"Jornalismo como deve ser chateia algumas pessoas. Por isso fui afastada"
Manuela Moura Guedes chegou ao mundo da televisão aos 23 anos. Aluna de Direito, nunca chegou a concluir os estudos e nunca exerceu a profissão para a qual estudou. Foi desafiada a ir a um casting para a RTP e desde então a televisão passou a ser a sua segunda casa.
© Global Imagens
País Moura Guedes
Afastada daquilo de que gosta de fazer há vários anos, lamenta o facto de não poder contribuir para um jornalismo mais justo e “menos cinzento”. Mas um possível regresso está sempre em cima da mesa. A entrevistada desta semana do Vozes ao Minuto é Manuela Moura Guedes.
Não há quem de imediato não a associe à polémica que coprotagonizou com José Sócrates. Alguns anos passados, a opinião sobre o antigo primeiro-ministro é a mesma: “só mostrou que não queria deixar o poder de maneira nenhuma”.
Perentória, afirma que Sócrates "foi de grande irresponsabilidade", realça-lhe os defeitos da “mania da perseguição” e o facto de ter "posto em risco a vida de dez milhões de pessoas".
Começou a sua carreira na televisão e acabou por nunca exercer na área para a qual tinha estudado. Qual a razão por ter optado por esse caminho?
Apareceu um concurso público na RTP e houve várias pessoas que me disseram para concorrer, apesar de eu não ter muita vontade porque achava que não ia a lado nenhum. Quando vim de férias tinha uma chamada da RTP para ir prestar provas. Fui às primeiras [provas] e estive quase a desistir, porque era muita gente. Quando cheguei comecei a ver e eram raparigas muito giras (…). Se tivessem chamado o meu nome um bocadinho depois eu talvez já não estivesse lá. Mas chamaram-me e a partir daí comecei a levar a sério.
Por todos os sítios que passou, ficou sempre marcada pela sua forte presença. Acha que foi essa sua frontalidade que a acabou por prejudicar no jornalismo?
Infelizmente, parece que são as minhas características. Mas não são, é o jornalismo feito da forma como deve ser que chateia algumas pessoas. Porque é que o jornalismo não é respeitado? Eu respondo: é porque o jornalismo e jornalistas deixaram-no cair quase no… Eu ia dizer no esgoto, mas é quase. Quando o jornalismo é criticado pelos próprios jornalistas, sabe-se o caminho que ele toma. Foi o que aconteceu.
O sentimento de injustiça era tão grande e estava de tal maneira revoltada que me fui mesmo abaixo
Portanto, não são as minhas características que fizeram com que eu fosse prejudicada. Fui eu, tal como meia dúzia de pessoas, ao fazerem jornalismo como se faz em muitos países civilizados e desenvolvidos, que é mostrar a verdade às pessoas para quem trabalhamos, que é o povo português. Só que a realidade nem sempre agrada aos que são visados ou que são protagonistas da realidade e que têm responsabilidades no país. E quando a realidade não agrada, há duas formas: ou o sistema está de tal forma forte, há uma opinião pública forte e há instituições que são suficientemente já enraizadas nesse sistema que fazem com que a informação possa ter liberdade de expressão, ou então não há. E também quando há só meia dúzia de jornalistas que o fazem, é óbvio que esses jornalistas são apontados a dedo e sofrem consequências, que foi o que aconteceu.
Quais foram as consequências que sofreu?
Eu estou sem fazer jornalismo desde 2009.
Isso não a incomoda? É a sua profissão.
Já incomodou mais em termos pessoais do que incomoda agora, porque no princípio era uma coisa que eu não aceitava bem. O sentimento de injustiça era tão grande e estava de tal maneira revoltada que me fui mesmo abaixo.
Hoje em dia já cheguei à conclusão que nasci e vivo neste país, não emigrei, portanto, o que é que eu hei de fazer? Enquanto jornalista pautei-me sempre por aquilo que acho e que são as regras de um jornalista, portanto vivo com a consciência tranquila e já não me mortifico.
Há todo um país que devia reagir e não reage. Acho que há muita coisa a fazer ainda em termos de mentalidades
Eu não consigo sozinha modificar um país inteiro e não são só os políticos. Eles estão no papel deles para tentarem distorcer as coisas. Agora, há todo um país que devia reagir e não reage. Acho que há muita coisa a fazer ainda em termos de mentalidades, de valores que os portugueses deviam ter.
Falemos da pessoa que a fez deixar o jornalismo, José Sócrates. Como explica esse mal-estar em relação ao antigo primeiro-ministro e o facto de ter sido contra a sua posição de comentador na RTP?
Enquanto entrevistado, ele deve ser entrevistado. Ele tem um processo imenso às costas, que cada vez se avoluma mais com uma teia que é muito maior do que aquela que até agora foi dada a conhecer. Ele esteve no poder e a teia que envolvia o poder nas diversas áreas era imensa e agora o país está a chegar a essa conclusão. Eu só me insurjo quando se passa ao lado disso e quando ele não é devidamente confrontado.
Ele ser comentador é algo que nunca percebi. Um homem que deixa o país nas circunstâncias mais miseráveis possíveis, à beira da falência, em que não havia dinheiro para pagar às pessoas. Um primeiro-ministro que nos deixou chegar a um ponto em que o país estava a esticar a corda e as pessoas iam ficar sem salário… Ele foi de uma irresponsabilidade total. Ele endividou-se e endividou o país de tal maneira que pôs em risco a vida de muita gente.
Depois disso, virem pedir opinião a esta pessoa que mostrou a maior das irresponsabilidades, que se esteve nas tintas para o povo português e só pensou nele próprio e na sua imagem e que mostrou que não queria deixar o poder de maneira nenhuma, pondo em risco a vida de dez milhões de pessoas e a vida de um país, não cabe na cabeça de ninguém.
Nessa altura quando tudo aconteceu, sentiu que foi saneada por um governo do PS?
Senti. Aliás, isso foi-me dito pelo administrador português. Disse-me que estava ser tratado entre os espanhóis e o governo português. Eles queriam acabar com aquele jornal.
Mas não falemos mais disso… as pessoas focam-se muito nisso. Focam-se muito em mim e no José Sócrates. Ele era primeiro-ministro. O que é que queriam que eu fizesse? A história tem-me vindo a dar razão com todas as coisas que têm acontecido. Mas isso aconteceu a todos aqueles a que nós apontámos o dedo e que estivemos a investigar, só que eles não estrebuchavam e não fizeram campanhas contra mim como o primeiro-ministro da época fez. Porque como veem, ele tem a mesma técnica relativamente a toda a gente. Ele na altura disse que estava a ser perseguido, que era uma perseguição pessoal. Agora vejam de quantas pessoas ele já disse o mesmo. Portanto, é um padrão de comportamentos um pouco estranho, psicologicamente, mas pronto, é o dele.
Porque é que acha que foi a única a enfrentar isso?
Porque eu faço jornalismo, porque eu sou jornalista. Eu não sou nem a super mulher, nem tenho qualidades extra, não vim de Marte. Não. Devo ter achado que o jornalismo se podia fazer aqui de uma forma normal como se faz noutros países e no exercício da minha profissão vivia sempre angustiada, parecia que tinha um peso em cima de mim, que tinha de mudar as coisas, quase como uma missionária.
A justiça estava completamente controlada. Nós víamos as entrevistas feitas ao primeiro-ministro na altura e era uma vergonha
No dia da segunda eleição do governo de Sócrates, eu disse: “Não é possível. Não é possível votarem outra vez [nele] quando têm tudo, todos os dados”. Nessa altura achei que não devia estar preocupada com as pessoas.
Depois de tudo isso ter acabado, como é que foi o despertar? Acha que o seu nome acabou por ficar manchado?
Faz parte da minha carreira, mas já não tenho isso na minha cabeça. Quando recebi a notícia de que ele tinha sido detido, quando veio de Paris, não imagina a quantidade de coisas nas redes sociais, de gente que eu não conheço de lado nenhum a dizer-me: “Sabe que a primeira pessoa de quem eu me lembrei foi de si”. Eu não quero ficar ligada a esta personagem. Eu fiz o meu trabalho e acabou-se. Assim como não quero saber da personagem, é uma página encerrada. Eu não tenho nada a ver com ele. Espero que a justiça faça o que tiver a fazer.
Confia na justiça?
Confio muito nesta procuradora-geral da República. O sistema na justiça esteve inquinado durante muito tempo. Aliás, esta teia de que eu falei e que implica agora as ligações que fazem parte da Operação Marquês com o lado empresarial e financeiro do Ricardo Salgado, tem outras ligações.
Houve a tentativa, em alguns casos concretizada, de controlo por parte do poder político, neste caso do governo e concretamente do primeiro-ministro, de praticamente todas as áreas da vida nacional. A comunicação social estava praticamente toda controlada e fiquei a ter muita falta de respeito pela comunicação social em geral, porque o 'Jornal Nacional' acabou.
A justiça estava completamente controlada. Nós víamos as entrevistas feitas ao primeiro-ministro na altura e era uma vergonha. No meio empresarial vemos os casos da PT e no meio financeiro vemos como os casos do BCP e da CGD, através de outra personagem extraordinária, o Armando Vara, que está a contas com a justiça e que já foi condenado. A justiça foi moldada. O procurador e uma adjunta que fizeram do pior a este país, desacreditaram completamente a justiça. O procurador devia hoje prestar contas por aquilo que fez.
Isso não lhe dá vontade de voltar para a advocacia?
Eu meti dois processos. Houve um juiz e um procurador, os do Baixo Vouga, que mandaram aqui para a Procuradoria [Geral da República] um processo por atentado ao Estado de Direito, que tinham indícios com escutas e tudo, por parte do poder político do primeiro-ministro. E eu meti um processo também, que não pôde ir para a frente porque o procurador não aceitou e eu não pude fazer nada porque chegando ao procurador, nem podia recorrer.
Tudo é possível da cabeça de Sócrates. Então ele não se comparou ao Mandela? Ainda nos vai aparecer pintado de preto
Fiquei de mãos atadas, percebe? Foram tempos terríveis, porque é virar para um lado e estava tudo tudo [bloqueado]. Foi uma teia de tal maneira construída em todas as áreas que foi assustador. Como é que não se discute isto?
Quando diz que as pessoas agora lhe dão razão, espera em algum momento sentir uma recompensa pelo que fez?
Não, não espero recompensa nenhuma. Era o meu trabalho. Às vezes perguntam-me: faria tudo igual? A pergunta não se põe, porque eu só sei fazer assim. Há um indício de qualquer coisa que não bate certo e eu não o relato às pessoas? As pessoas têm o direito de saber, porque nós [jornalistas] somos o veículo entre quem está no poder, quem gere o país, quem tem responsabilidades, e as pessoas que elegeram, porque eles não têm acesso a isso. Somos nós o veio de transmissão. E quanto mais elevada é a responsabilidade, mais essas pessoas têm de ser escrutinadas.
A Manuela esteve sempre ligada à política e todos sabem que é de Direita. Não pensa que podiam achar que era uma tentativa sua [de criticar o PS]…
Isso foi o que quiseram fazer pensar. Eu não fiz reportagens sobre o CDS? Eu não fiz o Portucale? Não fiz coisas do PSD? Do Dias Loureiro? O Dias Loureiro não me fala. Não falo com o Porta Portas não me lembro há quanto tempo. Eu recebi cartas oficiais do Paulo Portas, a protestar. A partir do momento – e todos eles sabem isso – em que estou a fazer jornalismo, não há afinidade seja com quem for, não pode haver.
Acha possível José Sócrates candidatar-se a um novo cargo político brevemente?
Tudo é possível. Tudo é possível daquela cabeça. Então ele não se comparou ao Mandela? Ainda nos vai aparecer pintado de preto. Eu punha-o com alcatrão e penas, mas eu acho que ele prefere só o alcatrão e fica mais parecido com o Mandela.
O segredo de justiça tem sido muitas vezes posto em causa. Como avalia a relação da justiça com os media?
O segredo de justiça é violado sempre que dá jeito a alguém. Por isso o melhor é não haver segredo de justiça. É uma pantominice.
E que papel tem a ERC como entidade reguladora?
Não sei. A ERC é aquilo que as pessoas quiserem fazer dela. A ERC podia ser um organismo respeitado e um organismo que fizesse com que o jornalismo fosse mais respeitado. Mas da forma como as pessoas são escolhidas [isso não acontece]. De certeza absoluta que são escolhidas como os partidos entendem, porque lhes fizeram uns jeitos. Eu não reconheço autoridade às pessoas que têm estado na ERC, nem às próprias decisões.
Acha então que a própria entidade reguladora, tal como os media, funciona sempre sob a égide política?
E há alguma coisa que funcione de outra forma? As coisas são escolhidas ou porque convém ou porque as pessoas não fazem ondas, ou porque são controladas facilmente, ou porque são daquela cor ou porque são os amigalhaços, os padrinhos ou do aparelho do partido… Toda a gente sabe que é assim.
E tem-se cada vez menos vergonha de assumir isso?
Sim. É o sistema. Enquanto as pessoas não foram responsabilizadas nem houver critérios de resultados, qualidade, critérios profissionais … Escolhem-se as pessoas porquê? Não se percebe mas também já ninguém questiona. O povo português é um bocado: “Ai, vieram-me ao bolso!”. Ao meu bolso. Não é ao bolso do povo português, é ao bolso do Sr. José, do Sr. António. E aí estrebucha e diz que não pode ser. É claro que se aparecer o senhor primeiro-ministro à frente ele desfaz-se. Gosta de o ver ao vivo.
Entretanto, perdeu a vontade de voltar à televisão ou se surgir uma proposta...
Depende da proposta, não é qualquer uma. Eu não tenho aquela coisa de ficar agarrada ao ecrã e de isso fazer parte do meu ADN. A televisão sempre foi um trabalho, de muitos anos, não faz parte da minha identidade. Eu sobrevivo sem aparecer no ecrã. Se aparecer algum programa que sinta vontade de fazer...
E se for como comentadora? Um pouco à semelhança da 'Barca do Inferno'.
Sim. Mas não uma 'Barca do Inferno'. Meu Deus! Isso já me deu para sair do inferno e ir para o purgatório. Quero alguma coisa que me dê espaço para ir para o céu.
Que rescaldo faz dessa experiência?
Aquilo foi um disparate. Só alguém que estivesse lá é que podia avaliar. Diziam-se as coisas mais inacreditáveis. A provocação era de tal forma que era impossível a pessoa ficar calada. Diziam-se as maiores enormidades do ponto de vista pessoal. Ali insultava-se e isso é uma coisa que eu aprendi que em televisão é impossível. Eu aguentei o Marinho e Pinto sem dizer nada e estive ali estoicamente a ouvi-lo, sem dizer coisa nenhuma. Sei que não se pode responder, discutir, porque senão é a ‘peixeirada’. Portanto, estar ali, quatro mulheres, com uma amostra de moderador…
Olhando para a sua carreira, arrepende-se de algo que possa ter feito mal?
Arrependi-me de coisas que não fiz, de coisas onde podia ter ido mais longe e não fui. Mas aquelas em que me acusam de que fui má, e que me meti com este e aquele… isso não. Gostava de ter podido fazer mais porque acho que o jornalismo é cinzento. O jornalismo é feito por pessoas e para pessoas, para mostrar a realidade e tem sempre consequências porque no confronto com a realidade há sempre uma reação. O confronto com aquilo que rodeia as pessoas afeta-as e têm de reagir. É bom quando se vê que as pessoas reagem às coisas, é bom. É bom quando se vê o mundo a reagir a um troglodita como o Trump. Que as pessoas não fiquem quietas. Não fiquem à espera do que vai acontecer.
A 'Barca do Inferno' já me deu para sair do inferno e ir para o purgatório. Quero alguma coisa que me dê espaço para ir para o céu
Fazendo um balanço e pegando num tema musical que a celebrizou, a sua vida tem sido mais pautada por "poemas e rosas ou por cardos e prosas"?
Eu tenho uma vida boa, não me posso queixar. Meu Deus, seria ingrata se eu dissesse que a minha vida não é boa. Sou talvez é mais inquieta do que a generalidade das pessoas. As coisas quando são para fazer é para fazer como deve de ser. Não dá para estar de uma forma tortuosa ou estar a flexibilizar ou a dizer ‘pois, está bem’, ‘pode ser’. Se cada um de nós não for sério e honesto naquilo que faz, as coisas acabam por não valer a pena. A minha vida tem sido privilegiada, mesmo com estes acidentes de percurso… Nasci onde nasci, num país que ainda tem muito para crescer na área em que a dediquei profissionalmente e não abdico das regras que são as do jornalismo.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
Comentários
Regras de conduta dos comentários