"Risco e vulnerabilidade têm muito impacto na saúde mental de refugiados"
Uma das porta-vozes da Portugal com ACNUR, Joana Feliciano, alerta que "cerca de 22% dos adultos que experienciam contextos de deslocação forçada acabam por sofrer perturbações de saúde mental" na sequência das várias emergências humanitárias vividas em todo o planeta, deixando-lhes "cicatrizes invisíveis".
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Uma em cada cinco pessoas refugiadas debate-se com problemas de saúde mental como consequência das experiências traumáticas que enfrenta antes, durante e após a sua fuga.
Este é o mote de uma campanha de sensibilização da Portugal com ACNUR (Agência da ONU para os Refugiados) que visa apoiar e promover a saúde mental entre a população deslocada à força, seja em contextos de conflitos, de perseguições, de violações de direitos humanos, ou de alterações climáticas.
"Muitas destas pessoas que são forçadas a fugir acabam por viver numa mentalidade de sobrevivência. As suas feridas psicológicas acabam por se aprofundar com cicatrizes invisíveis", revela Joana Fortunato, responsável de comunicação e marketing da Portugal com ACNUR, em entrevista ao Notícias ao Minuto.
"A vulnerabilidade é um sinónimo das pessoas forçadas a fugir", destaca.
Neste momento, contabilizam-se 114 milhões de pessoas deslocadas à força, 1,9 milhões de crianças nasceram com o estatuto de refugiadas, 23,3 milhões das pessoas refugiadas no mundo estão numa situação prolongada de deslocação forçada, números que suplicam pela solidariedade das populações mundiais para dar resposta à crise de refugiados.
Apesar de o mundo estar de olhos postos na situação vivida em Israel e na Palestina, há um sem número de emergências humanitárias "esquecidas", que também precisam de nós. Neste sentido, a porta-voz da Portugal com ACNUR apela à ajuda através de campanhas de angariação de donativos - como a da saúde mental e a de Natal.
As pessoas são as vítimas. Famílias e gerações inteiras que são deslocadas e têm de recomeçar as suas vidas
Os anos de 2022 e 2023 foram anos com recordes de deslocados devido às diferentes guerras e crises climáticas que se vivem no planeta. Qual é a realidade atual?
No final do ano passado, contávamos com 103 milhões de pessoas forçadas a fugir. Em meados de setembro, já se estimavam ser 114 milhões. São 114 milhões de pessoas, onde não estão contabilizadas todas as emergências, que se têm tornado cada vez mais complexas, mais duradouras no tempo e também com maior escalada, como é o caso do que está a acontecer atualmente na Palestina. São pessoas refugiadas, uns que fogem dentro das fronteiras do próprio país em busca de segurança e proteção, outros repatriados e requerentes de asilo, todos eles fogem de algo... Conflitos que escalam, perseguições, vítimas de violações de direitos humanos e até devido às próprias alterações climáticas, de eventos extremos que temos estado a presenciar, como os sismos em Marrocos e na Síria e no sul da Turquia. Tudo isto acaba por ser o ingrediente imperfeito da nossa história mundial e as pessoas são as vítimas. Famílias e gerações inteiras que são deslocadas e têm de recomeçar as suas vidas.
As crianças, que estão no início das suas vidas, muitas vezes não conhecem outra realidade...
Dos 114 milhões de pessoas, muitas são crianças. Para se ter uma noção concreta, entre 2018 e 2022 foi estimado que nasceram em média 385 mil crianças refugiadas em cada ano. Ou seja, durante este período, estamos a contabilizar 1,9 milhões que nasceram com o estatuto de refugiadas, crianças essas que estão em situações de emergências humanitárias que perduram no tempo e não conhecem outra realidade sem ser aquela, num contexto de refugiadas com as suas famílias e algumas até separadas delas.
Muitas destas vítimas vivem em contextos prolongados de deslocação forçada. O que significa isto?
Cerca de 67% das pessoas refugiadas no mundo - uma estimativa de 23,3 milhões - estão numa situação prolongada de deslocação forçada. Isto acontece quando as pessoas estão há cinco ou mais anos em exílio. Estamos a falar de situações como as que se vivem no Afeganistão, na Síria (com uma crise de mais de 12 anos), no Sudão do Sul, pelo próprio povo rohingya, uma minoria de Myanmar, na Somália, na República Democrática no Congo, no Burundi, na Eritreia, na República Centro Africana, entre outros, que estão em emergências humanitárias que não têm uma solução rápida e eficaz.
Uma em cada cinco pessoas refugiadas têm potencial de enfrentar problemas de saúde mental - angústia, ansiedade e depressão
Estas crises trazem consequências muito negativas na vida destas pessoas. Algumas com vidas estáveis, que perderam a casa e familiares, tiveram de sair do país e ser reintegradas num outro. Isto deixa-as numa posição de enorme vulnerabilidade…
A vulnerabilidade é um sinónimo das pessoas forçadas a fugir. Mas as pessoas deslocadas também têm um grande nível de resiliência face às circunstâncias que alteraram e destruíram a sua vida. Isto exige um grande encaixe emocional e uma capacidade de discernimento para pedir ajuda. Na origem da sua vulnerabilidade estão a separação das suas famílias, eventualmente os efeitos da xenofobia de que podem ser vítimas, a falta de oportunidades de subsistência, a falta de capacidade de autonomia, que acaba por ter um grande impacto emocional na reestruturação da pessoa que precisa de tempo e apoio. Além de que as próprias viagens na deslocação podem ser perigosas, dependendo da origem e do destino da chegada.
Essas situações extremas deixam marcas no bem-estar e na saúde mental destas pessoas a longo prazo?
Para percebermos em termos práticos, uma em cada cinco pessoas refugiadas têm potencial de enfrentar problemas de saúde mental - angústia, ansiedade e depressão. Cerca de 22% dos adultos que experienciam contextos de deslocação forçada acabam por sofrer perturbações de saúde mental. Há casos mais extremos de psicose e de perturbação bipolar, assim como pessoas que começam a apresentar sintomas de stress pós-traumático e até de risco de suicídio. Este risco e vulnerabilidade têm muito impacto na saúde mental da pessoa refugiada e estão presentes antes, durante e até mesmo depois da fuga, enquanto as pessoas ainda se estão a reintegrar na comunidade de acolhimento e a adaptar-se à sua nova vida.
Muitas destas pessoas que são forçadas a fugir acabam por viver numa mentalidade de sobrevivência (...) as suas feridas psicológicas acabam por se aprofundar com cicatrizes invisíveis
Estas patologias são mais recorrentes em adultos ou crianças? A perceção dos adultos é maior ou os mais pequenos têm mais propensão para sofrerem traumas?
Estas situações vividas por crianças e adolescentes fazem com que estejam expostas à violência, negligência ou abuso infantil e há propensão para afetar a saúde mental e até um risco de suicídio numa fase posterior da vida, por isso é que é tão importante que existam programas de apoio psicossocial adaptados aos contextos e a cada faixa etária para conseguirmos minimizar o risco e dar ferramentas a esta população de se poder gerir. Por exemplo, na Ucrânia, põem em prática a terapia com recurso a animais, principalmente com crianças com necessidades educativas especiais, que é uma boa ferramenta para os ajudar a exprimir emoções.
Uma voluntária nossa, profissional de saúde mental no contexto da guerra da Ucrânia, ela própria refugiada e psicóloga, diz que muitas destas pessoas que são forçadas a fugir acabam por viver numa mentalidade de sobrevivência porque tiveram de se adaptar rapidamente e desenvolver uma capacidade de resiliência para enfrentar os tempos de crise. Se continuarem nessa mentalidade de sobrevivência, as suas feridas psicológicas acabam por se aprofundar com cicatrizes invisíveis.
As consequências destes cenários devastadores - como o que presenciamos agora diariamente na Faixa de Gaza - são comuns em todo o tipo de emergências...
O que se está a passar na Faixa de Gaza, onde milhões de crianças e adultos são as principais vítimas de questões para as quais não contribuíram, tem impacto em poderem vir a sofrer várias perturbações, porque vivem situações e quadros perigosíssimos. As pessoas buscam desesperadamente por segurança e recursos basilares enquanto seres humanos - alimentos e água - e uma casa, um abrigo, que os previna do frio. Em muitas situações humanitárias, há invernos muitíssimo rigorosos.
Nesse sentido, o ACNUR tem um programa de apoio psicossocial, com profissionais especializados, do qual já beneficiaram mais de 472 mil pessoas deslocadas…
Este programa tem em conta todas as nuances e necessidades de adaptação, as intervenções adaptadas em homens, mulheres, raparigas, rapazes, independentemente da idade, origem, etnia ou religião, assim como tem um contexto de cuidados específicos para grupos mais vulneráveis como mulheres e crianças vítimas de violência de género e pessoas que já tenham transtornos mentais pré-existentes ao que motivou a deslocação forçada.
Inclui uma formação de profissionais de saúde, garante o apoio comunitário e integração da saúde mental em diversos setores - proteção, educação, prevenção e uma resposta à violência de género. Voluntários e profissionais de saúde são capacitados para se adaptarem ao contexto das pessoas refugiadas, conseguirem identificar e gerir problemas de saúde mental, darem ferramentas a estas pessoas para que se sintam capazes de dar mais alimento à sua esperança e serem agentes da sua própria mudança.
Também existe uma estratégia para a educação de refugiados até 2030 em que se promove a aprendizagem social e emocional através de técnicas adaptadas para crianças refugiadas na tentativa de melhorar os níveis de concentração, de aprendizagem e fomentar relacionamentos saudáveis.
O conceito de saúde mental é claro para todas as pessoas que estão em contextos de emergência humanitária?
No contexto dos refugiados rohingya, uma minoria de Myanmar, muitos estão no campo de refugiados de Cox's Bazar, o maior do mundo. O ACNUR formou 100 conselheiros comunitários, em que 80 deles são refugiados, envolvendo a própria comunidade na resposta. Essas pessoas acabam por se empoderar, ter a capacidade de estar junto dos seus pares e sentirem que a sua voz conta. Este papel dá um novo propósito à sua existência. No terreno, os agentes humanitários viam que a saúde mental era um novo conceito para os rohingya. Anteriormente, eles percebiam o que era sentir dor física, mas não conseguiam compreender que a saúde mental tinha um impacto na sua saúde física, como sentir stress e ansiedade, que em grandes quantidades acaba por ter impacto na sua saúde física.
Estas pessoas, pelo único motivo de terem nascido onde nasceram, estão a viver numa situação que as obriga a fugir e a deixar tudo para trás
Em Portugal, há uma atitude acolhedora para com os refugiados ou são olhados como 'intrusos' no país?
Da nossa experiência, que fazemos um trabalho de sensibilização entre várias faixas etárias, desde jardins de infância até ao nível universitário, e dentro de empresas com os colaboradores, posso dizer que as pessoas que vivem em Portugal são bastante recetivas, principalmente a combater preconceitos e estigmas. Contudo, o nível de consciencialização sobre estes temas às vezes não é muito e também faz parte do nosso trabalho consciencializar tantas futuras gerações do nosso país para este cenário atroz que vivemos no mundo.
A tendência é falarmos mais da atualidade, nomeadamente os conflitos vividos na Ucrânia e na Palestina. Considera que se acaba por negligenciar as várias emergências humanitárias que se vivem no mundo?
Costumamos dizer que são esquecidas, num momento em que as emergências humanitárias duram cada vez mais anos e exigem recursos imensuráveis principalmente a quem está no terreno e às comunidades de acolhimento que têm de se adaptar para dar uma resposta a estes fluxos de pessoas. Falamos de emergências subfinanciadas como no Bangladesh, República Democrática do Congo, Sudão, Colômbia, Líbano, Sudão do Sul, o Egito, a Etiópia, entre tantas outras… Muitos destes países acolhem pessoas refugiadas e já têm as suas próprias vulnerabilidades e muitos desafios a enfrentar. É normal que estas emergências não estejam na ordem do dia, mas é para dar este 'palco' ao que fica esquecido no meio de tantas coisas que trabalhamos, para que se tenha noção do mundo que nos envolve e que estas pessoas, pelo único motivo de terem nascido onde nasceram, estão a viver numa situação que as obriga a fugir e a deixar tudo para trás.
A capacidade de conseguirmos dar uma resposta eficaz e em curto espaço de tempo consegue salvar milhões de vidasO trabalho do ACNUR no terreno é fundamental para ajudar quem mais precisa e é obrigado a deixar tudo para trás para ter uma vida digna. Nos casos como catástrofes naturais, por exemplo, em que tudo vai acabando por retomar a sua normalidade, com a reconstrução do país, os recursos são alocados a outros locais ou perduram no tempo?
Assim que é declarada uma emergência humanitária, a Portugal com ACNUR rapidamente se mobiliza para conseguir perceber as necessidades reais e, por isso, há um trabalho proativo para intervir e garantir que até 72 horas consegue enviar mantimentos e pessoal qualificado para dar resposta a mais de 600 mil pessoas no local. Desde o primeiro momento tentamos garantir a segurança das pessoas, o abrigo, os serviços básicos - kits de higiene, água, cuidados de saúde primários, a educação. Depois disso há necessidade de manter as equipas no terreno para garantir que existem programas para assegurar que as crianças continuam a ter acesso à educação, que as famílias têm meios de subsistência para poderem fazer face às necessidades do dia a dia e acompanhá-las em termos psicossocial e aconselhamento jurídico. A solidariedade reativa é essencial, porque a capacidade de conseguirmos dar uma resposta eficaz e em curto espaço de tempo consegue salvar milhões de vidas.
O 'ideal' - embora irreal - seria uma solução duradoura para resolver as emergências humanitárias...
A solução era conseguir que estes conflitos, estas crises terminassem e assim este processo de exílio prolongado também terminasse em segurança para estas pessoas, que pudessem eventualmente voltar para as suas casas e para os seus países de origem em segurança, ou poderem ser acolhidas nos países que os receberam, procurarem trabalhos, integrarem-se nos sistemas educativos e refazerem as suas vidas.
Quando temos de fazer cortes na resposta humanitária, estamos a fazer cortes na esperança das pessoasNessa infeliz impossibilidade, como podem os portugueses ajudar o ACNUR a diferença na vida destas pessoas?
Podem fazê-lo estando a par do trabalho da Portugal com ACNUR, podem fazer um donativo, tornando-se doadores pontuais ou regulares mediante a sua disponibilidade. Através do site, as pessoas podem alocar cada euro doado para o destino que quiserem.
Qualquer donativo que seja feito equivale a uma resposta concreta no terreno. Por exemplo, no caso da Ucrânia, com 19 euros conseguimos fornecer serviços de proteção especializados a uma pessoa necessitada, seja a nível jurídico como a nível psicossocial e com 29 euros, conseguimos garantir sessões de terapia de grupo para crianças em risco, um dos públicos mais vulneráveis.
As pessoas e as organizações podem contribuir para as várias emergências, principalmente as sub financiadas, em que a resposta humanitária é escassa e está em risco de ser cortada em muitas das emergências. Quando temos de fazer cortes na resposta humanitária, estamos a fazer cortes na esperança das pessoas. Por isso, fazemos ações de sensibilização e angariação de fundos, tão essencial para garantir que estes serviços de proteção especializados continuem a existir em mais de 135 países.
A que se refere quando fala de emergências sub financiadas?
As emergências sub financiadas estão ligadas às emergências esquecidas - com o caso de Moçambique, Sudão e Somália -, que não estão sempre na mente das pessoas. Haver a possibilidade de um financiamento flexível é fundamental porque podemos alocar o dinheiro doado às necessidades mais prementes. Para nós não é só dinheiro, é ter a capacidade de salvar vidas no terreno, de reforçar a esperança destas pessoas que dependem de nós.
A Portugal com ACNUR desenvolve ainda iniciativas para dar resposta a várias emergências humanitárias. Há alguma em curso neste momento?
Sim, a campanha de Natal que é lançada dia 20 de novembro [hoje - Dia Internacional dos Direitos da Criança] e estará no ar até 6 de janeiro de 2024. Chama-se 'Não é uma fase, é uma vida' e apela à solidariedade e à compreensão da realidade de mais de 23 milhões de pessoas refugiadas no mundo, que vivem numa situação de deslocação forçada há cinco ou mais anos. Estas situações não são pontuais, são contextos de vida em que gerações inteiras de famílias estão deslocadas, em que crianças nascem e crescem enquanto refugiadas e não conhecem outra realidade.
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