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Cães perigosos: "Todas as raças devem existir mas nem todos as podem ter"

A lei em torno dos animais potencialmente perigosos é clara, mas poucos a cumprem. Além da falta de meios para o fazer, “a fiscalização é muito insuficiente”. A convicção é do bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, certo de que há donos “irresponsáveis” e “regras que não são cumpridas”.

Cães perigosos: "Todas as raças devem existir mas nem todos as podem ter"
Notícias ao Minuto

28/04/17 por Goreti Pera

País Jorge Cid

Uma criança de quatro anos foi atacada, na passada terça-feira, em Matosinhos, por um rottweiler que passeava na via pública com o dono, sem açaime e sem trela. Inês encontra-se internada no Hospital de São João, no Porto, onde será sujeita a uma cirurgia de reconstrução do couro cabeludo.

Só no primeiro trimestre do ano, ataques de cães de raças perigosas fizeram 71 vítimas. Da lista fazem parte, além do rottweiler, o pit bull terrier, cão de fila brasileiro, dogue argentino, staffordshire bull terrier, staffordshire terrier americano e tosa inu.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários admitiu que a portaria publicada em 2015 não está a ser cumprida (até porque há falta de meios) e que não é feita a devida fiscalização pelas autoridades.

Na hora de avaliar os riscos, diz o veterinário Jorge Cid que “tudo depende se os donos são ou não responsáveis” e “conhecem o seu animal”. E, nesse aspeto, mostra-se convicto de que “tem de haver um maior acompanhamento de quem tem estes animais, senão casos como este vão continuar a acontecer”.

Que características fazem com que estas raças sejam consideradas potencialmente perigosas?

Foram classificados como potencialmente perigosos os animais de grande porte que tenham uma estrutura muscular bastante desenvolvida e que tenham uma potência de mandíbula muito grande, capaz de fazer grandes estragos. Quando mordem, estes cães continuam a morder e não largam. São raças que foram selecionadas para terem alguma agressividade.

A perigosidade associada a estes animais levou a que fossem impostas regras...

O detentor de um animal tem de ser maior de idade, de ter um registo criminal limpo e de ter um seguro de responsabilidade civil no valor de 50 mil euros. O animal tem de ter chip e de estar vacinado e, na via pública, tem de andar sempre com açaime e trela curta. Além disso, tem de ser submetido a um treino certificado.

A lei não está mal feita, mas pode de ser melhorada. Seria útil que os donos e cães fossem acompanhados no primeiro ano de vida para se perceber se os detentores estão a usar os animais para fins de companhia/guarda ou se estão a tentar exacerbar neles as características mais agressivas, para fins ilegais.

O cão não se põe bravo de um dia para o outro

Como é que as autoridades podem conhecer as verdadeiras intenções do dono/futuro dono do animal?

O que eu advogo é uma fiscalização pontual em várias etapas da vida do animal, sobretudo no primeiro ano, para perceber que tipo de treino está a ser dado ao cão. Porque o cão não se põe bravo de um dia para o outro. E com este acompanhamento fica a saber-se, por exemplo, se o dono cometeu algum crime (manchando o registo criminal) e se o animal lhe deve ser retirado.

O processo deveria ser tratado num âmbito global e não com medidas pontuais. Começa por identificar os criadores e saber que criação estão a fazer e por perceber quem vai ser o dono. O animal tem de ser bem socializado (quer pelo criador, quer pelo dono) nas primeiras semanas de vida, para poder estar em público ou em casa, com a família e com outros animais. Se o animal for colocado num espaço restrito onde não vê mais ninguém além do dono, provavelmente irá revelar-se agressivo. Mais tarde, deve entrar então um treinador certificado para o treinar de forma a que possa estar em público sem haver risco de perturbação.

Há uma lacuna na implementação da lei e a fiscalização é muito insuficiente

A lei determina que os cães sejam treinados por treinadores certificados, mas estes ainda não existem em Portugal.

Tanto quanto sei, não existem ainda treinadores certificados e isto impossibilita o cumprimento da lei. Enfim, há uma lacuna na implementação. As leis fazem-se, mas é preciso implementá-las e sobretudo fiscalizá-las. O caso recente que veio a público configura uma clara violação da lei: o animal não ia nem à trela nem açaimado. Eu diria que a fiscalização é muito insuficiente.

Estes casos vêm denegrir a imagem do que deve ser o papel do animal de companhia na sociedade, que é ser um elemento de bem estar, de equilíbrio comportamental e de desenvolvimento das crianças e adultos.

Não havendo ainda treinadores certificados, há garantias de que os animais que andam na rua não representem riscos?

Em Portugal, há muitos e bons treinadores, mas que não estão certificados. De resto, tudo depende se os donos são ou não responsáveis. Uma pessoa responsável conhece bem o seu cão (mesmo que não seja potencialmente perigoso) e, se eventualmente não se sentir seguro com ele, não o vai deixar andar à solta na rua. Além de poder atacar uma criança, um adulto ou outro animal, pode intimidar as pessoas. E as pessoas têm de ter respeito umas pelas outras.

Tem de haver um maior acompanhamento de quem tem estes animais, senão casos como este vão continuar a acontecer

Faria sentido que os donos recebessem uma formação para saber lidar com os animais de raças perigosas?

Seria vantajoso, mas primeiro há que estudar o perfil da pessoa. Nem toda a gente pode ter um animal destes. De acordo com o que veio a público, o dono do animal que atacou uma criança esta semana tem cadastro. Das duas uma: ou os incidentes criminais aconteceram após a aquisição do cão ou este foi adquirido no mercado paralelo, sem que lhe tivesse sido exigido o registo criminal.

Se tudo funcionasse como deve ser, uma pessoa que tenha cometido algum crime não poderia continuar na posse do cão. Tem de haver um maior acompanhamento de quem tem estes animais, senão casos como este vão continuar a acontecer.

Qual é o destino do cão após um ataque a uma pessoa ou a outro animal?

O cão é colocado em quarentena no canil municipal e um médico veterinário determinará a solução. E as soluções podem ser várias. É preciso avaliar através de testes comportamentais se o cão mordeu porque estava mal acompanhado, se é equilibrado emocionalmente e se é recuperável. Se for, fica disponível para adoção e pode vir a ter um novo dono. Mas também há casos em que o cão tem uma agressividade extrema, está de tal maneira traumatizado (devido aos ensinamentos ou experiências anteriores) que não é recuperável. E aí, por representar um perigo para a sociedade, tem de ser abatido. É completamente diferente um cão que morde porque interpretou um gesto como um ataque ao dono, porque lhe retiraram um osso da boca ou porque o pisaram, de um cão que, do nada, ataca.

Faria sentido uma proibição total de andar com estes animais em espaço públicos?

Acho que não, acho que desde que andem açaimados e com trela, não há problema. Não vamos obrigar os cães a estar confinados a apartamentos ou casas. Ataques acontecem quando há violações da lei.

Numa situação destas, a responsabilidade é do dono ou do animal?

A responsabilidade é sempre do dono, mas este pode ter mais ou menos responsabilidade. Um dono que tenha treinado o seu cão por forma a que se torne agressivo terá muito mais responsabilidade do que aquele dono que tentou socializar bem o cão e fez tudo correto, mas sem saber porquê o cão um dia mordeu. Não vamos confundir tudo, isto pode acontecer a qualquer um.

Todas as raças têm o direito de existir, mas nem todas as pessoas têm condições para as ter

Os benefícios em ter um animal perigoso como cão de companhia compensam os riscos que se estão a correr?

A isso eu não consigo responder. As pessoas escolhem o cão conforme o seu perfil e aquilo de que gostam. Eu acho é que todas as raças têm o direito de existir, mas nem todas as pessoas têm condições para ter estas raças. Tem de se estudar bem o perfil do dono ou futuro dono.

Em 2013, um cão arraçado de pitbull estava às escuras na cozinha quando atacou um bebé de 18 meses, provocado-lhe a morte. Como é que se explica que um animal educado desde o nascimento ataque um elemento da família?

Bem, tudo isso precisava de uma análise mais cuidada. O cão estava na cozinha como, estava confinado só à cozinha e não socializava com as pessoas da casa? Esse bebé já tinha tido contacto com o cão ou não se conheciam? Há pormenores que nos escapam que fazem a diferença. É evidente que o dono tem tendência a dar a resposta politicamente correta. O dono pode dizer que o animal nunca fez mal, mas pode não ser bem assim. Não me refiro a este caso em específico, mas é certo que as pessoas por vezes são irresponsáveis.

A canicultura tem de obedecer a regras básicas e não pode ser canicultor qualquer pessoa. Têm de ser pessoas que sabem o que estão a fazer. Inglaterra e França são países com uma canicultura muito avançada e onde as pessoas põem os animais num pedestal muito grande. Lá, dificilmente se veem cães agressivos ou ataques. Cá, às vezes as pessoas até acham piada aos cães bravos que intimidam os outros.

Considera que deveriam ser aplicadas penas mais pesadas aos donos infratores para evitar que situações dramáticas se repitam?

Acho que as penas já existem, mas tem de haver fiscalização para que sejam aplicadas. A lei podia ser melhorada, mas se fosse cumprido tudo o que está na lei já era muito bom. O problema é que as regras não são cumpridas.

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