"Javier Milei deixa-se influenciar, mas não se deixa mandar"
Marcelo Moriconi, investigador no Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Lisboa, é o entrevistado desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.
© Marcelo Moriconi
Mundo Javier Milei
A tomada de posse do novo presidente da Argentina, Javier Milei, decorreu no domingo passado e, se a chegada do argentino à liderança do país parecia no início impossível, o novo chefe de Estado não demorou muito a mostrar que, afinal, não era. E a mudança já está em curso.
Um dia depois da tomada de posse, Milei já revogou um decreto de 2018 que impedia a nomeação de familiares para cargos públicos, nomeando a sua irmã para um cargo na secretaria-geral da presidência, e, nos últimos dias, o país viu o peso argentino a desvalorizar em mais de 50%.
O Notícias ao Minuto falou com o investigador argentino Marcelo Moriconi por forma a perceber quem é o novo presidente da Argentina, e o que, além das promessas deixadas durante a sua campanha, este poderá vir a 'tirar da manga'. Terá sido a excentricidade e polémica que foi criando ao longo dos últimos meses o 'truque de magia' para chegar até à presidência?
Milei chegou com o discurso de que toda a política tradicional está mal, mas essa personagem acabou-se um dia depois das eleiçõesJavier Milei é um economista ultraliberal que foi ganhando visibilidade na televisão e é também o ex-vocalista de uma banda de covers dos Rolling Stones. Com um percurso um pouco fora do usual, conseguiu em meses chegar à presidência da Argentina. Em termos de capacidade para a presidência, este percurso fora do comum pode significar que não estará preparado para o cargo ou que, por outro lado, vai 'mexer' com o país?
Seguramente, o país vai mexer. A verdade é que ninguém sabe quem é que é o Javier Milei – quem é que ele é ou quais são as suas características. É verdade que há um personagem totalmente excêntrico que se fez famoso por começar a ser um personagem - um certo economista intelectual, com uma linha ideológica da Escola Austríaca [de Economia], uma coisa que já quase nem sequer se utiliza. Ou seja, não é o ‘mainstream’ da ciência económica em nenhuma parte do mundo - com propostas muito radicais.
Acho que até começou como uma brincadeira. Porque também nesse ‘show’ mediático de programa da tarde, de muito grito e insulto, havia a brincadeira de dizer que se [ele] queria mudar alguma coisa devia fazer um partido político e apresentar-se a eleições. E ele diz: "Vou ser presidente". Ninguém acreditou nisso [porque] o regime político da Argentina é muito restritivo - faz com que seja muito difícil chegar a ser a presidente fora dos partidos tradicionais. E é por isso que o que nós vemos também é uma Argentina de decadência permanente, que não cresce, com problemas económicos terríveis, mas na qual os partidos políticos têm continuado a ser os mesmos. Ou seja: há uma economia devastada, uma sociedade totalmente crítica para com o sistema político, mas este mantinha-se mais ou menos igual.
O que mudou?
De repente, este homem candidata-se a presidente. E nas sondagens [que liderava] foi com surpresa, porque ninguém acreditava. Era esse 'maluco' que se calhar seria presidente da Argentina. Depois, aparecia como possível vencedor numa primeira volta. Não vence a primeira volta. O então ministro da Economia, com uma inflação de 140%, que todos criticavam, vence a primeira volta – e com uma distância bastante importante.
Milei chegou com o discurso de que toda a política tradicional está mal, mas essa personagem acabou-se um dia depois das eleições, quando, por exemplo, se ‘abraçou’ à atual ministra da Segurança [e ex-candidata à presidência], Patrícia Bullrich. Milei criticou e teve discussões muito sérias com Bullrich, discussões pouco decentes e com insultos. Chegou a dizer que ela foi guerrilheira nos anos 80 e que colocava bombas em escolas. Hoje, é a sua ministra de Segurança.
Já se percebeu que há muito de personagem. Agora, qual é o Milei? Aquele que aparece um dia depois da segunda volta ou o do programa de televisão? Porque já temos dois. Há um terceiro, que aparece depois das eleições – absolutamente pragmático, que surpreende o mundo inteiro. Pelas medidas que toma, como arma o seu gabinete, como escolhe os seus ministros, que são todas pessoas com um longo caminho político. Ou seja, tudo o que tinha criticado é tudo o que tem no governo. São pessoas que já ocuparam cargos importantes na política argentina. E muitos não correram bem.
Ou seja, poderá ter capacidades para assumir o cargo?
Na prática, antes de ser presidente, muita gente poderia ter dito que não e tinha argumentos – até pessoais. E também pelo sistema político argentino - Milei não tinha base territorial, um partido político distribuído por um país, governadores do seu próprio partido ou que [Milei] teria um apoio parlamentar minúsculo. Mas desde que é presidente? Aconteceu tudo ao contrário. Foi muito pragmático, soube arranjar apoios de todos os setores, ontem [quarta-feira] teve uma grande batalha e triunfo político no Senado – a prova de que poderá conseguir governar.
E, em segundo lugar, tem por agora – e vamos saber por quanto tempo – o apoio de uma grande base popular.
Acho que [uma situação assim] só acontece na Argentina porque um ministro da Economia que não consegue dar conta da economia, num país onde esta é um dos principais problemas da população, com uma inflação de 140%, ganha a primeira volta.
Agora, continua a surpresa mundial no sentido em que ganha um presidente que dá um discurso no qual diz que "não há dinheiro", que vão haver cortes, que os próximos meses serão difíceis e que haverá mais pobreza - e há gente a festejar na rua. São particularidades que também levam a que a Argentina e o Milei estejam a ser o foco de muitos jornais a nível internacional.
É impossível um país ter uma economia estável quando um povo não acredita na sua moeda
Nas várias promessas que foi deixando, a do "não haver dinheiro" parece mesmo já estar a ser cumprida, dado que o peso argentino já foi desvalorizado. Que consequências tal pode ter para o país?
A Argentina não vai a passar a sua moeda. É muito difícil para uma pessoa na Europa, com o que se conseguiu com o euro, entender o que acontece na Argentina. Quando se fala em dolarização isso é o que acontece na prática. Na Argentina, no dia a dia, há movimentação de dólares. Há pessoas que fazem diretamente transações em dólares. Ou seja, eu arrendo a minha casa e o pagamento é feito com este tipo de dólar todos os meses – não importa se é legal ou ilegal. Caso contrário, não arrendo. Ou seja, há uma grande parte da população que vive em dólares.
Quando estou a vender o meu carro e pergunto quanto custa, dizem-me em dólares. O que acontece com esta situação agora é que o que se procura na Argentina é que se falas em mil dólares – e três pesos são um dólar – são três mil pesos. Agora, se falares em mil dólares, ninguém sabe quantos pesos são. Por isso é que o peso de desvaloriza.
Nos anos 90, não houve uma dolarização, mas sim algo semelhante chamado a Lei da Conversibilidade. Um peso era um dólar. Tudo era simplificado. A Argentina continuava a ter a sua moeda. Mas é impossível interagir economicamente no dia a dia quando ninguém sabe realmente qual é o valor do peso em relação a um dólar. Ao ponto que pode haver cinco tipos de câmbio diferente. O que se procura é uma estabilidade económica que permita, quando alguém diz que isso custa mil dólares, entender quantos pesos significaria, ou quantos pesos - ou em que moeda seja. E, eventualmente, o que acontece é liberar um mercado para que essas transações que acontecem em dólares hoje sejam também legais. Tu vendes um carro a mil dólares, mas eu não quero o equivalente de pesos a mil dólares. Eu quero mil dólares.
Todos trabalham em dólares porque é uma moeda que circula permanentemente na Argentina. Muitas das transações se fazem em dólares. Acontece ao ponto de que todas as pessoas que tomam decisões na Argentina, toda a elite empresarial e política, têm contas fora do país e têm o dinheiro fora do país. Por isso, quando dizem como há uma inflação de 200% e não explode? É que a inflação de 200% faz com que se ganhe dinheiro, porque toda a gente não só tem a conta fora, tem os seus investimentos em dólares, investe fora do país em dólares.
Portanto, quando há uma inflação de 200%, significa que essas pessoas estão a ganhar 200% mais todos os meses – em comparação com o peso. E isso é um dos grandes problemas da Argentina.
Ou seja, a política monetária não seria transferida do Banco Central da Argentina para a Reserva Federal dos EUA?
Não significa que a Argentina poderia eventualmente deixar nas mãos dos Estados Unidos a sua política fiscal. Significa que os argentinos não acreditam na sua moeda, qualquer que seja a razão. É impossível um país ter uma economia estável quando um povo não acredita na sua moeda E esse é o grande problema. Os argentinos não são vítimas disso, são cúmplices – algumas pessoas. Há uma grande parte da população que é vítima disto, mas acaba por ser cúmplice também no dia a dia se legitima estas práticas.
Revogar o aborto? Quero pensar que não só não vai ser rápido, como se calhar se perde no tempo
Em 2020, a Argentina legalizou o aborto – apesar de não ser o primeiro país da América Latina a fazê-lo, foi o primeiro com influência regional a dar esta ‘luz verde’. Tendo em conta a velocidade a que tem andado, podemos esperar a revogação legal desta conquista para ‘amanhã’?
Agora, vem a parte do Milei pragmático. Não há dúvidas, está absolutamente claro, pelo menos está expressado por ele durante muitos anos, que Milei - personagem de televisão - está totalmente contra o aborto.
O Milei candidato à presidência dizia que se chegasse a presidente não haveria mais aborto legal na Argentina. Agora, ele é presidente. Agora, imagino que, demonstrando o pragmatismo que tem demonstrado até este momento, sabe que isso também é uma arma - porque agora o que precisa é de apoio político, de um parlamento que não tem, de pessoas que não tem. E esta pode ser uma carta importante. Como se “vocês sabem que posso fazer isto, mas não vou fazer. Mas vocês vão dar-me apoio para outras coisas”. Ou seja, legislar contra ou a favor do aborto é uma coisa pequeníssima e mínima comparado com as leis que Milei precisa para fazer as reformas do Estado e a reforma da Administração Pública que ele requer.
Ou seja, é possível que esta 'promessa' se mantenha numa das personagens anteriores?
Quero pensar que não só não vai ser rápido, como se calhar se perde no tempo porque vai ser uma arma ao dizer: “Vocês não me fazem isto e eu derrubo esta lei”. Porque ele não vai ter votos para fazer isto pelo parlamento. Ou seja, acho que é mais provável que ele derrube essa lei por decreto.
Uma espécie de chantagem, portanto?
Esta compra de favores existe sempre na política, o que acontece é que se dá para outras coisas. Temos o mesmo em Espanha [com o indulto a separatistas catalães].
A Argentina gasta mais do que tem. A Argentina é um trabalhador que ganha mil e que gasta oito mil por mês – há 25 anos
Além de ser contra o aborto, que outros 'atropelos' em termos sociais podemos esperar?
É um personagem de umas ideias que se podem dar no âmbito filosófico e da economia, por exemplo, a venda de órgãos, mas que não são questões para colocar com muita fidelidade no discurso público. Milei faz isso. Não tem limite, mistura e extrapola. Se há uma coisa que ele respeita é o direito humano, no sentido do liberalismo puro. Ou seja, é um liberal puro. O que acontece, basicamente, é que ele faz tudo em termos económicos.
Vamos ver o que acontece, mas eu acho que o maior medo será esse grande caudal que não votou em Milei, que não está a favor das suas medidas, que não tem desejo de passar estes meses – que ele diz que serão 24 -, mas que se calhar são alguns anos. Essas pessoas que veem mais uma crise atual a tornar-se mais profunda, e as pessoas que provavelmente não vão comer. Há muitas pessoas que não comiam antes, e que não vão comer agora – mas se calhar não se vão lembrar de que não comiam antes. O importante é que não comem agora. A rua vai ser um campo de batalha muito importante.
Acho que a parte do feminismo, direitos das mulheres, não vai ser um nicho. Ou seja, não vai incorporar na agenda questões que têm muito a ver com a simbologia do direito humano e que poderiam ser foco extra num conflito. Quando, eventualmente, a economia vai ser um conflito. Pelo menos durante o primeiro ano de governo.
O conflito será mesmo na sua área...
Está claro em todos os discursos dele: ‘Temos de arranjar a economia’. Tudo fundamentado numa premissa muito clara, que é real e se sabe: a Argentina gasta mais do que tem. A Argentina é um trabalhador que ganha mil e que gasta oito mil por mês – há 25 anos.
Acho que Milei está a demonstrar uma coisa que é tudo ao contrário do que o personagem deixava perceber
O Brasil e a Argentina são dois países que têm laços históricos, que parecem estar a desenrolar-se...
Nem são laços históricos. A economia da Argentina move-se devido ao Brasil. Ou seja, o Brasil é o principal sócio económico da Argentina. Se o Brasil desaparecer, a Argentina não tem economia.
Ainda quanto aos dois países, Lula não marcou presença na tomada de posse de Milei, ao contrário do ex-presidente, Jair Bolsonaro, que esteve presente. Que conclusões podemos tirar daqui?
As relações internacionais estão marcadas por interesses. [Donald] Trump diz que Kim Jong-un é um assassino e foi o primeiro presidente norte-americano em 50 anos a cruzar fronteiras e a apertar-lhe a mão. [Joe] Biden diz que Xi Jinping é um ditador e depois fecham acordos. Portanto, há uma parte simbólica e depois o que acontece é atrás.
[A situação] Foi parte da personagem que percebe pouco de diplomacia. Se há uma coisa que Milei não é, é diplomático. Isto poderia ser uma bomba-relógio se o pragmático não tivesse aparecido. E quem é? É o mesmo que coloca o mesmo embaixador argentino no Brasil. Ou seja, o embaixador no Brasil continua a ser o mesmo do governo anterior, Daniel Scioli – ex-governador de Buenos Aires, ex-candidato a presidente pelo kirchnerismo, ex-vice-presidente. Se há uma coisa a que Milei se opõe é ao kirchnerismo. O vice-presidente de Kirchner vai continuar a ser embaixador no Brasil? Porquê? Porque está a fazer um trabalho excecional no Brasil. O que significa que ele pode não gostar de alguém, mas as relações são importantes.
Ou seja, nesse sentido, também se falou muito da China. A China é comunista, podem não gostar, mas se a Argentina corta o laço com a China, a Argentina não existe mais. E ele sabe. Não é tonto.
Até agora vê-se que a diplomacia vai mais pelo pragmatismo bastante grande da ministra, e não pela forma polémica da personagem de Javier Milei que foi candidato a presidente. Milei sabe quem tem no ministério dos Negócios Estrangeiros, respeita muito a pessoa que já tem uma longa trajetória, e deixa-se influenciar. Acho que Milei está a demonstrar uma coisa que é tudo ao contrário do que o personagem deixava perceber.
O quê?
Deixa-se influenciar. Deixa-se influenciar, mas não se deixa mandar. Acho que ele agora percebe que vai ter de tomar decisões que vão muito além da economia - que é sobre o que ele percebe -, decisões essas, sobretudo, em termos de diplomacia. E essa parte da diplomacia tem delegado – e delegou bem. Acho que [por si] não conseguiria.
Também na tomada de posse esteve Volodymyr Zelensky. Tendo em conta as ‘tensões’ entre o Brasil e a Ucrânia, pode o presidente da Ucrânia estar interessado em procurar ali um aliado forte na América Latina?
A nível da importância geopolítica que tem o conflito entre a Rússia e a Ucrânia qualquer posicionamento da América Latina não move o balanço da sua existência. Ou seja, os atores geopolíticos importantes são outros. Acho que nesse sentido é mais importante o alinhamento da Argentina com os Estados Unidos do que qualquer alinhamento que possa haver com Zelensky ou não.
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