"Políticos são mal pagos, depois vem a corrupção. Fatal como o destino"
Helena Roseta, arquiteta, especialista nas políticas de habitação e antiga autarca e deputada é a convidada desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.
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Política Habitação
Helena Roseta estava na faculdade quando as cheias de 1967 mataram centenas de pessoas nos bairros clandestinos de Lisboa. Já nessa altura queria resolver o problema da habitação em Portugal e foi essa tragédia que definiu o seu percurso e atuação política.
Especialista nas políticas de habitação, antiga autarca e deputada pelo PSD e pelo PS, responsável pela criação da Lei de Bases da Habitação e das políticas dos Bairros Saudáveis, diz, em entrevista ao Notícias ao Minuto, que considera a criação do ministério da Habitação algo "simbólico", mas que é preciso mais, nomeadamente um Grupo de Trabalho da Habitação no Parlamento.
Falou também na corrupção, nos casos que têm chocado o país e de como o poder local precisa de mais escrutínio.
Cheias de 1967? Foi um choque monumental em que eu percebi que ter uma casa decente e segura é a diferença entre a vida e a morte
Teve desde sempre uma grande sensibilidade no que toca ao tema da habitação e aos bairros pobres. Quando é que soube que se dedicaria profissionalmente à causa?
Essa história é um bocado caricata - mas há uma parte que não é nada caricata e é até dramática. Eu era estudante de arquitetura em 1967 e tinha 19 anos quando se dão as cheias catastróficas de Lisboa, a 25 de novembro. Nessas cheias morreram mais de 500 pessoas e a partir dos 200 a censura proibiu de dizer quantos mortos havia. Então os estudantes organizaram-se, brigadas das várias universidades. Os de medicina iam ajudar as pessoas, os outros iam limpar e ajudar a lavar... Os do Técnico organizavam tudo e faziam boletins que punham cá fora a realidade. Era a imprensa estudantil, nessa altura, não havia os sistemas que há hoje: eram policopiados em stencil. Os alunos davam à manivela para saírem os comunicados e chegou-se à conclusão de que terão morrido mais de 500 pessoas.
Isso foi um choque monumental em que eu percebi que ter uma casa decente e segura é a diferença entre a vida e a morte. Eu já tinha decidido ir para arquitetura e essa situação confirmou-me que era isso que eu queria fazer. Em arquitetura tinha como professor o Nuno Portas - que é uma pessoa que me ajudou a ser como eu sou - uma pessoa muito empenhada nas questões da habitação. Muito culto e um grande mestre. E no primeiro ano, antes ainda das cheias, ele perguntava aos alunos por que é que tinham escolhido arquitetura. Cada um dizia as suas coisas. Um dizia que gostava muito de desenhar, outro dizia que gostava de ser como o pai. E eu disse uma coisa absolutamente tonta e presunçosa: 'Eu vim para arquitetura porque eu quero resolver o problema da habitação em Portugal'.
Claro que nunca resolvi problema nenhum da habitação em Portugal, mas na verdade defini a minha agenda nessa idade.
Em que medida é que a criação de um ministério da Habitação vai ajudar a situação de Portugal?
Acho um passo importante. Por um lado, é simbólico. A habitação é central nas políticas sociais do Governo e já devia ter sido mais cedo. Por outro lado, durante muitos momentos não houve ninguém, havia secretarias, mas estar um ministro em Conselho de Ministros com essa competência, sem estar pendurado com outras coisas, é da maior importância para discutir em pé de igualdade com a Segurança Social, com o Ambiente... com as outras áreas.
Em contrapartida, estive a verificar que o mesmo não se passa no Parlamento. A grande parte da legislação de habitação tem de passar pelo Parlamento. O programa nacional de habitação tem de passar pelo Parlamento, as alterações ao arrendamento têm de passar pelo Parlamento. Tudo o que é relacionado com o sistema fiscal. Portanto, o Parlamento tem aqui um papel muito importante. Acontece que no Parlamento, quando lá estive a fazer a lei de bases, há duas legislaturas, propus a criação do Grupo de Trabalho da Habitação, precisamente para que tudo passasse por ali, e conseguiu-se. Entretanto, não sei como se têm organizado, mas foi assim que conseguimos no fim ter a lei aprovada no meio de um pacote legislativo de dezenas. Desde que começou esta legislatura já houve várias dezenas de iniciativas dos vários partidos - da oposição e do Governo - sobre matérias ligadas com a habitação. Umas vezes vão parar à comissão de Economia, outras à de Orçamento e Finanças... Temos uma intenção proclamada de dar centralidade à habitação na orgânica do Governo, mas não há qualquer centralidade da habitação na orgânica da Assembleia. E eu acho isto grave. Ainda não o disse publicamente, estou-lhe a dizer a si.
É grave porque se grande parte da legislação desta matéria tem de passar pelo Parlamento, o Parlamento tem que dar à habitação a mesma centralidade que o Governo lhe deu. Não quer dizer que as comissões não sejam capazes, cada uma delas, de ver... Mas fica tudo espartilhado.
O complemento desta nova orgânica de Governo é que a Assembleia da República faça o mesmo, até porque é o Parlamento que escrutina o Governo
E qual é a sua proposta?
Pelo menos um Grupo de Trabalho. Podia haver uma sub-comissão ou até uma nova Comissão - mas como são criadas no início da legislatura, será difícil. Mas Grupos de Trabalho podem-se sempre criar. Eu achava da maior importância. Até podem participar deputados de várias Comissões. Corremos o risco de umas coisas serem discutidas de uma maneira e de outras serem discutidas de outra. A última discussão grande que houve no Parlamento sobre habitação meteu dezenas de diplomas. Quem falou do lado do Governo foi a secretária de Estado do Tesouro e a da Habitação. Isso dá logo uma imagem... Estamos a discutir aqui uma questão muito concreta e temos que ouvir dois Ministérios diferentes. Não faz sentido. O complemento desta novo orgânica de Governo é que a Assembleia da República faça o mesmo, até porque é o Parlamento que escrutina o Governo.
Marina Gonçalves terá um desafio pela frente? O que opina sobre esta escolha para o cargo?
O principal é que é uma pessoa que já estava dentro desta matéria. Fez um grande trabalho de preparação de alguma legislação já complementar da lei de bases, do próprio PRR e do Programa Nacional de Habitação. Está em condições de continuar. Naturalmente, precisa de ter apoios e força política para as matérias e a responsabilidade que tem em cima é muito grande. Começa já com o Programa Nacional de Habitação, que fixa metas muito ambiciosas para os próximos anos, mas neste momento ir buscar outra pessoa a mim parecia-me injusto relativamente ao trabalho de casa que ela já fez. Se viesse outra pessoa ia-se perder tempo precioso e já perdemos muitos anos. Digo até mais: já perdemos tantas décadas.
O facto de a lei de bases ter aparecido tão tarde, apenas em 2019, 45 anos depois do surgimento da democracia, contribuiu para o estado em que o acesso à habitação está neste momento em Portugal?
A lei não tem culpa do Estado. É ao contrário. A lei aparece porque eu própria disse que a ia fazer, porque ela não constava do programa de partido nenhum. Eu propus ao PS pô-la no programa do Governo e não aceitou nessa altura. Quando fui eleita, a primeira coisa que disse foi que ia fazer a lei de bases. Olharam para mim como se eu viesse de outro planeta, mas a verdade é que se podia fazer e fez-se.
A lei de bases também não vai dar habitação a ninguém, em si, sozinha. Define bem o que é o direito à habitação desenvolvendo o que está na Constituição. Diz as responsabilidades do Estado, das autarquias, das regiões, e isso é muito importante. Quem é que faz o quê. Neste momento a lei de bases já está com atraso porque meteu-se a Covid. Nos últimos anos adiámos prazos e não funcionou muito bem. Os apoios excepcionais não funcionaram bem. Os apoios que foram dados às pessoas que, por exemplo, não tinham capacidade de aguentar as rendas, o IRU não conseguiu atribui-los porque era tão complicado o sistema de acesso que muita gente não chegou lá.
Às vezes temos leis e não temos dinheiro, outras vezes temos dinheiro e não temos leis. Agora temos leis e dinheiro, resta saber se temos capacidade
Chegámos ao momento em que é imperativo voltar a dar atenção à habitação...
É o momento. Às vezes temos leis e não temos dinheiro, outras vezes temos dinheiro e não temos leis. Agora temos leis e dinheiro, resta saber se temos capacidade. Espero que sim, mas temos um problema adicional: os resultados não são imediatos. Uma casa não se faz tão depressa como se faz uma lei. Leva tempo. E muitas casas, mais tempo levará.
Por outro lado, o dinheiro que vai ser aplicado em construção de casas novas, ou em reabilitação de existentes, mas sobretudo em construção, dará origem, no máximo - pelas contas que fiz - a 35 mil habitações. As carências são mais do que isso. Portanto, também é um erro dizer-se que os problemas da habitação estão resolvidos, agora é só a classe média. Não é verdade. Temos aqui uma lacuna ao nível da informação. Não temos estudos acessíveis, nomeadamente pelo INE, disponíveis para toda a gente, que façam o cruzamento entre os rendimentos e as rendas. Isto é a coisa mais importante para se saber como está a habitação. Se o ritmo do crescimentos desse valor [gastos com rendas] é muito superior ao crescimento dos rendimentos das famílias, há uma divergência.
Isto tem de ser analisado em pormenor por aquilo que se chama quintis, e nós não temos estudos desses publicados. Por isso, quando eu ouço dizer que a classe média agora é que tem a maior carga, eu não sei se isso é verdade ou mentira.
Temos, sim, mais habitações do que famílias em Portugal, coisa que não tínhamos a seguir ao 25 de Abril, temos um excedente de mais de 1 milhão de habitações em relação ao número de famílias e uma parte são residências secundárias - que é um direito das pessoas. Outra parte desse excedente são 700 mil fogos vazios. Portanto, não basta construir mais habitação pública, é preciso mobilizar parte destas habitações vazias. E também para isto faltam estudos. É que estas casas não estão só no interior desertificado. Em Lisboa, no último censo, eram mais de 40 mil. Isto é um número superior ao que o Governo pretende construir com o PRR em seis anos!
Vistos gold? Já deviam ter sido eliminados
Os vistos gold - muito responsáveis pela situação habitacional de cidades como Lisboa e Porto - mantêm-se ativos apesar da promessa de revisão…
Já deviam ter sido eliminados. Eu não tenho dados recentes, mas os resultados podem ter sido muito interessantes do ponto de vista de investimento estrangeiro - são muito negativos do ponto de vista da habitação. Não serão o maior problema da habitação, até porque estamos a falar de habitação de luxo e não é isso que precisamos para a população toda, mas tiveram um efeito negativo que deve ser avaliado.
Já há alguns estudos, é preciso tomar decisões.
Tal como a habitação, também os transportes são bastante deficitários em todo o país. Estamos a falhar em garantir qualidade de vida aos nossos cidadãos?
Eu não conheço tão bem a temática dos transportes como conheço a da habitação, mas elas estão muito ligadas. Mas uma coisa é a rede de transportes urbana e suburbana que tem tido bastantes dificuldades, porque cada município tratava dos seus. Agora, finalmente, começaram-se a dar passos para as redes serem metropolitanas.
A mim o que me preocupa mais é a rede de transportes das zonas que não são urbanas nem metropolitanas. São zonas onde a rede falha muito. Foi feito esforço na rede ferroviária geral, mas ainda leva tempo a dar resultados. O que temos de ter é várias políticas sociais adaptadas ao habitat. Tem de haver serviços ambulatórios, por exemplo, em que os serviços vão às pessoas e não o contrário. Vejamos a área da Saúde, em que as pessoas têm de fazer quilómetros.
Falta uma política inteligente de transportes para o habitat rural. Está prevista na lei de bases, mas está em falta.
A vulnerabilidade habitacional dos mais pobres tem vindo a agravar-se, demonstrando-se em episódios como os das fortes chuvas que se abateram sobre Lisboa ou outras zonas. O que se deve e pode fazer nestes casos?
Algumas das habitações que foram inundadas e que se estragou muita coisa não são necessariamente vulneráveis. É um problema de localização, de alterações climáticas, e do próprio sistema de drenagem no caso de Lisboa. Muitas das situações que vimos no resto do país também não são degradadas. Para as habitações mais precárias que terão sofrido com isto, não temos neste momento, propriamente, soluções. Os municípios estão a propor que muitas dessas habitações sejam abatidas ou integradas nas suas estratégias locais. Só que é muito difícil termos uma noção do que é que vai acontecer. É o problema de descentralizar a este ponto, faz com que o escrutínio seja mais difícil.
Por outro lado, sobre o escrutínio local, era preciso que as assembleias municipais trabalhassem melhor e tivessem mais condições. Porque senão vamos ter as câmaras com muito mais financiamento em cima e com menos escrutínio. E isso é um risco. Grande parte destes dinheiros do PRR é através dos municípios. Quem é que vai escrutinar isto? Isso é um ponto que tem que ser visto.
O que acontece na maioria [dos municípios] é que os deputados reúnem pouquíssimas vezes e estão dependentes da câmara que por vezes nem empresta sala. Isto é que é escrutínio? O escrutinador depende do escrutinado
Disse já que os municípios e as assembleias municipais deviam ser chamadas a ter um papel mais ativo nesta questão? Como?
Tem de se mudar a lei, é uma reforma de fundo que está por fazer. Continuamos a ter assembleias municipais concebidas como foi em 76, a seguir ao 25 de Abril, em que cidadãos de boa vontade, mais ou menos de graça, iam fazer o trabalho de escrutínio. Temos câmaras como a de Lisboa, com orçamento superior a mil milhões de euros, e a responsabilidade de aprovar aquilo é da assembleia municipal.
Isto não é politicamente correto nem uma coisa que as pessoas gostem de ouvir, mas os deputados municipais deviam ter um ordenado. É o mínimo. Têm apenas uma senha de presença de 100 euros ou nem isso. É caricato. O que acontece na maioria [dos municípios] é que os deputados reúnem-se pouquíssimas vezes e estão dependentes da câmara que por vezes nem empresta sala. Isto é que é escrutínio? O escrutinador depende do escrutinado. Tudo o que temos ouvido de casos de corrupção devia passar pelas assembleias municipais, mas estas não têm poder de escrutínio. Nos centros urbanos maiores não é assim, como bem sabemos, mas ainda há muito por fazer.
Também é politicamente incorreto dizer isto, mas os políticos também são mal pagos. Os salários são baixos. Depois, claro, vem a corrupção. É fatal como o destino.
Corrupção? Antes de correr atrás dos ratos era melhor garantir que o queijo está bem guardado
Sobre corrupção, temos tido inúmeros casos ultimamente...
Se houvesse o escrutínio das assembleias municipais, mais transparência das câmaras, que fossem obrigadas a pôr a informação cá fora acessível... Antes de correr atrás dos ratos era melhor garantir que o queijo está bem guardado.
O que acha deste novo mecanismo, o questionário apresentado por António Costa?
É uma intenção, uma coisa de circunstância para resolver uma crise complicada. Não resolve. O convidado terá uma responsabilidade maior, mas isto não diminui em nada a responsabilidade de quem convida.
Afastará pessoas da sociedade civil?
Já há muita gente afastada porque, primeiro, se ganha mal na política. Pessoas de mais qualidade que estão em cargos muitíssimo bem remunerados não estão disponíveis. Depois, há o foco e escrutínio da comunicação social constante. Terceiro, já existe um mecanismo dissuasor que são as declarações de rendimentos. A sociedade tem sido cada vez mais exigente com estas coisas, e ainda bem.
Quando eu comecei a intervir politicamente, antes do 25 de Abril, o sistema era o da 'cunha'. Depois, o sistema continuou a ser o da 'cunha' durante muito tempo. 'Vê lá se conheces alguém, podia dar um jeitinho, o meu sobrinho precisa'. Isto é também um problema cultural. Não é de um momento para o outro que se passa deste sistema para o democrático.
Que balanço faz o programa Bairros Saudáveis, que termina em abril deste ano?
Ainda estamos nessa fase de balanço final, mas a meio do programa já era extremamente positivo. Um programa de 10 milhões de euros que atingiu 240 projetos em todo o país conseguiu pagar total ou parcialmente mais de 330 postos de trabalho. Num programa tão pequenino é obra. Estamos a falar de contratos de trabalho. Acho isto da maior relevância.
Depois há coisas mais difíceis de medir... O bem estar das populações, o melhor relacionamento da comunidade, a melhoria de determinados espaços públicos, de equipamentos. Tudo isso são aspetos positivos, mas estamos a avaliar tudo até para ter resultados que se possam publicar.
Em resumo, conseguiu-se fazer muito com pouco. Foi a demonstração de que isto é possível.
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