resposta a uma pergunta muito simples: que alternativa de Governo é que apresentam? É uma alternativa de Governo com ou sem a Extrema-Direita? Esta pergunta é fundamental e não podemos culpar o eleitorado por continuar a fazer esta pergunta e a resposta nunca ser clara. A culpa é de quem não responde claramente. O eleitorado não quis ir para essa situação de incerteza nas últimas eleições. E não só houve eleitorado de Esquerda que votou no PS para garantir a maioria absoluta, como houve eleitorado do Centro e de Direita que se deslocou para o PS, com medo da Extrema-Direita. Ora, se a Iniciativa Liberal faz uma moção de censura e não esclarece isso, significa que nem no atual quadro parlamentar, nem com eleições antecipadas, está a dar uma alternativa clara às pessoas. E as pessoas, naturalmente, não têm vontade de saltar da frigideira para o lume.

Perante este cenário, como é que perspetiva o futuro da Assembleia da República?

Falar sobre o papel do Livre é mais fácil do que sobre o cenário da Assembleia da República. Nós somos um em 230. Mas gostaríamos que o Parlamento tivesse mais centralidade, que o Governo usasse a maioria absoluta como uma oportunidade para governar mais com o Parlamento, até porque teriam a confiança que é dada pela maioria absoluta, e não tanto como um pretexto para fazerem tudo sozinhos, que é o que tem estado a acontecer. 

Se houver uma maioria de Esquerda, o Livre é parte da solução. Se houver uma maioria de Direita, o Livre é parte da oposição

E no que diz respeito ao partido? Acredita que o Livre será um fator a ter em conta na constituição de um eventual Governo de Esquerda, num contexto de realização de eleições futuras e na eventualidade de o PS não voltar a garantir uma maioria absoluta?

Acho que o partido está a cumprir com os objetivos que tinha. O primeiro, ao regressar ao Parlamento, seria mostrar que o Livre dignifica a democracia portuguesa e o Parlamento, que faz um bom trabalho e que esse trabalho é credível e sério. Pela primeira vez, finalmente, as pessoas têm a oportunidade de ver, continuadamente, o que é o trabalho do Livre, o que não tinha acontecido no passado. Essa primeira etapa nunca é definitivamente vencida mas, pelas reações que temos tido das pessoas, diria que está a ser cumprida da melhor maneira que conseguimos. Mas creio que, ao entrar no segundo ano de mandato, o Livre tem agora de conseguir, apesar do muito trabalho que o Parlamento dá quando se tem apenas um deputado, alargar o âmbito da sua ação, falar mais fora do Parlamento e, portanto, além de ser já um partido muito conhecido pela convergência à Esquerda, juntar-lhe a questão da abrangência.

Ou seja, para termos força, nós precisamos de ser mais abrangentes do ponto de vista social, cultural, político e académico, e isso significa que as pessoas que gostam daquilo que o Livre está a fazer, e que se reveem nesta ideia de existir um partido que está no meio da Esquerda, que é ecologista, europeísta e um partido das causas sociais democráticas, devem procurar-nos, dar-nos força e ajudar-nos a fazer um caminho em conjunto. Isto para que o partido, tal como passou de um partido extraparlamentar para um partido parlamentar, possa querer almejar ser um partido médio e, portanto, um partido que possa influenciar, nomeadamente, as soluções à Esquerda. As pessoas sabem que, desse ponto de vista, o Livre é muito consistente em relação àquilo que diz. Ou seja, que se houver uma maioria de Esquerda, o Livre é parte da solução, e que se houver uma maioria de Direita, o Livre é parte da oposição, pois isso é algo que também tem a sua dignidade em política.

Neste momento, estamos numa oposição que é uma oposição que constrói e que propõe. E, como sempre dissemos, estamos dispostos a dialogar à Esquerda. Fizemo-lo em autárquicas, tanto dialogando com o BE, como com o PS. Temos uma boa relação de trabalho parlamentar com o PCP e com o PAN, e achamos que é nessa pluralidade que a Esquerda pode dar resposta às pessoas e que as pessoas podem ter mais confiança de que o seu voto é representado.

O Livre é, também, como falámos, um partido que apresenta uma matriz eminentemente ecológica. Questionava-lhe, por isso, como vê o trabalho realizado durante estes sete anos de governação socialista nesta matéria. Têm sido conquistados avanços significativos ou há ainda muito a fazer?

Há muito trabalho a fazer, em todos os países do mundo. Temos à nossa frente um desafio muito grande. Alguns passos já foram dados no sentido certo, mas é preciso enquadrá-los de forma a que eles façam parte transversalmente da política. Vou dar um exemplo, de quando nós chegámos ao Parlamento com a proposta do Programa 3C - Casa, Conforto e Clima. Isso implicava pôr recursos do PRR - no último Orçamento do Estado conseguimos que fossem 20% do Programa REPowerEU, que é um programa de 700 milhões de euros, o que correspondeu a 140 milhões de euros para esse fim - e dirigi-los para a renovação de casas e aquisição de equipamentos sustentáveis no contexto das famílias de rendimentos mais baixos, que têm muita dificuldade em chegar aos programas mais burocráticos que o Governo já tinha. Programas esses que reembolsam até 85% dos gastos, mas as pessoas mais pobres não têm os outros 15%, nem têm o dinheiro para pagar em adiantado e só depois serem reembolsados. São precisos, portanto, programas em que o valor seja pago ‘à cabeça’ e, tal como já é feito noutros países e como nós já propomos também, com um valor que vá além dos 100%, com um acréscimo de 10% em créditos fiscais que permitam tornar apetecível às empresas do setor trabalhar para este segmento de mercado que tem mais baixos rendimentos - e, portanto, fazer 110% de reembolso.

Esta é uma política ecológica e social, ao mesmo tempo. É uma política social porque, em Portugal, as pessoas passam muito frio em casa e tentam aquecer-se com métodos inseguros, com algumas a morrer, inclusive, por utilizarem esses métodos, tal como todos os anos acontece. Este inverno está mais ameno, mas isso também nos lembra de que temos as alterações climáticas e do impacto que elas têm no país. É uma política social, por sua vez, porque dá emprego. E é uma política transversal, porque tem a ver com habitação.

O mesmo acontece quando falamos, por exemplo, do passe ferroviário nacional, que é uma medida nossa no âmbito do Orçamento do Estado para 2023, que foi aprovada e que esperamos ver implementada apesar da mudança de ministro, e que prevê um passe no valor de 49 euros para andar nos comboios regionais de todo o país. Isto é significativo para aquelas pessoas que foram expulsas das cidades ou, até, dos subúrbios. Pessoas que estão a morar em Tomar e que vêm várias vezes por semana ou todos os dias a Lisboa e que pagam um custo elevado em comboios regionais. Ou pessoas que, no Algarve, usam os comboios regionais e pagam passes que são de 80 ou quase 100 euros. A medida apresentada é, também ela, uma política social, mas também uma política que se destina a induzir a procura pelo modo ferroviário, que é mais sustentável.

Nós juntamos isso tudo naquilo a que chamamos de Novo Pacto Verde (Green New Deal), que é um tipo de políticas que, já desde 2009, os partidos verdes europeus têm vindo a defender, tal como outros progressistas do outro lado do Oceano Atlântico, como é o caso do Bernie Sanders e da Alexandria Ocasio-Cortez, nos Estados Unidos, e que passa por juntar os investimentos públicos ecológicos com investimentos públicos no domínio social. E fazer assim, no contexto desta nossa crise no século XXI, o que foi feito durante a crise do século XX, quando se criou a Segurança Social e outras proteções sociais, ao mesmo tempo que existia um grande plano de investimentos públicos que passou, também, pela energia - renovável, no caso, com a construção de barragens, nomeadamente. Nesse plano, nós conseguimos também fazer passar a ideia de criação de uma unidade de missão para o Novo Pacto Verde, que deve fazer a listagem dos investimentos ecologicamente responsáveis a fazer no futuro. 

A aposta no hidrogénio verde é uma boa aposta e pode ser o futuro

Mas, ainda assim, referiu que foram já dados alguns passos no sentido certo.

A aposta no hidrogénio verde é uma boa aposta e pode ser o futuro, nomeadamente nos meios mais pesados. Quando nós tivermos aviões e comboios a circular a hidrogénio verde, e isso é possível, tal significará uma grande mudança, e um país como Portugal pode estar muito bem posicionado a esse nível. O que nós não percebemos é se o Governo acha efetivamente que o hidrogénio verde é uma revolução energética e que estamos apenas no início dela, e se entende que Portugal pode estar bem posicionado nela. 

Aquilo que o Livre defende é, nesse caso, que se crie uma Agência Portuguesa do Hidrogénio ou, indo ainda mais longe, uma empresa pública chamada Hidrogénios de Portugal, porque aquelas empresas que nós desbaratamos nos últimos anos - EDP, PT e por aí fora - foram vendidas porque Portugal, na altura, tinha pouco dinheiro e elas eram muito grandes. Mas elas não começaram grandes. E uma Hidrogénios de Portugal, agora, que seja só um pé nesse mercado, que permita dirigir alguns investimentos públicos de forma mais focada, que permita fazer alguma investigação, pode, no futuro, fazer-nos dizer: “ainda bem que temos uma empresa de hidrogénio”. Porque, se esta é uma revolução energética, há muitos atores privados que vão estar aí presentes e que vão fazer o que costumam fazer - abusar da sua posição dominante e cartelizar-se.

E tal como nós hoje, na banca, agradecemos por não termos privatizado a Caixa Geral de Depósitos, daqui a umas décadas estaremos a dizer “ainda bem que criámos a Hidrogénios de Portugal”, porque temos ali um pé que nos permite, de certa forma, ser agente nessa área económica. Acho que falta ao PS essa visão integrada. Vai fazendo aquilo que os nossos compromissos internacionais requerem em termos de combate às alterações climáticas, mas é preciso dar esse cunho mais social e político ao Novo Pacto Verde.

O que é para nós muito importante é recusar qualquer tipo de confusão ou de baralhação, misturando aqui uma questão de referendo que, neste caso, não me faz sentido (...). Até porque a maioria das pessoas não está, felizmente, na condição de ter de ser forçada a uma escolha em relação à sua vida pessoal que contemple a eutanásia como uma possibilidade

As últimas semanas têm sido de uma atividade política intensa, com muitos temas diferentes a serem trazidos ao debate público. Um deles concerne o diploma que regulamenta a despenalização da eutanásia, que o Livre defende, e que foi já enviado para o Presidente da República para o Tribunal Constitucional (TC). Como vê essa iniciativa do chefe de Estado?

Nós já acompanhávamos de fora, tal como toda a gente, este tema, que já vem de Parlamentos precedentes. Se há coisa de que não podem acusar este processo é de uma falta de debate, de escrutínio e de tempo para refletir. Quem esperou este tempo todo, certamente quer ter certezas jurídicas e, portanto, que o Tribunal Constitucional se pronuncie. É um direito do senhor Presidente da República, nós não interferimos e não pressionamos o Tribunal Constitucional e, portanto, esperaremos a resposta. Depois disso, o Parlamento, se houver alterações a fazer, procurará adaptar a lei. Agora, o que é para nós muito importante é recusar qualquer tipo de confusão ou de baralhação, misturando aqui uma questão de referendo que, neste caso, não me faz sentido, porque nós não consideramos que se devam referendar direitos de minorias, colocar esses direitos ao plebiscito da maioria. Até porque a maioria das pessoas não está, felizmente, na condição de ter de ser forçada a uma escolha em relação à sua vida pessoal que contemple a eutanásia como uma possibilidade. 

A decisão do enquadramento legal é difícil e por isso é que, para fazer isso, elegemos deputados. Eles estão lá para fazer essa escolha difícil. E não há dúvida de que ela é moralmente complexa e que pessoas que não anteveriam a eutanásia para si percebem que têm de respeitar aquelas que sentem que essa hipótese deveria estar à sua disposição. Claro que esperamos que esta lei que foi agora apresentada avance, mas sempre no sentido de uma grande clareza, de uma grande separação de águas, e em que fique claro que se trate de uma questão que é para ser utilizada pelas pessoas na sua plena consciência diante de situações que são muito bem tipificadas - que é, também, para podermos responder a todas as acusações de que isto é um plano descendente que vai levar a uma espécie de generalização da eutanásia. Prevenir é sempre melhor do que remediar, desse ponto de vista. E as instituições, desse ponto de vista, devem funcionar. O Parlamento fez o seu trabalho, o Presidente o seu, o Tribunal Constitucional o seu e, se for preciso, o Parlamento voltará a fazer o seu.

Não conseguiremos ter uma economia mais produtiva, com mais valor acrescentado, uma economia do conhecimento e da descarbonização, que pague bons salários e que atraia pessoas, se não apostarmos muito na educação

Um outro tema que tem estado na ordem do dia está relacionado com as greves de professores, que têm trazido algumas disrupções à atividade letiva. O Ministério da Educação revelou já que pediu um parecer jurídico à Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a legalidade da forma de execução das mesmas. Será esta a forma mais correta do Governo fazer face a essa situação?

É preciso aqui lembrar a importância da educação, do ponto de vista coletivo e individual, e também dos professores no contexto da educação. Todos nós tivemos a oportunidade de florescer na nossa vida, de realizar o nosso potencial, porque encontrámos professores que nos permitiram fazer isso. E o facto de Portugal estar numa situação em que já tem falta de professores e onde, aparentemente, essa realidade vai agravar-se, porque há menos gente a querer seguir uma vocação de ensino, que certamente têm, por terem medo de fazê-lo, deveria dar ao Governo o ensejo, não só para negociar com os sindicatos, como para ser visto a fazê-lo, com prazer e com gosto, e procurar corresponder às reivindicações que são justas. Isso é que passaria a mensagem certa a quem atualmente é jovem e sente que tem talento para ensinar. Uma pessoa que pode estar a fazer a sua escolha de carreira e que, no fundo, quer ser professor, pode acabar por não ir nesse sentido porque acha que a carreira tem problemas, porque toda a gente diz que ser professor é péssimo e, ainda por cima, os Governos não reagem e não negociam. Quem não negocia, não valoriza. A mensagem que estão a passar é completamente errada. Deveria, sim, estar a ser passada a mensagem de que estamos perante uma oportunidade para repensar a carreira dos professores, para responder às suas reivindicações e, também, para em conjunto com os sindicatos e com os professores, fazer uma coisa que também não se vê muito: procurar outras soluções. 

Basta olhar para o capital social que determinadas profissões ganharam nos últimos anos, e que antes não tinham. São disso exemplo os chefs de cozinha, que há 10 ou 20 anos não tinham o capital social que têm hoje e, atualmente, existe até um excesso de oferta no que toca a talentos. Eu penso que, numa profissão tão central como a de professor, há que acarinhar essas vocações. Mas, para fazê-lo, nós temos de dignificar a profissão e, primeiro que tudo, tratar bem os professores que já temos. E depois, evidentemente, tratando bem os professores que já temos, pedir mais responsabilização, dar mais autonomia e fazer esse caminho que permita, também, às pessoas que sintam que têm vocação, talento e vontade de ensinar, que a sigam. Não são só questões salariais, embora também o sejam, mas são também questões de carreira, de desbloquear o acesso àqueles patamares da carreira que estão bloqueados. É a questão dos alunos por turma - de ter menos alunos por turma para dar mais atenção a cada aluno. Mas é também a questão de mudar a mentalidade de que a escola é uma fábrica de preparar as pessoas para exames. Se for assim, podemos ter pessoas que vão às escolas cumprir a burocracia, mas não vamos ter os melhores a ensinar. E se não vamos ter os melhores a ensinar, não vamos estar a mudar a vida das pessoas - e, também, num sentido coletivo, Portugal terá muito mais dificuldade em dar o salto de qualidade que a nossa economia e a nossa sociedade precisam de dar.

Portugal tem poucos anos para se reinventar, temos de subir na escala de valor, e nós não conseguiremos ter uma economia mais produtiva, com mais valor acrescentado, uma economia do conhecimento e da descarbonização, que pague bons salários e que atraia pessoas, se não apostarmos muito na educação. Como é que o fazemos? Se não dignificarmos a carreira de professor, tal não será possível.     

O Livre tem, também, alertado para uma maior necessidade de investimento no setor da cultura. Defendeu recentemente a possibilidade de usar verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) nesse sentido. Que carências do setor devem ser combatidas de imediato, na perspetiva do partido?

Acho que há dinheiros do PRR que vão ser aplicados em museus e em algum património, e isso é importante, mas às vezes vemos coisas assustadoras num país que tem ainda muito por fazer e em que, por vezes, essas situações parecem passar ao lado. Aqui há uns anos, houve uma polémica por causa de um jantar no Panteão Nacional, e durante uma semana só se falava daquilo. Mas a verdade é que há três invernos que chove dentro do Torreão Poente, na Praça do Comércio. É uma joia da coroa do nosso património, onde era para ser construída a Biblioteca Pública do Reino, onde antes tinha sido a Biblioteca de D. João V. Vi recentemente a vereadora Filipa Roseta, da Câmara Municipal de Lisboa, que ocupa a pasta da Habitação, mas que trabalha também temas relacionados com a área do urbanismo, a dizer que tudo isso é culpa do Fernando Medina. Mas a verdade é que dois desses três invernos já foram vividos sob a alçada do novo Executivo. Já falei sobre isto com o ministro da Cultura, com a ministra da Presidência do Conselho de Ministros, mas aparentemente ninguém está em pânico. Embora eu esteja. Não precisamos que aconteça ali um incêndio como o da Catedral de Notre-Dame para percebermos que aquele monumento é importante. 

Por outro lado, os Ministérios vão sair da Praça do Comércio e não há nenhum debate público acerca do que fazer com a mesma. O único museu que há na Praça do Comércio, que é o lugar evidente da cidade de Lisboa para ter museus, é uma cervejaria chamada ‘Museu da Cerveja’. Está lá o WC mais sexy do mundo, mas não chegam lá exposições de grande dimensão internacional. É quase escandalosa a maneira como, não este ou aquele responsável político em particular, mas antes a sociedade como um todo, não pega nisto.

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