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"PSD está à deriva em relação às autarquias. Andou distraído e continua"

Aos 73 anos, Marta Soares disse adeus à vida autárquica mas não parece abrandar. Da 'Geringonça' ao PSD, o "miúdo Marta Soares", que em tempos andava a pintar paredes a desafiar o Estado Novo, falou de política. E da vida.

"PSD está à deriva em relação às autarquias. Andou distraído e continua"
Notícias ao Minuto

04/04/17 por Pedro Filipe Pina

Política Marta Soares

É um dos 'dinossauros' da política portuguesa e já em miúdo, no tempo do Estado Novo, andava às cavalitas dos adultos a pintar paredes. 

Depois do 25 de Abril, tornou-se o autarca com mais mandatos consecutivos. Social-democrata, não tem 'papas na língua' para criticar a política autárquica do partido. Mas também não hesita em criticar o facto de o PS ter formado Executivo com apoio à Esquerda.

Eis Marta Soares numa entrevista ao Vozes ao Minuto em que fala da sua vida sem arrependimentos. Com uma única exceção, que a família lhe perdoou mas que acredita que não esquecerá até ao seu último dia de vida.

O seu interesse pela política chegou ainda antes do 25 de Abril, numa altura em que era complicado ter interesse na política. Como foi esse tempo?

Tinha 13 anos quando foram as eleições para o Norton de Matos. Era um pobre miúdo mas com sangue na guelra. Lá em Vila Nova de Poiares havia o Eduardo das Bicicletas, um indivíduo alto, que tinha quase dois metros. Eu tinha vontade de participar e como era magrito andava às costas dele e, com óleo queimado, que na altura não havia sprays nem dinheiro para cartazes, escrevia ‘Viva Norton de Matos’.

Também participou na campanha do General Humberto Delgado.

Já era mais maduro e sabia o que me interessava. E aí já tinha a PIDE a olhar para o miúdo Jaime Soares. Tinha andado na campanha do Humberto Delgado quando fomos a Coimbra e não nos deixaram seguir o percurso que estava marcado e eu andei aos ombros de estudantes de capa e batina com a bandeira nacional num pão de feijões.

A PIDE reparou no "miúdo Jaime Soares"?

Um dia estava a acompanhar o meu pai em Coimbra, lá nos negócios dele, e entrámos num café que frequentávamos muitas vezes e alguém avisou: ‘olha que há qualquer coisa, e não é com o teu pai, é contigo. Esses três indivíduos aí à porta são da PIDE’. Quando os vi, e não queria dar nenhum choque ao meu pai, fui ao pé dele, que estava ao balcão, e dei-lhe um beijo. O meu pai ficou a olhar para mim, a estranhar o porquê, mas eu senti que me podiam levar para interrogar.

Fizeram pouco de mim mas não tive medo e como na lei dizia que cada eleitor podia ser fiscal, antes de as urnas abrirem apresentei-meFoi-se envolvendo cada vez mais na política.

Em 1969 fui delegado às urnas em Vila Nova de Poiares pelo MDP/CDE. Queria que me legalizassem para fiscalizar as eleições. Mas ia ao presidente da câmara, que me dizia que era com o Governo Civil, ia ao Governo Civil e mandavam-me para a câmara. Fizeram pouco de mim mas não tive medo e como na lei dizia que cada eleitor podia ser fiscal, antes de as urnas abrirem apresentei-me. A dada altura fui ao presidente da câmara e fui mais duro com as palavras. Disse-lhe: ‘Não goze mais comigo, passe-me lá a autorização’. E ele: ‘olhe que o ponho lá fora’. ‘Põe-me lá fora mas vem comigo pelas escadas abaixo’, respondi-lhe.

E depois surgiu o 25 de Abril. Como foi esse tempo?

Tinha 29 anos. Numa manifestação uns dias depois do 25 de Abril foi convocada a população do concelho para se votar para a comissão administrativa do município. Só uns anos depois a ver fotografias é que me apercebi da quantidade de pessoas que estiveram ali. Foram mais de 1.500. Com a emoção na altura nem me percebi. Foram eleitos 13, por aclamação ou por braço no ar, quando havia dúvidas. E eu fiz parte desse grupo. A lista foi entregue ao Governo Civil, que nos disse que para a câmara de VNP só podiam ser três. Voltámos a votar e eu era um desses três. Depois, com eleições consecutivas, democráticas, fiquei até outubro de 2013. Foram 39 anos e meio.

E como era o ambiente naquelas primeiras autárquicas, em 1976?

Era muito giro, era tudo novidade. Ali no concelho os candidatos era tudo gente muito importante e lançada mas se calhar o indivíduo com mais experiência política até era eu. Fui sendo reeleito ao longo dos anos, o que fez de mim o autarca que mais tempo esteve em funções em Portugal no pós-25 de Abril. Depois lá fizeram uma lei [de limitação de mandatos] para correr comigo [risos].

Não me parece que Teresa Leal Coelho possa destronar o atual presidente da Câmara de LisboaEstamos em ano de autárquicas. Em 2013 chegou a criticar Passos Coelho pela estratégia adotada pelo PSD.

E continuo a criticar. O PSD continua à deriva em relação às autarquias. Esteve durante tantos anos em acordo com o CDS, sabendo que era preciso preparar um candidato para Lisboa, e não o fez. O PSD andou distraído e continua distraído para muitas autarquias. Não ponho em causa os conhecimentos de quem tem a responsabilidade de gerir o processo autárquico. Mas por vezes vão-se buscar pessoas com nomes sonantes, mas que não têm tempo.

O atual responsável é presidente de uma câmara muito importante [Carlos Carreiras, autarca de Cascais], o que muitas vezes não lhe deixa tempo para tratar de um assunto desta dimensão. Às vezes é preciso criar uma comissão de grande capacidade política para trabalhar no terreno, com tempo, procurando aprofundar o conhecimento local. Desejo que o PSD tenha um bom resultado mas não espero grandes alterações em termos de ganhos de grandes câmaras para o PSD em detrimento do PS.

O que lhe parece a escolha de Teresa Leal Coelho para a candidatura em Lisboa?

Não tenho nada de pessoal nem de partidário contra Teresa Leal Coelho. É uma combatente e tem capacidade política mas entendo que não é a figura que mais possa expressar aquilo que é a realidade do PSD em Lisboa. Não me parece que possa destronar o atual presidente da Câmara.

Há erros estratégicos no PSD quando se deixa antecipar pelo CDS. Agora vai disputar eleições com uma candidata a quem estiveram ligados durante muito tempo e nada faria entender que iam aparecer separados nesta candidatura. São situações que não entendo e mostram fragilidade.

Há o risco de Assunção Cristas e Teresa Leal Coelho estarem a competir pelo mesmo espaço político?

Mesmo as duas em conjunto não seria fácil a vitória, quanto mais as duas separadas. É entregar a Câmara de Lisboa ao atual presidente.

'Geringonça' surpreendeu-me porque é um desrespeito à democracia. É uma vergonha sermos governados por uma geringonçaE quanto à 'geringonça'. Surpreendeu-o?

Surpreendeu porque é um desrespeito à democracia. O povo português foi chamado para votar, definiu quem queria para liderar o Governo, escolheu o PSD e Passos Coelho, e depois dentro de uma negociação manhosa…

PCP, o Bloco e o PS estão a agarrar-se às silvas como quem cai num poçoA legislação permite este modelo.

Claro que era permitido chegar a esta ‘geringonça’ porque o sistema permite-o e o Governo não passava na Assembleia da República. Mas esta é uma situação que vejo como antidemocrática. O povo escolheu um partido para governar e depois espetam-lhe com outro em cima. Foi um pouco o salve-se quem puder. O PCP, o Bloco e o PS estão a agarrar-se às silvas como quem cai num poço mas, como ninguém quer morrer, nem as silvas picam, agarram-se ao poder quando têm pontos de vista completamente diferentes. Isto não me parece saudável para a democracia do país e terá reflexo no futuro.

Havia alternativa para Passos Coelho naquela altura?

Só negociando com o PS. Mas era preciso que tivesse havido humildade das duas partes [PS e PSD] e pôr os interesses de grupos políticos de parte e os do país acima de tudo. Mas não conseguiram e estamos nisto, com o PS muitas vezes a ‘vender a alma ao Diabo’ para passar situações que quer para se manter no Governo, enquanto o PCP e o Bloco vão metendo coisas que o PS tem que aceitar e são contrárias à sua própria ideologia. Na minha opinião, é uma vergonha sermos governados por uma geringonça.

O PSD e CDS coligados foram os mais votados mas veem-se na oposição. É uma posição fácil por estes dias?

O PSD e o CDS têm conceitos ideológicos diferentes mas os valores da democracia estão arraigados nos dois partidos. Mas nunca morri de amor por coligações do PSD com o CDS e em certas alturas fui a favor de um Bloco Central, isto caso as pessoas pensassem que o país está acima dos interesses de qualquer partido. O PS e PSD nem precisavam de uma coligação política, bastavam acordos parlamentares. São dois partidos de grandes convicções, com uma visão da Europa muito próxima, era fácil negociar muitas das leis para fazer as reformas de que o país precisa sem que cada partido perdesse a sua liberdade.

Mas não falamos de partidos cujas posições parecem ter-se extremado?

Extremaram e erradamente. Isto [Bloco Central] já foi possível à época de Mário Soares, de Mota Pinto.

Mas é possível com António Costa e Passos Coelho?

Não. São duas pessoas com personalidades diferentes, não estou a julgar nem um nem outro, sou amigo dos dois. Tenho a tendência natural de ser social-democrata mas pondo o peso na balança culpo os dois na responsabilidade de não terem conseguido encontrar uma situação de consenso para assumirem, não uma ‘geringonça’ mas um Bloco Central.

Sinto que nunca fui para a minha família tudo o que devia serVoltando ao Marta Soares. São décadas enquanto autarca, de ligação aos Bombeiros e também de ligação ao Sporting. Sobra tempo para a família?

Quem mais perdeu com toda a minha atividade foi a minha família. Conheceram-me a espaços. Sempre tive amor de família, sempre adorei a minha família, mas sinto que nunca fui para eles tudo o que devia ser. Sei que um dia, nos momentos de solidão que a idade trará, que isso me fará recordar o que não dei, não em termos materiais, mas aquela presença maior. Fiquei viúvo aos 50 anos, depois voltei a casar. As minhas mulheres foram mães, foram pais, foram tudo. Tenho quatro filhos, tudo gente com boa educação, com bons princípios, mas devem muito o que são e têm de bom a elas, que foram quem me substituiu sempre que não estive presente. Entrava em casa e estavam a dormir e levantava-me de manhã e ainda estavam a dormir. 

Hoje em dia acredita que compreenderam esse seu lado?

Compreenderam, que eu noto a sua paixão e o carinho que me dão. Sentem que quando estou dou-lhes todo o carinho do mundo e não o faço para tentar compensar, faço-o porque sou assim. E sei que me penalizo pelo facto de não ter disponibilizado mais tempo para eles. Tenho uma família maravilhosa mas sei que isto vai ficar comigo até ao último minuto da minha vida. Recrimino-me neste aspeto mas sinto-me feliz: Sei que se fiz alguma coisa boa na vida, foi sempre a procurar fazer para os outros e não só para mim. E quem me conhece sabe que é assim. Nunca vivi pela conta bancária, mas com a satisfação de servir. Sou feliz assim. Nasci assim, vivi assim e hei-de morrer assim.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui e a terceira aqui.

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