"Falta de atenção do Estado à segurança privada em recordes históricos"
Ana Reis Mota, secretária-Geral da AES – Associação das Empresas de Segurança Privada e advogada, é a convidada do Vozes ao Minuto desta segunda-feira.
© Imagem cedida por Ana Reis Mota
País Entrevista
O setor da segurança privada "enfrenta desafios significativos que devem ser urgentemente mitigados", considera Ana Reis Mota, secretária-geral da AES – Associação das Empresas de Segurança Privada
Entre esses desafios estão problemas regulatórios e concorrenciais, com destaque para o dumping social.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a responsável lança ainda um recado ao Executivo, frisando que "a falta de atenção do Estado à atividade de segurança privada tem-se elevado a recordes históricos", notando que, até hoje, ainda não existe a regulamentação da lei 34/2013.
Ao mesmo tempo, Ana Reis Mota faz sobressair que "a evolução em termos de número de vigilantes do género feminino tem sido lenta, mas positiva", pese embora exista "uma cultura enraizada e estereótipos de género associados à profissão de vigilante".
Que avaliação faz do momento atual do setor da segurança privada em Portugal?
A importância do setor da segurança privada em Portugal é tanto incontestável como crescente. Tem-se assistido a um gradual crescimento do setor da segurança privada, assumindo, atualmente, uma extraordinária relevância quer económica, quer social, impulsionadora de desenvolvimento económico e criadora de postos de trabalho.
Todavia, esta atividade enfrenta desafios significativos que devem ser urgentemente mitigados, sob pena de pôr em causa a segurança que se tenta acautelar. Falamos de problemas regulatórios e concorrenciais. Entre essas questões, o dumping social emerge como uma preocupação cada vez mais acutilante.
Algumas empresas continuam a operar fora das normas estabelecidas, comprometendo a qualidade dos serviços prestados e inevitavelmente a segurança.
Apesar da existência de legislação abundante no setor, a eficácia da fiscalização está comprometida. Não existem meios capazes ou suficientes alocados à inspeção necessária para verificar acerca do cumprimento ou incumprimento das empresas.
Para atenuar os efeitos sentidos pelo dumping social e outros desafios enfrentados pelo setor de segurança privada em Portugal, é crucial fortalecer a regulamentação, melhorar a fiscalização e promover uma cultura de transparência e ética. Isso requer uma colaboração entre as autoridades reguladoras, as empresas de segurança privada, os trabalhadores do setor e outras partes interessadas para garantir que os padrões de qualidade sejam mantidos e que os direitos dos trabalhadores e dos cidadãos sejam protegidos. Somente assim o setor poderá alcançar seu potencial máximo em fornecer serviços de segurança eficazes e responsáveis para a sociedade como um todo.
Em julho de 2019, foi feita uma alteração importante à lei 34/2013 (lei n.º 46/2019, de 8 de julho) e, até hoje, ainda não existe a regulamentação deste Decreto-Lei. O Governo disse-vos alguma coisa sobre este tema?
Não. É verdade que com a introdução das alterações legislativas na lei 34/2013 alcançaram-se marcos históricos e muitíssimo relevantes para o setor. Entre eles, a proibição da venda com prejuízo, cominada como contraordenação muito grave nos termos do disposto no artigo 59, n.º 1, al. a), a responsabilidade solidária do adquirente e a criação de uma fiscalização multidisciplinar na atividade de segurança privada.
Estas alterações globalmente consideradas são um exemplar ponto de partida para acabar com o fenómeno do trabalho não declarado. Esta prática tem vindo a vingar e, não sendo sustida, está a sedimentar-se no mercado como prática prevalecente, pelo menos, setor da segurança privada.
Todavia, a crise política que, com elevadas expetativas, agora serenará, veio agudizar os problemas da falta de regulamentação no setor. Pelo que é essencial fazer uma abordagem musculada a estes problemas, designadamente a falta de regulamentação ou, por outras palavras, a falta de aplicabilidade destes mecanismos legais que são essenciais para regular a atividade.
A proibição da venda com prejuízo foi acautelada na revisão do Regime do Exercício da Atividade de Segurança Privada em 2019, mas a aplicabilidade dessa norma no quotidiano do setor não se verifica. Como é que isto se resolve?
Os caminhos possíveis são inúmeros. A anunciada atualização do SIGESP permitirá a deteção, ainda que indiciária, de fenómenos de dumping social. A obrigação de se incluir nos cadernos de encargos a demonstração das várias rubricas que compõem o preço de acordo com a Lei e com o CCT. A inclusão normativa da exigência de a entidade adjudicante exigir no convite à apresentação de propostas ou no programa do procedimento que envolva prestação de quaisquer serviços de vigilância por parte de empresas de segurança privada, que as propostas sejam instruídas com documentação demonstrativa da estrutura de custos do trabalho necessário à execução do contrato a celebrar. Estes custos devem referir-se aos que resultem de prestações impostas por lei ou por instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho.
O que é mesmo necessário é implementar estas ou outras medidas que sejam azadas para combater o fenómeno.
A falta de atenção do Estado à atividade de segurança privada tem-se elevado a recordes históricos
O Estado é o maior cliente de segurança privada em Portugal. Contudo, veio já dizer que o Executivo ignora em absoluto a atividade. Pode explicar?
O Executivo tem ignorado os problemas que resultam desta atividade. Tem-no feito, apesar das críticas que vários players do setor lhe tem dirigido.
Na verdade, a falta de atenção do Estado à atividade de segurança privada tem-se elevado a recordes históricos: continuamos sem que seja agendado o Conselho da Segurança Privada, não existe Relatório Anual da Segurança Privada relativamente aos anos de 2022 e 2023, a lei da segurança privada continua sem regulamentação, a própria lei não foi revista no prazo de 3 anos após ter entrado em vigor, a fiscalização continua a ser ineficiente e não deteta situações de dumping social, entre outros.
Não se ignora que o Estado tem necessariamente de reconhecer o papel fundamental da segurança privada na sociedade. Basta pensar que não seria viável – nem possível - substituir todo e cada vigilante que presta a sua atividade em cada entidade da esfera do Estado pelo corpo das forças de segurança pública.
Todavia e sem margem para quaisquer dúvidas, caso o Estado não preste uma maior atenção aos problemas que sistematicamente são enumerados e vêm a público, a atividade deteriorar-se-á a um ponto insustentável. E isso não interessa a nenhuma das partes envolvidas.
Em que medida é que a aprovação da legislação sobre a Inteligência Artificial no Parlamento Europeu - que inclui proibições relacionadas às aplicações em empresas e relacionadas com os direitos dos funcionários - pode afetar o setor?
A aprovação da legislação sobre Inteligência Artificial (IA) no Parlamento Europeu, especialmente se incluir proibições relacionadas às aplicações em empresas e questões relacionadas aos direitos dos trabalhadores, pode ter várias implicações para o setor da segurança privada em Portugal.
Tratando-se da criação de regras de conformidade com padrões específicos ou limitações na utilização de IA, as empresas de segurança privada em Portugal terão de se adaptar às novas regras do jogo. Isso poderá exigir investimentos adicionais em tecnologias alternativas ou em atualizações para garantir a conformidade legal, com eventuais implicações para os trabalhadores do setor.
Estas novas disposições podem vir acautelar os direitos dos funcionários em relação ao uso de sistemas de vigilância baseados em IA ou para garantir a transparência e a equidade nos processos de tomada de decisão automatizados o que irá envolver a revisão de políticas de privacidade mais rigorosas, a realização de avaliações de impacto ético e a garantia de que os sistemas de IA são utilizados de forma transparente e responsável.
Quais são os principais desafios do setor no futuro?
A escassez de mão-de-obra consubstancia o problema tendencialmente mais danoso para o setor. Trata-se de um setor de mão-de-obra intensiva e sem pessoas não há atividade e não é possível oferecer serviços de segurança eficazes e de elevado padrão.
Este problema pode ter vários impactos negativos, designadamente elevada carga de trabalho para os profissionais existentes, a redução da qualidade dos serviços prestados e comprometer a segurança dos clientes e do público em geral. Além disso, pode também aumentar os custos operacionais para as empresas, à medida que buscam atrair e reter talentos através de incentivos salariais ou benefícios adicionais.
Muitas vezes, a segurança privada é vista como uma opção de carreira menos atrativa em comparação com outras áreas, devido à perceção de baixos salários, longas horas de trabalho em confronto com o risco inerente à prática da profissão.
Também o envelhecimento da população ativa e a falta de renovação geracional também contribuem para agudizar este problema. À medida que os trabalhadores mais experientes se reformam existe uma lacuna crescente entre a oferta e a demanda por profissionais de segurança qualificados.
Para enfrentar este desafio, é essencial que as empresas do setor adotem estratégias eficazes de recrutamento, como o desenvolvimento de programas de formação e qualificação profissional, a implementação de políticas de retenção de talentos e a melhoria das condições de trabalho e remuneração. Além disso, parcerias com instituições educacionais e programas de sensibilização podem ajudar a promover a profissão de segurança privada e atrair novos talentos para o setor. Somente através de esforços coordenados e focados, o setor poderá superar os desafios associados à escassez de mão-de-obra e garantir sua capacidade de fornecer serviços de segurança de alta qualidade no futuro.
A evolução em termos de número de vigilantes do género feminino tem sido lenta, mas positiva
De um total de 38.956 elementos com vínculo contratual, 5.212 são do género feminino e 33.744 são do género masculino. Como têm evoluído os números ao longo dos últimos anos?
A evolução em termos de número de vigilantes do género feminino tem sido lenta, mas positiva. Tanto de 2019 para 2020 como de 2020 para 2021 verificou-se um aumento de 3% do género feminino, o que corresponde a cerca de 15%.
Importa também destacar o número de diretoras de segurança, o qual também aumentou 15,73% de 2020 para 2021. Segundo o RASP de 2021, registam-se 103 diretoras de segurança, em comparação com as 89 de 2020.
Existe uma cultura enraizada e estereótipos de género associados à profissão de vigilante
Porque é que esta não é uma profissão atrativa para as mulheres?
Creio que existe uma cultura enraizada e estereótipos de género associados à profissão de vigilante, que muitas vezes a retratam como sendo mais adequada para homens. Isso pode criar barreiras às mulheres que consideram ingressar nesta atividade, levando-as a sentir-se, por vezes, desencorajadas ou desinteressadas.
É, sem dúvida, muito importante trabalhar para criar um ambiente mais inclusivo e acolhedor para as mulheres no setor de segurança privada
É, sem dúvida, muito importante trabalhar para criar um ambiente mais inclusivo e acolhedor para as mulheres no setor de segurança privada, que promova a diversidade e ofereça oportunidades de crescimento e desenvolvimento profissional equitativas para todos os trabalhadores, independentemente do género. Afinal, esta atividade é dirigida tanto ao género masculino como ao feminino.
É uma mulher com um cargo de liderança num mundo de homens. Isso tem impacto no seu dia a dia?
Estamos a chegar a um ponto em que a sociedade tem plena consciência da desigualdade que existe. São inúmeros os estudos nesse sentido. E isso é essencial para mudar o paradigma.
Sem dúvida que é importante reconhecer que as mulheres trazem perspetivas únicas, habilidades e qualidades para suas funções, contribuindo para um ambiente de trabalho mais diversificado e inclusivo. Apoiar e promover a liderança feminina é fundamental para criar organizações mais eficazes e equitativas.
Felizmente, ao longo da minha carreira profissional, foram esporádicas as vezes em que senti essa desigualdade pelo que tenho uma posição positiva em relação ao futuro e entendo que estamos a caminhar na direção certa.
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