"Vir para o Chapitô não é estilo. A Teté é fixe mas trabalha 24 horas"
O Chapitô foi ideia de Teresa Ricou, primeira mulher palhaço portuguesa. Hoje em dia, é uma "máquina infernal" em funcionamento, uma que fomos conhecer pela voz de quem a fundou.
© Global Imagens
País Teresa Ricou
Para os lados do Castelo de São Jorge, numa das colinas de Lisboa, há um espaço de paragem obrigatória para muitos turistas, pela vista sobre a cidade e pelo ambiente agradável.
Mas entre aquelas quatro paredes há cores, há arte e uma escola que tem no circo a sua força e na inclusão a sua génese.
Falamos do Chapitô, espaço fundado pela primeira mulher palhaço de Portugal, Teresa Ricou, uma mulher que entre o cómico e o sério nos fala com orgulho do que ali se faz.
À primeira pergunta, a entrevistada devolveu-nos alguns segundos de silêncio enquanto acabava de escrevinhar uma frase. Depois a conversa começou.
O Chapitô é escola, é circo, é bar, é local de espetáculos. O Chapitô que conhecemos hoje em dia é o que tinha imaginado quando o fundou?
Sem dúvida e é preciso muita força para o manter. Claro que as coisas evoluem, mas a orientação, a ação social ligada à cultura, a economia social com a parte artística mantém-se e só assim é que isto tem sentido e dá realmente oportunidade a todos de inclusão social e de realização pessoal.
Quantas pessoas compõem agora o universo do Chapitô?
São muitas e nós até lidamos com jovens de centros educativos, jovens que estão presos. Temos à volta de 400 jovens por dia aqui e a trabalhar são 90 pessoas. Se me perguntasse se o voltava a fazer? Não, não voltava a fazer… só porque espero deixar esta obra feita e com este modelo, até porque se coisas como o Chapitô aparecessem em cada bairro eu nem era precisa, estava a curtir a minha cena de ser Teté.
Está-se a trabalhar em cima do trapézio e se se enganar é a morte do artistaAinda se associa muito à escola e à educação a notas, testes e avaliações. Como é que o Chapitô se enquadra neste mundo?
É fundamental educar, sobretudo, para a cidadania. Importa o onde estamos hoje, o agora e para onde vamos. O passado é interessante mas tem de ser bem escolhido. O ensino em si está completamente fora de prazo porque os miúdos não vão aprender. Sem ser utópica, claro que é preciso aprender. Está-se a trabalhar em cima do trapézio e se se enganar é a morte do artista. Mas há muitas formas de ensinar e educar para a cidadania no dia a dia e, nesse sentido, é mais importante e apelativo até para os miúdos ter a prática e depois, em cima da prática, teorizar sobre.
É preciso responder à ansiedade desta gente jovem. Nós aqui trabalhamos com jovens que já prevaricaram muito na vidaÉ um modelo pensado, o do Chapitô.
É aí que entramos em relação estrita com as universidades porque ali há pessoas que se dedicam a esses estudos. Mas tem de ser reestruturada esta forma de ensinar. Eu trabalho com a parte artística mas aqui também se trabalha com a matemática, com o português, com a geometria descritiva, com a história das artes… tem de haver uma interdisciplinariedade constante porque as coisas têm de estar em ligação umas com as outras. Nada disto é separado. Isso é como o mundo está e nós temos de nos juntar e ter um pensamento coletivo. Mas sinto que estamos numa fase com um bom pensamento no ministério da Educação. Parecem-me interessados em perceber melhor como se lá chega porque é preciso responder à ansiedade desta gente jovem. Nós aqui trabalhamos com jovens que já prevaricaram muito na vida.
Estamos a falar de miúdos com percursos complicados. Como é a adaptação?
Eles chegam aqui após terem passado pela medida tutelar, estão cá por opção deles. Mas são miúdos que não tiveram sorte na vida e o mundo não está para brincadeiras. Aqui fazem o secundário, tem sido um sucesso e cada vez mais estão a sair daqui miúdos encantados. Descobrem outros mundos e que também têm palavra, que também são cidadãos do mundo. E percebem que se tivessem tido outras oportunidades não teriam caído no problema
Também trabalham com jovens colocados em centros educativos.
Sim, fazemos a parte de animação sócio-educativa, em complemento com os centros educativos. Trabalhamos com três centros educativos, Caxias, um centro de porta fechada, Bela Vista e Navarro de Paiva. Quando é possível, trazemo-los cá, acompanhados pelos técnicos.
O padre Américo já dizia, "não há rapazes maus". Pois não, os adultos é que têm de estar em cima do assuntoÉ uma visão do mundo diferente que lhes dão?
Completamente e eles sabem estar. São uns príncipes, nós os adultos é que temos mesmo de nos pôr a refletir sobre o que estamos cá a fazer. Toda a gente quer ficar bem na fotografia, podemos pintar-nos, mas estes jovens não podem pintar a cara porque já prevaricaram. E nós adultos estamos muito desatentos ao que acontece. O padre Américo já dizia, “não há rapazes maus”. Pois não, os adultos é que têm de estar em cima do assunto. Foi muito difícil encontrar uma bela equipa, foi feita ao longo de 20 anos, mas não é fácil lidar com estes miúdos, é preciso estômago e a parte burocrática muitas vezes atrapalha. Mas eles vêm para cá e muitas vezes encontram aqui as suas paixões, a sua vida afetiva é resolvida, e seguem o seu caminho. Muitos deles até já estão lá fora e como grandes artistas
As artes performativas são um meio pequeno em Portugal. É difícil?
Tem corrido bem, [os estudantes] têm saído daqui e montado as suas vidas, a descoberta das suas competências tem sido um sucesso e eu fico muito satisfeita. Isto deu muito trabalho, são quase 40 anos de vida, não estou de barriga cheia, que tive aqui percalços que me deram a volta ao estômago, mas estou satisfeita. Valeu a pena.
Há um espírito Chapitô?
Há e às vezes fico enervada com um certo lado disso, de quando é estilo. Pá, se vens para o Chapitô não é estilo. “Ah a Teté é fixe”, a Teté é fixe mas trabalha aqui 24 horas. Isto tem trabalho e depois tens a tua própria identidade. O estilo compra-se feito e isto não é coisa de moda. Aliás, com tantos anos até já passou de moda.
Consegue combinar a exigência e o improviso?
É um problema mas tem de ser. Incomoda muita gente mas tem de estar sempre, porque senão é vender gato por lebre e isto tem que dar certo. Caso contrário os miúdos viram-se às cordas e a corda rebenta. A corda é material e os materiais têm de estar sempre em manutenção.
Pá, se vens para o Chapitô não é estilo. “Ah a Teté é fixe”, a Teté é fixe mas trabalha aqui 24 horasE planos futuros?
[Risos] Agora é arranjar marido, a ver se alguém me quer, e correr o mundo num cruzeiro.
Mas já pensou na reforma?
Quem vive aquilo que gosta todos os dias não precisa de ter reforma. Estou bem, não estou a pensar sair daqui tão cedo, também gostava de entrar em cena mas não sei quando. O meu futuro é este, que eu construí e para muita gente.
A máquina do Chapitô já funciona sozinha?
Acho que sim mas ainda não tenho a certeza
E a Teresa e o Chapitô. Ainda são muito indissociáveis?
São, mas é como ter um filho. Um filho é filho a vida inteira, até pode ser um bandido mas é filho. Estou cá para o que der vier mas estou sobretudo para quem vier e der.
É muito diferente o Portugal de quando o Chapitô nasceu e o país de hoje em dia?
Eu sou uma privilegiada. Fui das que fez a revolução. Tive a oportunidade de ter decidido vir para cá quando estava bem instalada em Paris. Quanto à mudança, a democracia tem coisas destas, como tudo na vida. Tem um lado positivo e um negativo. Democracia é isso: vamos acertando, vamos falando, temos todos a palavra.
Às vezes perdemo-nos com o excesso de consumo, esse novo-riquismo que por um triz esteve aqui instalado. O vulcão está em ebulição e há que estar prevenido porque a prevenção é sabedoriaHoje em dia acho que estamos num bom momento. O resto do mundo está em convulsão e Portugal neste momento é um paraíso. Nós, portugueses, somos fantásticos, um país de marinheiros e marinheiras, com gente a olhar para a frente. Mas não basta estarmos sossegados a dizer que isto é muito bonito. Há que pensar no que temos a dar a mais. Somos bons naquilo que fazemos. Por isso temos portugueses tão bons lá fora, mas também temos de os ter bons cá dentro.
A qualidade não está na grandiosidade. Não é nas grandes superfícies que a qualidade se vê. Aí as pessoas perdem-se. Há que voltar aos pequenos espaços. Às vezes perdemo-nos com o excesso de consumo, esse novo-riquismo que por um triz esteve aqui instalado. O vulcão está em ebulição e há que estar prevenido porque a prevenção é sabedoria.
Está mais otimista em relação ao país?
Estou. Gosto do [António] Costa, conheço-o desde pequenino, era muito amiga do pai dele. Sinto-me tranquila com ele mas isso não traz muito à felicidade de uma pessoa. Mas se cada um estiver consciente do que está a fazer e a pôr ao serviço das pessoas os seus melhores conhecimentos, porreiro.
Houve algum grande susto com o futuro do Chapitô?
Sim, vários, mas a vontade de fazer é gene. O meu pai era médico da lepra. Quem cura leprosos… consegue explicar à filha que tudo tem cura, por isso uma pessoa não pode desistir e eu não desisto. Se um dia me corre pior é uma chatice mas o dia seguinte corre melhor de certeza.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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