Seca? "Perante preocupante cenário, respostas têm sido corajosas"
Miguel Lemos Rodrigues, o único português membro da direção da Aqua Publica Europea, associação que representa todas as Empresas Públicas de Água na Europa, é o entrevistado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.
© Miguel Lemos Rodrigues
País Miguel Lemos Rodrigues
A água é um importante recurso, seja como meio para várias espécies animais e vegetais sobreviverem, seja como meio de produção de vários bens de consumo final, seja também como valor social e cultural.
Numa altura em que este recurso natural é cada mais mais ameaçado em várias frentes, o Notícias ao Minuto falou com o presidente do conselho de administração das Águas de Gaia, Miguel Lemos Rodrigues.
O responsável é também o único português membro da direção da Aqua Publica Europea, associação que representa todas as Empresas Públicas de Água na Europa, o que permitiu abordar nesta entrevista não só de que tipo de ameaças falamos a nível nacional, nomeadamente, a seca, como também a nível internacional - devido ao impacto de conflitos como o da guerra na Ucrânia.
Hoje em praticamente todo o território nacional há disponibilidade de água com qualidade para consumo humano e disponibilidade de saneamento
Em termos de distribuição de água, como podemos descrever a situação em Portugal? No fundo, se as redes de distribuição por todo o país estão bem desenhadas por forma a chegarem a todo o lado ou há locais onde este bem essencial não está a chegar na quantidade/ com a rapidez que deveria?
Portugal, nos últimos anos, deu um enorme salto quantitativo, foi tal a mudança que se chegou a batizar como o “milagre português”. Hoje em praticamente todo o território nacional há disponibilidade de água com qualidade para consumo humano e disponibilidade de saneamento.
Se é verdade que ao longo dos últimos anos o país fez este investimento estratégico que impactou positivamente na nossa qualidade de vida, também é verdade que hoje estamos confrontados com a necessidade de investir na manutenção e substituição das redes, que em alguns casos já estão obsoletas e que requerem enormes investimentos, bem como, investir na promoção da eficiência hídrica.
Não é aceitável, que ao mesmo tempo que temos regiões do país em situação de seca extrema, alguns sistemas urbanos de distribuição apresentem elevadas percentagens de perdas de água. É urgente apostar na redução das perdas de água e da água não faturada, é a meu ver, um objetivo que deve mobilizar as entidades gestoras, deve mobilizar o país! Por outro lado, é igualmente importante apostar na água residual tratada e em algumas regiões, como por exemplo no Algarve na dessalinização.
E a nível europeu?
Na Europa, o debate não é muito distinto. A seca é obviamente uma preocupação global. Erik Orsenna, lançou recentemente um livro com um título muito sugestivo: 'A Terra tem sede'. De facto, segundo o mesmo autor, “a era dos climas temperados chegou ao fim. Até na doce França, um rio como o Ródano verá o seu caudal atingido por uma arritmia cada vez mais perigosa: demasiada água por momentos, não a suficiente demasiadas vezes”, e refere também que “o futuro é tão mais inquietante quanto, desde 1980, a procura de água potável tem vindo a aumentar consistentemente ao ritmo de 1% ao ano, em consequência, os estudos mais otimistas preveem uma necessidade acrescida de 20% em 2050.”
Efetivamente, as alterações climáticas representam, uma das ameaças mais significativas e generalizadas tanto para a natureza como para as sociedades. As suas consequências são de grande alcance, com uma intensificação de fenómenos meteorológicos extremos, como secas, inundações e ondas de calor. A água está obviamente interligada de forma estreita com o ambiente e, portanto, profundamente afetada pelas alterações climáticas, que estão a alterar o ciclo hidrológico, com um impacto negativo tanto na quantidade como na qualidade da água.
Neste contexto de riscos acrescidos, os operadores de água têm estado na vanguarda da luta contra as alterações climáticas. Posso referir por exemplo, que à luz desta preocupação crescente, na última Assembleia Geral da Aqua Publica Europea (APE), definimos a questão da seca e da escassez de água como uma das principais prioridades da organização, ora, quando a “terra tem sede, o ar aquece, os solos secam, as plantas sofrem, as florestas ardem” (Erik Orsenna), e claro, nós, Seres Humanos, também sofremos!
As zonas mais afetadas pela seca são o litoral alentejano e o Algarve. Quais as medidas que são precisas tomar para reverter esta situação? Tanto a nível político, como ambiental.
Julgo que perante este preocupante cenário, as respostas têm sido assertivas e corajosas, quer por parte do Governo, quer das entidades gestoras e da APA. Têm sido tomadas uma série de medidas, entre as quais destaco a imposição da redução da cota de água na barragem de Odeleite para uso agrícola e para os campos de golfe em 20%, ou 50% no caso de os campos de golfe terem capacidade para reutilização de água, assim como a intenção de rever os títulos de utilização dos recursos hídricos que foram atribuídos, e a redução de 15% do consumo de água de massas subterrâneas.
Em paralelo, o lançamento do projeto da dessalinizadora do Algarve pela Águas dos Algarve que vai produzir 16 milhões de metros cúbicos de água, o que significa mais de 20% das necessidades de abastecimento público do Algarve, estimado em 72 milhões de metros cúbicos, bem como a aposta na produção de APR - Água para Reutilização e as campanhas de moderação de consumo de água.
É importante que os jovens deem a sua opinião, mas é igualmente importante que percebam os esforços que estão a ser feitos, as medidas que estão a ser tomadas
Os protestos que estão a ser feitos por associações e organizações em defesa do clima deverão ser feitos nos moldes em que estão a acontecer? Como por exemplo, os bloqueios de estradas, atirar tintas a monumentos ou a 'pintura' de rios, como aconteceu no Sena, em 2011.
Protestar e lutar por causas, ainda para mais causas justas, é um direito e um dever, mas discordo em absoluto com este tipo de formas de protesto, saber protestar e lutar por causas é também respeitar os princípios básicos de liberdade e democracia, atos de violência e vandalismo, não são formas democráticas de protesto.
No caso em concreto, é importante que estes manifestantes percebam que a emergência climática vai da urgência à complexidade. Combate-se com ações concretas, combate-se com ações que promovam a eficiência, mas também a suficiência (energética e hídrica) ou seja, através de políticas, mas também através do uso racional dos recursos, então é uma missão de todos! Olho mais para este caso como um certo conflito de gerações, se por um lado, e como já tenho tido oportunidade de referir, é legítimo que as gerações mais novas exijam que os atuais decisores políticos e gestores acelerem a transição, é igualmente importante que percebam que o tema é extremamente complexo.
Que outro tipo de ações de poderiam realizar por forma a chamar à atenção da sociedade civil e do poder político?
Em primeiro lugar com um amplo diálogo intergeracional. Se a meu ver há, como disse há pouco, um conflito de gerações, o mesmo só pode ser resolvido com diálogo. É importante que os jovens deem a sua opinião, mas é igualmente importante que percebam os esforços que estão a ser feitos, as medidas que estão a ser tomadas. Que percebam que a Europa é o motor mundial da descarbonização, que a Europa é a força motriz na mitigação das alterações climáticas e de um mundo mais sustentável, e que Portugal é um dos Estados-membros mais ambiciosos e determinados em atingir a meta da neutralidade carbónica até 2050.
Penso, no entanto, que não obstante alguns acontecimentos recentes, a maioria dos jovens ou cidadãos em geral, preocupados com estes temas, agem efetivamente pela via das alterações comportamentais, ou seja, reduzindo os consumos, tendo praticas de reutilização e reciclagem, reduzindo os desperdícios alimentares, entre outros. Escolhendo produtos e serviços de empresas comprometidas com o meio ambiente, promovendo iniciativas de base comunitária, participando ativamente e de forma cívica com iniciativas e propostas.
Em relação à emergência climática e seca no território, as políticas públicas apresentadas em Portugal têm sido suficientes?
Em 2015, quando o Acordo de Paris foi assinado, Portugal já tinha assumido metas de redução de emissões enquadradas no pacote 2030 da União Europeia e em 2016, Portugal completou o processo de ratificação do Acordo de Paris, tendo sido um dos primeiros países do mundo a fazê-lo, e apresentou medidas de limitação dos Gases com Efeito de Estufa. No entanto, sabemos bem, é importante aumentar a velocidade da descarbonização e esta é uma missão conjunta, para a qual são necessárias ação concretas do setor público, mas também do setor privado e da sociedade civil.
Que exemplos a nível nacional Portugal poderia ter?
Como referi, o nosso pais está altamente comprometido com as metas definidas, é necessário continuar e reforçar o caminho, ou seja, aumentar a nossa capacidade eólica e solar por ano para eletrificar a economia a baixo custo, são necessárias novas cadeias de valor, acelerar a eletrificação da economia e a promoção da energia verde e a inovação tecnológica, reforçar a utilização de hidrogénio verde, de combustíveis de baixo carbono e de tecnologias que permitam a captura, utilização e armazenamento de carbono, reforçar a aposta na digitalização, apostar numa eficaz política florestal, uma vez que a floresta e o solo são fundamentais para sequestrar emissões de GEE.
Em que países há políticas que estão, efetivamente, a ter resultados?
A Europa, como referi lidera este processo, posso dar alguns bons exemplos: a Suécia é frequentemente citada como um exemplo de sucesso na descarbonização. Cerca de 80% da eletricidade do país é proveniente de fontes renováveis, como a energia eólica e hidrelétrica. Além disso, a Suécia está a reduzir gradualmente o uso de combustíveis fósseis nos transportes e na indústria. Já a Noruega é líder na eletrificação de transportes, com uma grande proporção de veículos elétricos nas estradas e obtém a maior parte de sua eletricidade a partir de fontes renováveis, como hidrelétrica e eólica. A Dinamarca é um dos líderes mundiais na produção de energia eólica offshore, sendo que a energia eólica desempenha atualmente um papel significativo na geração de eletricidade do país. A Islândia é também um bom exemplo, com uma produção elétrica quase 100% a partir de fontes renováveis, como geotérmica e hidrelétrica. Além disso, o país tem uma frota crescente de veículos elétricos. A Alemanha, lançou o seu programa de transição energética, que ficou conhecido como Energiewende, que inclui o investimento em energias renováveis, como solar e eólica, e a redução gradual do uso de carvão na geração de eletricidade. Ainda na Europa, mas fora da EU, o Reino Unido tem feito avanços significativos na redução das emissões de carbono, com a redução do uso de carvão na geração de eletricidade e investimentos em energia eólica offshore.
Já fora do espaço europeu, a Nova Zelândia está a investir em energia renovável e eletrificação dos transportes e embora a China seja um dos maiores emissores de carbono do mundo, o país tem feito avanços notáveis na promoção de energia renovável, especialmente energia solar e eólica, estando também a efetuar uma grande aposta em veículos elétricos e transportes públicos com baixas emissões de carbono.
Nos nossos países as consequências da guerra, fazem-se sentir essencialmente na questão financeira, isto é, aumento de preços, inflação e consequente aumento das taxas de juro
É o único português membro da direção da Aqua Publica Europea, associação que representa todas as Empresas Públicas de Água na Europa. Já existem sinais de alguma degradação causada pelo impacto da guerra na Ucrânia?
Os impactos diretos, são obviamente o aumento dos preços dos bens e serviços, muito especialmente o brutal aumento dos preços na construção civil e em algumas matérias-primas fundamentais para a nossa atividade. Mas uma degradação dos serviços de abastecimento de água ou de saneamento não, a não ser infelizmente na própria Ucrânia, onde várias infraestruturas críticas e essenciais foram destruídas em consequência da agressão russa.
Na Aqua Publica Europea, temos vindo a tentar apoiar os serviços de água da Ucrânia e fizemo-lo através de numa declaração conjunta em 2022. Estamos a acompanhar de perto a situação, mantendo um diálogo estreito com a Associação Ucraniana de Serviços de Água e tentando dar apoio direto, este apoio tem sido possível com o enorme auxílio dos colegas polacos, especialmente da Warsaw Municipal Water and Sewage Company, empresa de águas de Varsóvia. Aliás, eu fui o autor de uma proposta junto da AquaPublicaEuropea para a criação de uma 'task-force' europeia de ajuda à reconstrução das redes de água e saneamento nas cidades ucranianas destruídas pela guerra.
Mas como referi, nos nossos países as consequências da guerra, fazem-se sentir essencialmente na questão financeira, isto é, aumento de preços, inflação e consequente aumento das taxas de juro que não é uma consequência direta, mas uma resposta à subida da inflação na Europa e no mundo.
Além da guerra, quais são as maiores preocupações neste âmbito a nível europeu?
Da guerra ou guerras, pois infelizmente, temos que acrescentar a recente crise no Médio Oriente. Mas respondendo à questão, as grandes preocupações como já referi são as alterações climáticas, a segurança energética, os eventos extremos, claro, muito especialmente a seca.
Se por um lado partilhamos destas preocupações ambientais e geopolíticas, temos também neste momento importantes desafios políticos e legislativos na UE, como seja a revisão da diretiva comunitária de águas residuais, a implementação da nova diretiva comunitária da qualidade da água para consumo humano (que já foi transposta para o direito nacional), ou temas tão importantes e preocupantes como por exemplo o das PFAS na água, ou seja, as substâncias perfluoroalquiladas, as chamadas substâncias químicas 'eternas' que persistem nos solos e podem contaminar a água e que na Europa e Reino Unido foram identificados em 17 mil locais, neste caso, o foco é nas metodologias de deteção e nas restrições de PFAS.
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