"Medo da morte? Nenhum. Sei que morro. São segundos. Tenho é amor à vida"
"Ama" aquilo que desde sempre fez e "não quer mudar de profissão". Ruy de Carvalho é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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Cultura Ruy de Carvalho
Não é pessoa de "guardar qualquer rancor" e é muito acarinhado pelo público. Ruy de Carvalho, um homem cheio de energia que ama a sua arte: Representar. Escolha que admite ter sido "influenciada" pelo facto de ter vindo de uma família ligada à arte.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto*, o ator fala sobre a sua carreira que conta já com mais de 70 anos, enumerando as dificuldades pelas quais passou ao longo deste tempo. Considera-se um "cidadão normal com jeito para representar" e admite que continua a trabalhar uma vez que não "há muitos velhos" na profissão, pelo que precisam dele.
Por outro lado, está convencido de que vivemos numa democracia com tiques de "ditadura" e afirma, inclusive, ter a impressão de que "há mais bufos em Portugal do que havia antes do 25 de Abril".
Com uma grande família, já com uma bisneta, Ruy de Carvalho garante que não tem medo da morte, antes, sim, "amor à vida".
Como é que descobriu a sua veia artística?
"Tinha dois irmãos atores, a minha mãe era pianista, e tive sempre um contacto muito grande com a profissão de teatro, com a música e com o bailado. No fundo, tive sempre muita relação com a arte. Tinha oito anos quando me perguntaram se queria entrar numa peça [na história da Carochinha]. Na altura, estava a viver na Covilhã e disse que sim. Foi aí que começou o meu primeiro contacto com o teatro.
Aos 15 anos, comecei a fazer teatro, dirigido por um homem de espetáculos, Ribeirinho, que me preparou para a vida artística e há quase 74 anos que sou ator. Nasceu nessa altura um conhecimento que não me era indiferente, o palco. Era uma coisa de que eu gostava e descobri que tinha jeito.
Nós temos de ter jeito, senão não vale a pena.
Alguma vez se arrependeu da profissão que escolheu?
De vez em quando arrependo-me quando o papel não entra logo, mas é um arrependimento falso. Não quero mudar de profissão. Eu amo aquilo que faço. Digo na brincadeira que sou amador profissional, portanto, gosto do que faço e tenho prazer nisso. É claro que há momentos em que ficamos mais desanimados, mais animados. Nem todas as personagens entram de repente e andamos à procura delas, [o que nos leva a pensar] se calhar enganei-me na profissão".
Teatro, cinema, televisão e rádio. A sua grande paixão é?
Representar, [mas] o teatro é realmente o que eu gosto mais.
Qual foi o trabalho que mais o desafiou?
Todos me desafiam muito, mas um dos papéis de que mais gostei de fazer foi uma peça portuguesa, do autor português José Cardoso Pires, 'O Render dos Heróis'. Foi o papel mais saboroso que fiz, aquele que entrou comigo. Representava o povo português e fazia um cego. O povo português é cego quando quer e quando não quer deixa de ser. Mas às vezes está muito tempo cego.
Qual foi o momento alto da sua carreira?
No meio destes 70 e tal anos já não sei. Tenho tido momentos muito bonitos, em que tenho realmente homenagens, honrarias e distinção do público. Sobretudo a amizade do público e a ternura que me dão. Isso é para mim o grande prémio, o carinho com que sou tratado. Não sei se toda a gente gosta muito de mim, mas a maioria pelo menos mostra que gosta, em todo o país. Sou acarinhado tanto no norte como no sul, até no estrangeiro.
Acha que o público português não dá o devido valor ao teatro?
Devia ir mais ao teatro e apoiar mais. O teatro precisa do apoio do público. Sem ele não há teatro. O público faz parte do espetáculo. Cada dia é um público diferente para uma peça igual.
Para mim o grande prémio é o carinho com que sou tratadoEra preciso que o público tivesse mais interesse pelo teatro em Portugal e pela cultura de uma maneira geral. Um povo que tem uma cultura grande é um povo que é bom em tudo. No fundo, tudo o que seja ver arte é pôr o nosso estudo a funcionar como espírito critico, com o saber o que estamos a ver. Não é estar só a ver futebol.
O futebol é muito bom, muito bonito, eu gosto muito, mas não é só isso. É preciso saber estar num campo de futebol e olhar para os jogadores e não chamar nomes. Saber quando se perde bem, quando se ganha bem. Tudo isso tem que haver uma certa justiça dentro de nós. É preparação cultural para a vida.
Temos de saber ver, saber ser democratas. A democracia é liberdade, mas é sobretudo respeito. Há muita falta de respeito neste país, o que é uma coisa muito importante para um país. [Respeito] é um viver bem, saber sorrir, saber estar, saber discutir um assunto sem nos misturarmos no assunto e nos zangarmos por causa disso. Está a acontecer em Portugal muita morte, muito ciúme, muita morte passional, muita coisa estranha está a acontecer.
Foi o primeiro homem a representar na TV, desde então muito mudou. Acha que se perdeu qualidade para a quantidade?
Não, no fundo a qualidade está a aparecer. Nós fazíamos muito teatro em televisão, o que é uma pena não continuarmos a fazer, não ir filmar aos teatros. [Na altura] havia muito bom e bem feito. Ainda hoje me perguntam porque é que não há. A revolução, por exemplo, acabou com o teatro [na estação de televisão pública], não compreendo. Antigamente havia censura, agora não há. Devia continuar a haver teatro em televisão, devia haver produção de teatro na RTP. Estou a falar da pública, as outras fazem se quiserem, mas têm feito mais do que a pública.
Hoje há mais qualidade nas nossas telenovelas. Há pessoas que dizem que elas são alienantes, mas se for bem escrita, e uma história bem contada, não é alienante. O Jorge Amado é um grande escritor e foi feito em televisão e não deixou de ser um grande escritor por causa disso. É uma forma mais fácil de fornecer às pessoas o espetáculo, histórias, de contar livros. É uma forma de mostrar a nossa cultura e de haver quem escreva.
Acredita que o público português continua, de certa forma, a desvalorizar as produções nacionais?
Temos a mania de dizer mal de nós e temos coisas muito boas. Tanto é que lá fora está tudo cheio de portugueses. Chegam ao estrangeiro e empregam-se todos. É claro que cá não há espaço para tanta gente, mas se há um espaço internacional, vamos aproveitá-lo. E não deixamos de ser portugueses.
Não podemos é tirar-lhes o amor à sua pátria. Eles vão lá para fora não como emigrantes, mas como portugueses que vão servir outros povos. Temos de pensar assim, não pensar que somos uns humildes que vamos lá para fora. Já fomos, mas agora a nossa emigração é de qualidade, de preparação universitária.
Acha que o teatro já foi mais respeitado?
Nós tivemos sempre uma crise de teatro. Hoje pouca gente escreve teatro. Há mais adaptações do que propriamente escritores portugueses porque quando é português não se vai.
[Há] uma falta de amor pelo país e pelas pessoas que o representam. Um dos maiores escritores de policiais é português. E o Camões, e os poetas e a sua grande qualidade? Quem é que tem muitos 'Fernandos Pessoas'? E noutras profissões? Temos grandes bombeiros e polícias que vão lá fora fazer trabalhos que a gente não sabe. Temos cá gente importante em todos os aspetos. Às vezes falhamos é nos políticos.
Acha que os bons artistas e os mais antigos estão esquecidos?
De mim não posso falar porque sou muito bem tratado.
Partilha da opinião de que muitos bons artistas só são recordados quando morrem?
Há nomes que são praticamente imortais. Não se perde um Vasco Santana ou uma Palmira Bastos, são nomes que vão ficando através dos tempos, e outros nomes mais antigos como o Brasão ou o Rosas. É claro que nos fomos adaptando aos tempos. Quando me perguntam o que acho dos jovens, os jovens são um bem para nós porque são a nossa reciclagem. É quem nos traz as ideias e as formas novas.
Como responde a quem considera que há falta de talento nesta nova geração?
Não há. É mentira. Há muita gente com muito talento nesta geração nova. É claro que as pessoas estão a ver se conseguem destruir, mas gostam dos estrangeiros sem talento nenhum. Há alguns cá com muito talento e alguns estão já lá fora, como a Daniela Ruah, o Joaquim de Almeida e muitos mais. Há muitos que nós nem sabemos que já andam lá fora e já têm nome inglês.
Aos 89 anos continua com tantos projetos em mãos... Como é que consegue arranjar essa energia toda?
Com alguma dificuldade já. É claro que não é tão fácil para mim hoje fazer duas coisas ao mesmo tempo. Televisão e teatro é um bocado complicado. Já fiz, mas agora estou a ver se evito fazer porque realmente, para mim, é muito cansativo.
Há muita gente com muito talento nesta geração novaSou o homem mais velho da minha geração. Há uma atriz mais velha que é a Carmen, mas aposentou-se e não quer continuar. Faz as suas brincadeiras, mas já não trabalha profissionalmente. Eu faço porque precisam. Já não há muitos velhos. Há muitos com 60, mas muito poucos com 80. Eu ainda estou a fazer de 70 e tenho mais 19.
Tem algum truque para conseguir memorizar os textos?
Não, é lê-los muitas vezes. É claro que depois há uma técnica, porque as palavras escritas não são iguais às palavras ditas. Ditas têm um tamanho, escritas têm outro.
[Depois] temos que respeitar o estilo do autor, se não o fizermos é um ato de desonestidade. Não posso inventar Eça de Queirós, não posso inventar Camilo. [Eles] têm a sua própria forma de escrever. Nós temos de os usar na sua integridade. Agora há muita gente que foge a essa integridade e muda. É por isso que há muitas coisas em Portugal que não vingam.
Como é que se consegue esta unanimidade em relação a si?
Talvez pelo meu comportamento civil. Sou um cidadão normalíssimo com jeito para representar, e circulo no meio dos meus semelhantes com essa ideia.
Faço porque precisam. Já não há muitos velhosSerei o chamado humanista. Ser humano para mim é a pessoa fundamental. E hoje não há muitas pessoas com capacidade de serem pessoas. Andam a vegetar na vida, sem cultura, sem preparação, entusiasmados, levados à certa, enganam-nos, não têm opinião própria e às vezes fazem coisas em que não pensam. Obedecem a ordens dos mais espertos.
O que retira destes quase 74 anos de profissão?
A minha vida. Sou um homem que não sou infeliz. Tenho filhos, tenho netos, bisneta, sou um homem com família. Tenho uma casa, sou contra as finanças o mais possível. Cada vez me querem levar mais dinheiro. Em vez de me ajudarem com 90 anos, querem-me tirar mais dinheiro. Deviam ter orgulho de eu ter 90 anos e estar a trabalhar, mas não têm nenhum.
Sou um cidadão normalíssimo com jeito para representarNão estou a dizer que mereço mais do que as outras [pessoas], mas as pessoas só começam a ser valorizadas aos 65, eu tenho 89. Deviam pensar três vezes. A Suécia não levava dinheiro aos seus artistas, não lhes levava impostos porque eles levavam a Suécia para fora do seu país.
Como é que vê o estado do país, atualmente?
Confuso. Vivemos numa democracia com práticas de ditadura, o que é uma coisa que me choca profundamente. Neste momento, tenho a impressão de que há mais bufos em Portugal do que havia antes do 25 de Abril. Há mais gente a informar os outros, do que havia antes. Quase que querem saber mais da vida íntima das pessoas do que antigamente. É uma coisa que me entristece muito. Estamos um bocadinho aflitos.
Os partidos são uma coisa maravilhosa mas para construir não é para destruir, nem para se odiarem. Os partidos não servem para se odiarem, servem para construírem o país, com ideias diferentes que se discutem no Parlamento.
Alguém lhe deve um pedido de desculpas?
Não. Não sou pessoa para guardar qualquer rancor. Sei perdoar. Se calhar já me fizeram algumas malandrices, mas eu perdoo. Não é por mal.
Vivemos numa democracia com práticas de ditadura, o que é uma coisa que me choca profundamente. Neste momento, tenho a impressão de que há mais bufos em Portugal do que havia antes do 25 de AbrilÀs vezes quando me lamento ficam logo ofendidos. Devia ser ao contrário, se eu me lamento é porque realmente as coisas não estão bem. Eu nunca digo mal do que está bem. Nem digo mal do que está mal. Digo, vamos melhorar o que está mal.
Voltámos a ter ministério da cultura. Há alguma esperança?
Por enquanto estou à espera. Há que haver ideias, há que haver formas de ajudar a cultura a evoluir melhor em Portugal. Há que estudar isso e não é fácil para um povo que está um bocadinho 'enverdecido' nesse aspeto.
Infelizmente este ano está a ser marcado por grandes perdas. Há uma reserva emocional para lidar com isso?
Tem de haver. Há os novos que ficam cá, que nos vão substituindo. Hoje há muita gente nova e há muitos que até nem me conhecem bem ainda. Há outros que me conhecem e quando chegam ao pé de mim ficam nervosos, e eu digo: ‘Ponham-se calmos que eu também estou nervoso’. Não tem de haver nervos por representar comigo. Eles também me trazem coisas novas, também me enriquecem com o trabalho deles quando são apaixonados e têm jeito. Quando não têm é melhor irem para casa, não vale a pena.
Tem medo da morte?
Nenhum. Sei que morro. São segundos. Eu tenho amor é à vida. Fazer o possível e aproveitar a vida. A morte é um segundo.
Como é que quer ser recordado pelo público?
Olha valeu a pena conhecer o Ruy de Carvalho. Foi útil, não foi inútil, passou por cá e deu-nos alguma coisa. Se pensarem assim já eu sou rico. Já fico feliz assim.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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