"O PS precisa de se apresentar de cara lavada. A casa cheira a mofo"
Depois de se candidatar contra António Costa nas eleições diretas do PS de 2016, 2018 e 2021, Daniel Adrião irá agora enfrentar Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro e é o entrevistado do Vozes ao Minuto desta segunda-feira.
© Imagem cedida por Daniel Adrião
Política Liderança do PS
Daniel Adrião é dirigente nacional do PS desde 2016 e líder da tendência Democracia Plena. É o terceiro candidato à liderança do partido e, em entrevista ao Notícias ao Minuto, diz que só decidiu candidatar-se depois de perceber que os dois outros nomes são de "continuidade".
"O PS precisa de se apresentar aos portugueses de cara lavada", diz, defendendo uma visão reformista.
As eleições para decidir o sucessor de António Costa enquanto secretário-geral do PS estão marcadas para os dias 15 e 16 de dezembro. Daniel Adrião, que já se candidatou contra Costa nas eleições diretas de 2016, 2018 e 2021, irá agora enfrentar Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro, atual ministro da Administração Interna.
Nesta entrevista, defendeu uma nova geringonça e instou (mais uma vez) os adversários a alinharem em debates a três. Enviou, até, cartas aos "camaradas", mas só José Luís Carneiro respondeu.
Somos cidadãos de segunda na União Europeia. E isto tem de ser dito porque a maioria dos cidadãos não o sabe. Pensam que votam em Portugal da mesma forma que se vota lá fora e costumo dizer que isto é dos segredos mais bem guardados do regime
É a 4.ª vez que sonha ser líder do PS. Candidatar-se à liderança dos socialistas é já um 'statement'?
A minha candidatura emana da vontade de um conjunto de militantes do partido socialista que se reveem num ideário e num novo modelo de governança democrática. Sentimos que a democracia não funciona bem nem a montante, nem a jusante. Primeiro, no partido, porque há muitas anomalias e entorses no funcionamento interno da democracia do Partido Socialista (PS) Sentimos que há necessidade de aprofundar e melhorar os mecanismos de participação democrática dentro do PS, nomeadamente transferindo o poder de decisão para os militantes que devem ser ouvidos e ter oportunidade de poder decidir, nomeadamente na escolha de candidatos a lugares políticos. Depois, definir posições políticas que o partido venha a tomar, até questões que tenham a ver com política de alianças. Isto, no fundo, é aprofundar os mecanismos de democracia participativa dentro do partido.
A jusante, no sistema de representação, defendemos que deve haver uma alteração profunda da lei eleitoral. Em Portugal temos as leis mais anacrónicas e obsoletas da Europa e dos países democráticos do mundo porque é um sistema que praticamente não existe em lado nenhum. A ciência política considera-o, na literatura, como um sistema de listas fechadas em que os cidadãos apenas podem votar em partidos. Isto é uma situação que não existe em país praticamente nenhum na Europa à exceção da Espanha e Portugal. Nos outros 25 países da União Europeia os cidadãos têm a possibilidade de votar não apenas no partido mas também na pessoa que querem eleger. Aliás, há até sistemas em que o voto é ordinal, isto é, os cidadãos podem ordenar a lista. Estes, considero, são sistemas muito mais democráticos, onde os cidadãos têm mais direitos eleitorais. Nesta perspetiva nós somos cidadãos de segunda na União Europeia. E isto tem de ser dito porque a maioria dos cidadãos não o sabe. Pensam que votam em Portugal da mesma forma que se vota lá fora e costumo dizer que isto é dos segredos mais bem guardados do regime. De facto as pessoas nunca foram informadas das diferenças entre a forma como se vota em Portugal e nos outros países da Europa.
Além de nenhum dos outros candidatos abordar nenhum destes temas, a nossa candidatura apresenta-se também em defesa de uma agenda reformista e transformacional para o país. Achamos que o país tem sido governado em função de uma mera conjuntura, e que não tem havido, de facto, uma visão estratégica. Quem governa deve fazê-lo não a pensar só nas próximas eleições mas sim nas próximas gerações. E isso implica fazer reformas estruturais. Uma das que defendemos é a urgência da crise habitacional.
Ia questioná-lo exatamente sobre esses cinco objetivos para a sua candidatura, dos quais se destaca a criação de um pacto de regime para a habitação e a realização de eleições diretas no partido. Pode explicá-los?
Claro. A habitação é uma prioridade para nós. Entendemos que é preciso resolver de vez e que deve ser feito um pacto de regime onde deve haver um alargado consenso entre todos os partidos, desejavelmente. Este plano é proposto a uma década para de facto podermos garantir o acesso a uma habitação digna para todos os portugueses. Há uma grande falta de casas não só para as pessoas mais pobres mas também para a própria classe média, e isto é uma profunda injustiça social. Isto impede gerações inteiras de realizarem os seus projetos de vida. Isso leva a que muitos jovens estejam a sair do país e que haja uma fuga de talento. Essa fuga prende-se, fundamentalmente, com a escassez de habitação e os baixos salários. Estes são dois problemas nucleares e, por conseguinte, dois dos nossos focos de trabalho. Quanto aos salários, refiro-me também aos salários médios… A classe média tem vindo a perder poder de compra e Portugal é dos países onde está mais empobrecida.
Chegando ao terceiro ponto, para pagarmos mais salários precisamos de mudar o paradigma económico. O atual ainda é assente na mão-de-obra intensiva e nos baixos salários, e precisamos de fazer a transição para uma economia assente no conhecimento intensivo, nos recursos humanos altamente qualificadas e na economia de alto valor acrescentado. A economia portuguesa é de baixa complexidade com um fraco perfil de especialização e isso impede o país de conseguir absorver mão-de-obra qualificada. Essa mão--de-obra existe, mas depois mão temos capacidade de lhe pagar salários competitivos que lhes permitam uma vida digna.
O quarto ponto é a saúde, que também deve ser uma das prioridades do nosso Estado Social. Contudo, a verdade é que está a falhar, sobretudo para os mais vulneráveis. Precisamos de uma reforma profunda do nosso SNS que permita uma remuneração atrativa para todos os nossos profissionais de saúde. Temos de ter no centro das nossa preocupações prestar os melhores cuidados de saúde às nossas pessoas. Sabemos que neste momento o SNS concorre com os privados, designadamente na contratação de médicos. Ainda agora foi lançado um concurso para a contratação de médicos no SNS e grande parte das vagas ficou por completar. E porquê? Porque a remuneração não é atrativa e o privado paga melhor. Temos de alocar as pessoas mas também fazer as parcerias que sejam vantajosas para que as pessoas possam, de facto, ter cuidados de saúde de primeira qualidade.
O novo ciclo político precisa de novos protagonistas com novas ideias, propostas. O PS precisa de se apresentar aos portugueses de cara lavada. É preciso oxigenar o PS, a casa cheira a mofo
Defende, portanto, sinergias entre o público e o privado?
E o social…
Fica a faltar o quinto objetivo.
Certo. Esse tem que ver com um Estado eficiente. É preciso reforçar os mecanismos que assegurem o pleno funcionamento das instituições do Estado em termos de capacidade de recursos, independência técnica, mas também de transparência, integridade e escrutínio. Precisamos de um modelo de Estado eficiente e desburocratizado, centrado na boa gestão dos recursos públicos mas ao mesmo tempo preocupado com as desigualdades sociais.
Ainda sobre a sua candidatura, o que o diferencia dos restantes candidatos?
O facto de eu representar uma lufada de ar fresco. Os outros dois candidatos são, no fundo, da continuidade, comprometidos com a herança do último ciclo político que agora terminou. O novo ciclo político precisa de novos protagonistas com novas ideias, propostas. O PS precisa de se apresentar aos portugueses de cara lavada. É preciso oxigenar o PS, a casa cheira a mofo. Foram muitos anos de poder onde foram cometidos erros, onde houve abusos. Isso foi evidente ao longo dos últimos anos. Sobretudo nos últimos dois, com todas as polémicas que envolveram o Governo. Houve uma substituição sucessiva de membros do Governo, e outras que ficaram por fazer… Provavelmente ter-se-ia evitado o desfecho que aconteceu se tivessem sido tomadas medidas de escrutínio, como alertei ao longo dos últimos anos. Neste momento as decisões são tomadas pelo líder do partido, que concentra todo o poder, e depois os critérios são os da fidelidade e seguidismo
Acha que as medidas de escrutínio tomadas pelo Governo pecam por tardias e, quiçá, pouco eficazes?
Pecam de tal maneira por tardias que o Governo caiu. E sim, são necessárias medidas adicionais. É preciso uma nova política, uma nova visão para o país, que nos últimos anos não teve uma visão estratégica. Não teve uma agenda reformista e limitámo-nos a gerir a conjuntura. Claro que tivemos situação a que tivemos de dar resposta como a crise pandémica e as guerras, mas ainda assim houve um grande défice de visão estratégica. E os portugueses merecem pessoas mais bem preparadas para liderar. Por isso é que temos de mudar os métodos de seleção e recrutamento da classe política.
O que é que propõe?
Neste momento as decisões são tomadas pelo líder do partido, que concentra todo o poder, e depois os critérios são os da fidelidade e seguidismo. E os critérios que precisamos são os do trabalho, mérito e proximidade às pessoas. Só tendo melhores políticos teremos melhores políticas.
As maiorias absolutas são sempre nefastas. Tenho esta opinião há muitos anos, e mantenho-a. E de facto, o PS governou muito melhor no último ciclo político, sem maioria absoluta
Acha que o partido continua a ser um garante da democracia, mesmo com estas polémicas? Conseguirá eleger essas pessoas de quem fala?
O desafio é mesmo esse e o que se discute nestas eleições internas. Os militantes estão a ser chamados a selecionar quem entendem estar em melhores condições para estes novos desafios que o país tem. Portanto, espero e desejo grande discernimento da parte dos militantes, que coloquem os interesses do país à frente dos próprios.
Desejo um novo quadro parlamentar que obrigue o PS a negociar - tanto com os partidos à sua esquerda como com os partidos do arco da governação ao centro, designadamente o PSD
O Partido Socialista vive dias difíceis. O que o trouxe até aqui?
As maiorias absolutas são sempre nefastas. Tenho esta opinião há muitos anos, e mantenho-a. E de facto, o PS governou muito melhor no último ciclo político, sem maioria absoluta, do que agora com ela. Isso é consensual à sociedade portuguesa. As maiorias absolutas tendem a criar uma confiança excessiva e uma sensação de que se é intocável. E isso é a pior coisa que pode acontecer em democracia. Aí, eu acho que o PS foi vítima das suas próprias circunstâncias. Por conseguinte, desejo um novo quadro parlamentar que obrigue o PS a negociar - tanto com os partidos à sua esquerda como com os partidos do arco da governação ao centro, designadamente o PSD.
Portanto, consigo, o partido admite uma nova geringonça?
O PS deve estar disponível para dialogar com todas as forças políticas, as democráticas. Deve estar disponível para dialogar com forças políticas com quem já fez acordos anteriormente, nomeadamente o Bloco de Esquerda e o PCP. Mas também o PSD, porque há matérias onde também podemos acordar, nomeadamente na reforma do sistema eleitoral. Temos de nos centrar nas políticas, é o que interessa.
Acha que António Costa tomou a decisão certa ao demitir-se do cargo de primeiro-ministro?
Foi uma decisão que ele certamente tomou em consciência. Se ele se demitiu, é porque a sua consciência lhe disse que o devia fazer.
O PS deve ou não falar sobre este processo judicial e dar explicações aos portugueses?
Não. Acho que o PS não deve dizer nada sobre o processo judicial. Isso é um princípio sagrado, o da separação de poderes. À justiça o que é da justiça, à política o que é da política. Essa frase ficou até conhecida por ser a posição do António Costa e eu concordo. O PS não tem nada que interferir nos processos judiciais.
E considera importante um resultado das investigações que envolvem António Costa até às eleições?
Não, acho que tem de se respeitar os tempos próprios da justiça. António Costa é mais um cidadão como qualquer outro.
[Marcelo] não queria ficar para a História como o Presidente de Direita que foi muleta da Esquerda
E a atuação de Marcelo Rebelo de Sousa nesta crise política, como a vê?
Aí antecipei-me há muito tempo. Eu disse logo, quando alguns camaradas do Partido Socialista estavam muito entusiasmados com o professor Marcelo para a Presidência da República, eu avisei que o segundo mandato não seria em nada parecido com o primeiro. Sendo reeleito para um segundo mandato, claro que iria fazer de tudo - e eu disse isto na altura, com estas palavras - para ajudar a sua família política a chegar ao poder. Porque não queria ficar para a História como o Presidente de Direita que foi muleta da Esquerda. Por tudo isto, eu não apoiei Marcelo Rebelo de Sousa.
As declarações da Procuradora-Geral da República Lucília Gago, que visavam dar explicações, fizeram-no? Considerou-se esclarecido?
Foram as justificações que a Justiça entendeu que deviam ser dadas e há que respeitar a Justiça e a separação de poderes.
Já instou Pedro Nuno Santos a participar em debates. Porque acha que os recusa e que benefício acha que trariam?
Já escrevi uma carta ao meu camarada Pedro Nuno Santos e ao meu camarada José Luís Carneiro precisamente a desafiá-los para debates.
E obteve resposta?
Não obtive resposta por parte de Pedro Nuno Santos, mas falei com José Luís Carneiro.
Eu não sinto que nem eu nem José Luís Carneiro estejamos a dar argumentos à Direita, mas infelizmente já não posso dizer o mesmo de Pedro Nuno Santos
E pode partilhar connosco a resposta que este lhe deu?
Sim, e aliás, não é nenhuma inconfidência porque a posição dele é pública. Ele manifestou-a já e disse ser favorável a debates entre os três candidatos. E disse que achava que era fundamental insistir na necessidade de fazer debates. Pessoalmente, acho que os debates só fortalecem o PS, ao contrário do que disse o camarada Pedro Nuno Santos, de que isso é dar argumentos à Direita. Eu não sinto que nem eu nem José Luís Carneiro estejamos a dar argumentos à Direita, mas infelizmente já não posso dizer o mesmo de Pedro Nuno Santos.
Em que ocasiões?
Refiro-me às situações que ocorreram no Governo e que levaram à sua demissão. Por que razão é que o Pedro Nuno Santos saiu do Governo?
Considera que não devia ter-se candidatado?
Todos os candidatos são válidos e livres de se candidatar aos órgãos do PS. Considero é que há socialistas mais bem preparados para ganhar e serem candidatos a primeiro-ministro do que o camarada Pedro Nuno Santos. E se não pensasse isso não me candidatava.
Para concorrer a estes cargos não é preciso serem vedetas, mas criou-se a ideia de que a política é uma espécie de 'star sistem', mas a política não é nada disso
Quer isso dizer que se tivesse de abdicar da corrida à liderança do partido e apoiar um dos outros dois candidatos, este seria José Luís Carneiro…
Não, não quer dizer isso. E disse logo isso na primeira declaração que fiz quando anunciei a candidatura: que havia dois candidatos da continuidade e que eu me candidatei porque nenhum representava a mudança necessária. Esperei que saíssem os candidatos todos para tomar a decisão se me candidatava ou não. E quando estes dois candidatos avançaram, eu considerei que de facto havia um espaço político no país e no PS, e que era necessária a minha candidatura. Esperei que saíssem os nomes de outros camaradas meus que eu considerasse que estavam em melhores condições e mais preparados do que eu para essa missão…
E quem seriam?
Não vou falar agora sobre nomes, mas há muitos. O Partido Socialista tem 80 mil militantes e, destes, há certamente pessoas altissimamente qualificadas. Algumas até completamente desconhecidas. Para concorrer a estes cargos não é preciso serem vedetas, mas criou-se a ideia de que a política é uma espécie de 'star sistem', mas a política não é nada disso.
Um voto do Presidente da República vale tanto como o de um funcionário da higiene urbana
Não tem, ainda, apoiantes de peso declarados.
O que é que é um apoiante de peso? Em democracia todos os votos são iguais, isto é um princípio básico de um Estado democrático. Um voto do Presidente da República vale tanto como o de um funcionário da higiene urbana.
Terminando a minha questão… Sente que faltam vozes de referência dentro do PS a pedir reforma?
Sim, sem dúvida. Falta pensamento crítico dentro do partido socialista, mas não só. A todos os outros partidos e mesmo em Portugal. Precisamos de uma cidadania muito mais ativa, com cidadãos muito mais ativos.
Se nas eleições legislativas vencer o PS, que nomes apontaria para primeiro-ministro? Apontou já o nome de Mário Centeno… por que motivo o considera uma boa escolha?
O nome de Mário Centeno foi proposto por António Costa, não por mim.
Se for eleito primeiro-ministro, saio do cargo de secretário-geral do partido
Certo, mas considerou que seria um bom nome.
Sim, disse que achava que era uma boa escolha e nome com credibilidade. Mas essa questão já não está na equação, Marcelo não aceitou essa proposta. Neste momento o Partido Socialista tem de encontrar um candidato a primeiro-ministro de entre os candidatos à liderança do PS. E se eu for eleito, serei candidato a primeiro-ministro. Mas se for eleito primeiro-ministro, saio do cargo de secretário-geral do partido.
Porque é que considera essa separação tão importante?
Acho que um primeiro-ministro deve sê-lo a tempo inteiro e o secretário-geral também. Quem saiu prejudicado ao longo destes últimos anos foi o PS, que deixou de ter vida própria.
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