"O meu filho mais novo começou a rapar-me o cabelo e o mais velho acabou"
Cláudia Fraga, sobrevivente de cancro do ovário e atual responsável pela associação Movimento Cancro do Ovário e outros Cancros Ginecológicos (MOG), é a entrevistada desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.
© Hill+Knowlton Strategies
País Cláudia Fraga
O cancro do ovário é o sétimo tipo de cancro mais comum entre as mulheres, com cerca de 314 mil novos casos por ano. Além disso, é a oitava causa mais frequente de morte, por motivos oncológicos, no universo feminino, segundo o primeiro estudo nacional sobre cancro do ovário - 'O Cancro do Ovário em Portugal: conhecimento e perceções' - promovido pela Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO), Sociedade Portuguesa de Ginecologia Oncológica (SPGO) e Movimento Cancro do Ovário e outros Cancros Ginecológicos (MOG).
Cláudia Fraga faz parte do grupo de mulheres que sobreviveu a um tumor maligno no ovário, que lhe foi detetado em 2015, aos 49 anos, e a uma recidiva três anos depois
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a propósito do Dia Mundial do Cancro do Ovário, que se assinala a 8 de maio, a atual responsável pela MOG aborda a necessidade de haver um método de rastreio para prevenir sintomas que, frequentemente, são tardios e começam a sentir-se apenas quando o tumor já se encontra em estado avançado.
Além da dificuldade no diagnóstico que relaciona também a "uma muito baixa literacia em saúde", Cláudia aponta ainda outros desafios no tratamento deste cancro ‘silencioso’. Entre eles, "a falta de acesso a medicação que já existe noutros países" para tratamentos de manutenção de primeira linha - que se faz após a quimioterapia para manter e prolongar a eficácia do tratamento - uma vez que apenas é possível a doentes com mutação genética (sBRCA ou gBRCA).
Em Portugal, o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed) ainda não aprovou os inibidores da PARP [atuam para evitar a multiplicação de células cancerígenas] a doentes adultas com cancro no ovário sem mutação genética por não ter conseguido avaliar o valor terapêutico acrescentado do medicamento.
A minha sorte foi que não descurei os sintomas e fui rapidamente ao médico
Um dos problemas com o cancro do ovário é que os sintomas podem confundir-se com sinais de outros problemas. Quais foram os seus sintomas e como recorda o dia em que descobriu que tinha cancro do ovário?
Os meus sintomas foram ao fim do dia quando me debrucei na cama. Parecia que sentia umas facadas alucinantes do tórax às virilhas, mas uma dor horrível, como se me estivessem a esfaquear o abdómen todo.
Depois fui dormir e no dia a seguir acordei como se tivesse corrido uma maratona na véspera, mas não tinha dores, não tinha nada, mas era uma cansaço enorme, exagerado.
A minha sorte foi que não descurei os sintomas e fui rapidamente ao médico.
Como é que foi todo o processo? Foi fácil chegar ao diagnóstico?
No meu caso foi fácil porque o médico mandou-me logo fazer TAC abdominal e torácica e na TAC abdominal viu logo que eu estava com um tumor de 12 centímetros, não se sabia é se era benigno ou maligno.
Só soube depois de fazer a biópsia extemporânea que é com a barriga aberta e em operação. Eles analisam, demoram mais ou menos meia hora, e, no meu caso, era maligno de alto grau.
Preparei os meus filhos (de 10 e 15 anos na altura) para, quando começasse a fazer quimioterapia, saberem que o cabelo me ia cair. (...) Foi o mais novo que começou a rapar-me o cabelo e o mais velho que acabou
Como foi receber a notícia, interiorizar e partilhá-la com os que mais ama?
Bom, nunca é bom receber uma notícia destas… mas pronto, tentei ser positiva. O que pensei foi: ‘ainda bem que estou em Lisboa, ainda bem que a ciência evoluiu, vamos lá tratar-nos’. Confiei inteiramente na equipa médica.
Mal soube, primeiro disse ao meu marido, depois aos meus filhos e depois ao pai dos meus filhos (eu sou separada). É muito importante envolver toda a família. Apesar de ser separada, o pai dos meus filhos será sempre da minha família, portanto ajudou-me no processo.
Preparei os meus filhos (de 10 e 15 anos na altura) para, quando começasse a fazer quimioterapia, saberem que o cabelo me ia cair. Eu estava com um cabelo enorme, na altura, e decidi pedir-lhes para comprarem uma máquina de rapar cabelo e serem eles a rapá-lo. Foi o mais novo que começou a rapar-me o cabelo e o mais velho que acabou.
O que mudou no seu dia a dia após o diagnóstico e respetivos tratamentos?
Mudou tudo. Eu era professora de educação física e desporto e, portanto, a resistência vai abaixo, qualquer um vai abaixo. Mas pronto, eu não me resignei! Continuei a fazer caminhadas - que é importante.
Durante os tratamentos, sempre que fazia quimioterapia, ficava três dias em posição fetal, com dores. Quando a dor passava, fazia caminhadas. Fiz muitas.
Mas com a força da família - e eu tive muito apoio - vamos ultrapassando. Aliás, o meu filho Francisco tinha 15 anos na altura, portanto estava a decidir qual seria mesmo a sua formação. Ele jogava futebol, na altura, e dizia-me sempre que os ídolos dele eram jogadores. Há pouco tempo disse-me que, a partir do momento em que tive o cancro, os ídolos dele passaram a ser os médicos. Foi para Medicina e neste momento está a acabar o curso, está no sexto ano.
Eu não sabia que podia haver uma recidiva e foi muito pior a recidiva do que o ‘primeiro cancro’
Disse, anteriormente, em entrevista, que já tinham passado três anos desde o primeiro diagnóstico quando, numa colonoscopia, lhe foi detetada uma recidiva que estava a afetar os intestinos. Nesse momento, perdeu a esperança? Ou pelo contrário, ainda tentou arranjar mais força?
Eu não sabia que podia haver uma recidiva e foi muito pior a recidiva do que o ‘primeiro cancro’, digamos. Fiquei destroçada.
Foram mais quatro operações, mais 20 vezes a barriga aberta porque tive uma septicemia com perigo de vida e tive ostomizada - que é a pior coisa que pode acontecer. Passei praticamente 2019 em operações. Começaram no fim de fevereiro e acabaram em novembro.
Não perdi a esperança nunca mas passei por péssimos momentos, sim. Quando estava nos cuidados intensivos, de barriga aberta, e me disseram que já me tinham dado o máximo de morfina e eu estava com imensas dores, já não sabia como aguentar a dor.
Nesse momento, pus-me a fazer projetos de arquitetura mentalmente. Eu não sou arquiteta, sou de educação física, mas transformei uma garagem num escritório e transformei um sótão num apartamento, tudo mentalmente.
Depois do projeto todo feito (mentalmente), chamei os meus filhos e disse-lhes para eles se livrarem da tralha toda que eu ia transformar as casas. Eles não acreditaram que eu o tinha feito naquele momento de sofrimento. Mas eu consegui fazê-lo, no meio das operações.
Quando estamos cheios de dores, conseguimos aguentar melhor ao fugir daquele pensamento de que estamos com dor forte e que não está a passar.
O problema destes cancros é que são 'silenciosos' e não há sintomas. (...) Para o cancro do ovário não existe rastreio possível nem vacinação. Só podemos estar muito atentos aos sintomas do corpo
Tendo em conta que, quando foi diagnosticada, já tinha um tumor maligno de 12 centímetros, considera que o acompanhamento que é feito por um ginecologista é insuficiente para a deteção deste cancro?
Quando fui operada, o tumor já tinha 28 centímetros - são tumores galopantes e com um crescimento muito rápido.
Eu ia todos os anos à ginecologista e tinha alterado a consulta desse ano. Tinha adiado dois meses porque a minha mãe estava mal. Alterei de julho para setembro. Bastou.
O problema destes cancros é que são 'silenciosos' e não há sintomas. Além disso, não há nenhum rastreio que o detete. Enquanto, no caso do cancro do colo do útero, até pode ser erradicado daqui a 15 anos se todas as raparigas e rapazes forem vacinados, no âmbito do Programa Nacional de Vacinação, para o cancro do ovário não existe rastreio possível nem vacinação. Só podemos estar muito atentos aos sintomas do corpo.
Eu sentia-me cansada. Mas também aos 49 anos quem é que não se sentia cansada? Tinha sentido uma dorzinha leve na barriga, mas também qual é a mulher que não sente? Não são sintomas específicos. Eu não tinha barriga inchada, não tinha nada disso.
Qual foi a experiência mais marcante para si durante todo o processo de tratamento?
Foi realmente quando soube que tinha a recidiva. Até porque até ser presidente da associação, como doente, nunca pesquisei nada no Google. Aliás, nem no Google nem em lado nenhum. Então não sabia que isso era possível de acontecer. Foi o choque e perceber o que vinha a seguir.
Agora sei porque tenho funções que me levam a que tenha de saber mas, como doente, não sabia.
Aliás, peço às doentes que não pesquisem nada sobre a doença no Google porque cada caso é um caso e as equipas médicas especializadas é que sabem o que nos hão-de fazer.
É muito importante o papel da associação também neste aspeto [encaminhamento célere] porque em Portugal não existem centros de referência de ginecologia oncológica. (...) Pode haver perdas de vida quando o encaminhamento não é célere
Até à criação da MOG, que, nas suas palavras, criou para colmatar a falta de uma associação de cancro do ovário, sente que, muitas vezes, ignoravam os sintomas por falta de literacia em saúde na área desta doença?
Sim, muitas vezes mesmo, e isso levava a que houvesse uma maior procura por uma associação. No meu caso, eu nunca senti necessidade nenhuma de uma associação nem de falar com ninguém porque eu sou muito resolvida comigo própria e, felizmente, tenho um núcleo familiar de suporte. Como tinha esse núcleo, nunca senti necessidade de partilhar nada nem perceber como é que foi com as outras.
No entanto, o médico que me operou apresentou-me uma ou outra doente, inclusivamente a Cláudia Marques, mais nova que eu, que tinha tido muita necessidade de saber como é que as outras mulheres reagiram, de partilha, e descobriu que não havia nenhuma associação. Ela trabalha na embaixada britânica e portanto começou a contactar associações inglesas porque aqui não havia nada.
A pedido de várias mulheres, juntámo-nos e foi um passo até formarmos a associação. Hoje em dia é um espaço através do qual é possível encaminhar-se celeremente mulheres para equipas médicas. É muito importante o papel da associação também neste aspeto porque em Portugal não existem centros de referência de ginecologia oncológica.
É muito importante que um centro de referência de ginecologia oncológica exista porque os tumores são galopantes e não podemos estar a perder tempo a ir para um hospital e depois estarmos a ser encaminhados para outro. Isso é perda de tempo. Pode haver perdas de vida quando o encaminhamento não é célere.
Criar a associação, além disso, foi uma realização pessoal?
Sim, exatamente. Até porque estamos a ajudar muitas mulheres e sinto que a associação faz mesmo toda a diferença no apoio e no encaminhamento de doentes.
O cancro do ovário, embora seja um cancro de mulheres, é um cancro que também afeta muito os homens. Ao afetar uma mulher, está a afetar uma família e está a afetar o país
Ainda permanecem desafios ao nível do diagnóstico e tratamento deste cancro ‘silencioso’?
Sim sim, muitos. Por exemplo, o facto de não haver centros de referência de ginecologia oncológica, como já referi, e também a falta de acesso a medicação que já existe noutros países.
Há medicamentos [inibidores da PARP - atuam para evitar a multiplicação de células cancerígenas] que não são comparticipados em primeira linha mas ajudam as mulheres com cancro do ovário nos tratamentos de manutenção [que se faz após a quimioterapia para manter e prolongar a eficácia do tratamento], daí que esteja a decorrer uma petição, em que já temos mais de 7.100 assinaturas. Só faltam menos de 400 assinaturas para ser apreciada em Plenário da Assembleia da República.
O cancro do ovário, embora seja um cancro de mulheres, é um cancro que também afeta muito os homens. Ao afetar uma mulher, está a afetar uma família e está a afetar o país. Por isso, quando ajudamos uma mulher, ajudamos uma família, ajudamos o país.
Há pais, filhos, amigos, companheiros e, portanto, a associação também serve para dar apoio aos homens.
Portugal é o único país que não tem esta medicação aprovada e disponível, daí que o objetivo da petição de tentar a aprovação seja muito importante
A petição pública 'Nenhuma mulher portuguesa com cancro do ovário deixada para trás', que tem com objetivo de levar à discussão em plenário, na Assembleia da República, os constrangimentos que as mulheres portuguesas enfrentam no acesso à inovação terapêutica no tratamento do cancro do ovário, pretende também mostrar que ainda há muito que podia ser feito… ou que está por fazer?
Sim, também. Nós temos um país com uma muito baixa literacia em saúde, inclusivamente os médicos de família descuram muitas vezes os sintomas que as mulheres lhes dizem, como, por exemplo, sentirem-se enfartadas, ter a barriga inchada. O que acontece é que sugerem: ‘olhe, faça uma dietinha, que isso é pão a mais’.
E depois é a medicação, como já disse. É preciso o financiamento público de medicação que já existe para evitar as recidivas e que o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed) ainda não aprovou.
Portugal é o único país que não tem esta medicação aprovada e disponível, daí que o objetivo da petição de tentar a aprovação seja muito importante.
Aliás, em janeiro de 2022 foi aprovada a comparticipação do medicamento para o tratamento de manutenção em primeira linha para doentes de cancro do ovário com mutação genética (sBRCA ou gBRCA) mas não foi para quem não tem. O problema é que só tem mutação genética 15% da população. Faltam os outros 85%.
Considera-se hoje uma pessoa diferente depois de ter superado a doença e poder ser a voz da experiência que ajuda e continuará a ajudar tantas outras a fazê-lo?
Sem dúvida. Desde que sou presidente [da MOG], houve um caso que me marcou particularmente. Foi negada a uma doente a comparticipação da medicação para o tratamento de manutenção em primeira linha pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), a seguir teve uma recidiva e depois morreu. Aliás, foi ela que nos fez o logotipo da associação.
É mesmo necessário, quando há medicação inovadora em Portugal, o Infarmed aprová-la mais celeremente porque Portugal demora mais de 700 dias a aprovar medicamentos que já estão aprovadíssimos quando, por exemplo, na Alemanha, demoram 120 dias. É muito demorado porque quando é aprovado já está a ser lançada outra medicação.
O que queremos mostrar [através da petição] é mesmo que podemos ajudar e estamos cá para isso, mostrando que há um medicamento específico que já está aprovado em todos os países da comunidade europeia e que ainda não é comparticipado em Portugal em primeira linha.
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