"Terroristas têm pouco conhecimento sobre Islão. São pessoas frustradas"
O Sheik David Munir é o imã da mesquita central de Lisboa e a personalidade mais proeminente da comunidade islâmica em Portugal. É o entrevistado do Vozes Ao Minuto de hoje.
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País David Munir
O Sheik David Munir, de 54 anos, é há mais de 30 anos o imã da mesquita central de Lisboa. Figura incontornável da comunidade islâmica portuguesa, que conta com mais de 50 mil pessoas, o Sheik David Munir tem assumido um discurso de apelo à tolerância e ao diálogo entre as diversas religiões. O líder da comunidade islâmica soube reagir ao protagonismo negativo que recaiu sobre o Islão desde os atentados de 11 de setembro de 2001, esclarecendo a mensagem de paz e de harmonia que é apanágio do Islão e defendendo que não há espaço para os radicais islâmicos nas sociedades livres e multiculturais.
Nesta entrevista ao Notícias Ao Minuto, publicada numa altura emque o mundo chora mais 22 vítimas inocentes que sucumbiram às mãos do terror, desta feita em Manchester, o Sheik David Munir admite que poderá ser inevitável o aumento de restrições de livre circulação de pessoas na Europa.
O responsável destaca ainda a forma como a comunidade islâmica está integrada em Portugal mas mostra-se preocupado com o crescimento dos movimentos de extrema-direita que, como diz, também carregam “um certo radicalismo”. No decurso desta entrevista, faz vários elogios a Marcelo Rebelo de Sousa mas também ao Papa Francisco.
Terroristas são pessoas com pouco conhecimento do Islão, são pessoas frustradas, que emocionalmente não estão bemNos últimos tempos têm-se multiplicado os ataques e atentados terroristas na Europa [o último teve lugar no início desta semana, em Manchester]. Como tem lidado com isto e como tem reagido a comunidade islâmica em Lisboa?
Qualquer atentado, em qualquer parte do mundo, é complicado. Infelizmente, ultimamente em várias cidades da Europa têm acontecido vários atentados em locais públicos. Provavelmente, no início, os alvos estavam marcados. Hoje já não. Hoje podem acontecer num teatro, numa praça pública, na rua. É preocupante, porque colocam a segurança em causa. Em qualquer sociedade, quando não nos sentimos seguros, isso desestabiliza o nosso dia a dia.
Outro fator que é preocupante, e aí é que está o desafio, infelizmente estes atentados são cometidos por pessoas que professam o Islão. A minha religião não ensina o que estas pessoas fazem. Quem são essas pessoas? São pessoas com pouco conhecimento da sua crença, são pessoas frustradas, que emocionalmente não estão bem e tentam reagir desta forma mais agressiva para chamar a atenção, para serem o centro de todas as atenções, com alguma injeção ideológica perturbada do Islão.
Estamos perante um novo estilo de ataques. São levados a cabo pelos denominados ‘lobos solitários’, não requerendo grandes recursos. Por vezes basta terem uma faca, uma arma, acesso a um carro. Esta facilidade de perpetrar ataques terroristas parece aumentar o medo e também a intolerância em diversos países. Como tem seguido a evolução destes ataques?
O Estado Islâmico é um estado que não é um estado, portanto não tem nada a ver com o Islão. E eles perceberam que iriam perder terreno porque os países mais próximos, estamos a falar do Iraque e da Síria, não iriam aguentar por muito mais tempo verem a sua própria população ser massacrada, os seus próprios terrenos serem conquistados e o seu próprio espaço ser atacado por pessoas que nem sequer respeitam os outros. Muitos dos que participaram e dos que participam, dos que fazem parte deste tal Estado Islâmico, são estrangeiros.
Agora o que está a acontecer ultimamente é o regresso dessas pessoas à Europa. Não sabemos concretamente quem são e quanto tempo ficaram, se gostaram ou não gostaram de lá estar. Outros sim, gostaram e querem pôr em prática todos os ensinamentos que lhes passaram. É no regresso que muitas das vezes criam-se ou vão-se criando os tais ‘lobos solitários’. Muito deles nem sequer foram, mas são simpatizantes. Concordaram com a ideologia e querem fazer algo. Com a liberdade que temos na Europa, de livre circulação, ninguém se preocupa com a sua crença desde que respeite a crença dos outros, ninguém o manda parar constantemente para pedir a sua identificação. Tudo isto está a ser posto em causa. Hoje provavelmente a livre circulação já não é o que era antes por razões de segurança.
O receio no nosso caso, visto que a comunidade islâmica está integrada, é que alguém de fora possa vir e fazer um atentado. Você estando no metro, por exemplo, se deixar um livro ou um jornal em árabe abandonado, um saco abandonado, e ligar para o 112 e disser que viu uma mochila...acabou. Fecha-se logo o metro. Agora imagine se aquilo for real...Isto tudo serve para criar medo, terror porque, infelizmente, os membros do Estado Islâmico, as pessoas que pensam assim, têm uma forma de pensar completamente diferente e querem que os outros sejam como eles, que pensem e façam o que eles querem, o que fazem. Entre eles não há muita escolha, ou quase nenhuma. E como estão a perder terreno onde o conquistaram e dominaram durante algum tempo, então os que estão a voltar, vão fazer essas loucuras.
Há duas forças do extremismo e assim será mais complicado
Teme que aumentem as restrições à liberdade, à livre circulação?
Infelizmente vai ter de ser assim. Por razões políticas, sociais, económicas, e também por algumas ideologias de alguns partidos na Europa – xenofobia, islamofobia. Isto tudo está a aumentar e as pessoas estão com algum receio. Há duas forças do extremismo e assim será mais complicado.
É claro que nós temos de reagir de acordo com as circunstâncias, não é? Haverá menos liberdade em termos de circulação. Com menos liberdade quero dizer, que constantemente podemos ser questionados, poderão mandar-nos parar e pedir a nossa identificação. Constantemente poderemos andar na rua e ver polícias armados como se estivessemos numa situação de guerra, numa situação complicada. Durante muitos anos habituámo-nos a não ver policiamento armado. Da última vez que fui a Bruxelas, no centro da cidade parecia que estavam a fazer uma parada militar. E tudo isto por razões de segurança, claro.
Grupos, como por exemplo o Estado Islâmico, recrutam na internet, através das redes sociais. Como impedir o radicalismo?
Acho que a nossa geração não o vai conseguir controlar. É um caminho aberto. Antigamente a internet era muito limitada, hoje é ilimitada. E cada vez mais. Hoje com um smartphone, você pode estar ligado à internet e falar com quem quiser e em qualquer parte. Há vantagens. Para ter uma ideia, nós começámos a transmitir as nossas palestras normais de sexta-feira via Facebook Live. As pessoas gostam, participam, ouvem a palestra, o discurso. Isso é enriquecedor. Mas por outro lado, através das redes sociais, pessoas com alguma fragilidade, com alguma perturbação ou dificuldade emocional e com muita ignorância sobre o Islão, podem ser facilmente manipuladas.
Costumo dizer que o papel dos líderes, seja religioso ou político, é muito importante porque as pessoas ouvem a mensagem do líder. É por isso que ele é líder. Principalmente os líderes religiosos... deveriam fazer mais. Nós deveríamos fazer mais, participar mais e unir as nossas forças - os líderes religiosos da Europa - e em conjunto com as outras confissões ou em conjunto com as autoridades, falar às pessoas em geral, e em particular, a algumas pessoas da comunidade, sobre esse fenómeno para o qual eles utilizam o termo jihadismo. Esclarecer alguns termos: o que é jihadismo, o que é o jihad, o que é conviver com as outras culturas, como conviver, o que é cidadania. É um papel muito importante e todos temos de nos empenhar nisso.
Eu posso ser muçulmano e europeu. A crença não tem nada a ver com a pátria
Portugal não é, aparentemente, um país propício para a expansão do radicalismo islâmico. Como explica isso?
Esta é a dificuldade que algumas autoridades da Europa têm. Não conseguem perceber como é que os muçulmanos em Portugal estão integrados, não têm o problema da radicalização e eles têm. E parece que a radicalização na Europa está a aumentar. Está a aumentar porque os ataques estão a aumentar. Mesmo com tanta segurança, com tanto controlo, com tanta monitorização. Em Portugal isso não aconteceu e esperemos que não aconteça.
Vêm muitos muçulmanos a Portugal e visitam a mesquita. Vêm de França, Alemanha, Holanda e dizem-me que não se consideram europeus. Qual é o problema de um muçulmano que nasceu na Europa se identificar como europeu? Porque alguns teólogos disseram, provavelmente: ‘Se você disser que é europeu, deixou de ser muçulmano’. O que é mentira. Eu posso ser muçulmano e europeu. A crença não tem nada a ver com a pátria. Isto acontece porque, países como a França, não querem que eles sejam franceses, aceita-os mas são considerados cidadãos de segunda e isto faz com que a pessoa tenha alguma dificuldade em integrar-se.
Como vê o crescimento da extrema-direita na Europa?
Com alguma preocupação porque também há um certo radicalismo entre eles. A democracia está a perder terreno, quer seja porque as pessoas não confiam nos políticos, ou porque hoje cada um só pensa em si ou no seu grupo, querem o poder e para conquistarem o poder são capazes de usar tudo e mais alguma coisa. É preocupante porque também não nos dá segurança. Não é criando muros e fechando as fronteiras que se resolvem os problemas.
Apesar das derrotas nas legislativas de Le Pen em França e de Wilders na Holanda, a verdade é que os partidos de extrema-direita continuam a crescer e a consolidar a sua posição. Ouviu-se e leu-se muito a expressão ‘respirar de alívio’ no dia seguinte à vitória de Macron nas presidenciais francesas . É seguro fazê-lo ou devemos recear que estes movimentos continuem a expandir-se e a obter melhores resultados nas próximas eleições?
Esses movimentos estão a crescer porque tem havido ataques, problemas de integração e de identificação. Como muçulmano europeu, acho que os muçulmanos que vivem na Europa têm de se considerar europeus. Aqui o Estado, as autarquias têm um papel muito importante para que eles se sintam como europeus. E esse trabalho é feito no terreno, não é nos discursos, nas palestras. Não é um trabalho académico. Têm de estar com estas pessoas, conviver com elas.
Os muçulmanos que vivem na Europa têm de abrir os espaços de culto, as mesquitas, para que os não muçulmanos vejam o que se faz. Há uns tempos dizia-se que o discurso do radicalismo era feito nas mesquitas, porque há mesquitas clandestinas. Quando há um suspeito de um atentado, uma das primeiras coisas que se faz ou que se investiga é saber qual a mesquita que frequentava. Faz-se logo uma ligação à mesquita. Devíamos abrir as portas, convidar as pessoas todas e se houver essa abertura, a extrema-direita pode não crescer como está a crescer. Há um discurso de ódio para com aquele que não é semelhante a nós. Houve um discurso de ódio por parte dos radicais para com aqueles que não são europeus. Houve discursos de muito ódio em mesquitas na Europa. Hoje já não há tanto porque há outras formas de abordar as questões. Se há um discurso de ódio de um lado é normal haver do outro.
Em Portugal, a extrema-direita não tem crescido, pelo menos comparativamente ao que sucede na Europa Central, por exemplo.
Em Portugal, todas as comunidades têm tido um papel muito importante e as autoridades também. A presença das autoridades nas mesquitas, estamos a falar da presença do Presidente da República, do primeiro-ministro, nós convidamos mas também somos convidados. Isto tem um impacto. Tem um impacto enorme porque eles convivem connosco, estão connosco, e até agora não houve nenhum problema religioso entre muçulmanos e não muçulmanos no nosso país.
A extrema-direita no nosso país vai buscar exemplos fora de Portugal. Não há nenhum exemplo em Portugal que eles possam utilizar. Houve uma manifestação o ano passado em frente à mesquita, anti-islâmica e nós não fizemos nada. Eles estão no seu direito de se manifestarem e qual era o slogan deles? ‘Fora com o Islão da Europa’. Não disseram fora com o Islão de Portugal, porque em Portugal os muçulmanos são portugueses. Se disser a um português para sair de Portugal para onde é que ele vai? É tão simples como isso.
Sente alguma diferença na forma como a comunidade islâmica é recebida e tratada em Portugal, principalmente nos últimos anos com a expansão do Estado Islâmico e com o aumento dos atentados na Europa?
Acho que na prática não mudou muito. Às vezes as pessoas escrevem algumas coisas nas redes sociais, mas como já disse, não aconteceu nada de grave no nosso país e como não aconteceu, as pessoas vão buscar exemplos fora do nosso país. Nós não temos guetos. Em Portugal, aqui em Lisboa, não temos nenhum bairro que as pessoas possam dizer que é dos árabes, indianos ou dos chineses. Integramo-nos em todos os bairros. Há bairros com alguma complicação em termos de segurança, mas nesse bairro podemos ver um branco, um negro, um asiático. Estão lá todos. E o problema nesses casos não é a religião.
Os portugueses sentem curiosidade em conhecer melhor a comunidade islâmica, em saber mais sobre o Islão, visitar a mesquita?
Sim, aumentou. Não sei se aumentou devido ao 11 de Setembro, aos outros ataques ou ao Trump, mas aumentou. Mas depois também há aquele preconceito: ‘Pode-se ir à mesquita? Pode-se entrar? Mas pode-se mesmo? Eles são tão fechados’. A porta está tão aberta [sorri]. As professoras dizem-me que é muito mais fácil marcar uma visita à mesquita do que a uma igreja ou a uma sinagoga.
Portugal continua a ser um local atrativo para a comunidade islâmica?
Sim. Já vieram várias famílias muçulmanas do estrangeiro. O problema é a língua, algumas não se adaptaram. Se uma pessoa não fala mesmo português, então cria uma filial. Mas sentem-se bem. Há pessoas que compraram casas no Algarve só para virem passar férias. Há famílias muçulmanas que gostam de viajar para Portugal. Devido ao clima, que ajuda, depois a segurança, não aconteceu nada aqui, e depois têm mesquitas que não são de difícil acesso e onde se pode conviver.
Costumo dizer aos muçulmanos que quem não estiver satisfeito por viver num país que lhe deu a oportunidade de pôr em prática a sua crença, que não crie problemas, que emigre.Há quem compare Marcelo com o Papa Francisco: São pessoas que quebram o protocolo, que querem estar com o povo
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa esteve aqui na mesquita com um discurso acolhedor e elogiou o papel da comunidade islâmica em Portugal. Marcelo Rebelo de Sousa é um Presidente muito popular entre os portugueses. Qual a importância de ter uma figura como ele com esta posição congregadora entre as diversas religiões?
Não só entre as religiões mas também entre os partidos políticos, ele tem tido um papel muito importante. O pai do Presidente foi Governador de Moçambique, portanto ele viajou várias vezes a Moçambique, e Moçambique é um país em que as várias comunidades viviam pacificamente. Ele tem isso nos genes.
A comunidade islâmica tem sido exemplar, então ele veio dizer :“Eu estou convosco”. Há quem compare Marcelo com o Papa Francisco: são pessoas que quebram o protocolo, que querem estar com o povo e é por isso que foram eleitos. No caso do Presidente foi eleito, no caso do Papa foi diferente. É claro que um é político e outro é religioso.
Tenho a certeza de que o Presidente Marcelo não age assim por necessidade de protagonismo, as pessoas já o conhecem. Ele quer ser como é. Ele foi sempre assim. Vindo à mesquita, prometeu ir aos outros lugares sagrados e vai de certeza. Ele quer que os religiosos e as comunidades religiosas tenham um papel ainda mais importante para com a sua congregação, para que não haja um problema de integração.
Também lhe ia colocar uma questão sobre o Papa Francisco. Enviou-lhe uma mensagem de boas-vindas na sua recente visita a Fátima e elogiou o trabalho que ele tem realizado. Esta maior abertura do Papa ao diálogo inter-religioso pode congregar mais as diferentes religiões?
É um Papa diferente, um Papa do povo. Transmite muita paz e muita segurança também aos não católicos. É um Papa que apoia os refugiados, consegue distinguir o que é religioso do que não é religioso. O Papa Francisco é franciscano, quem conhece os franciscanos, percebe a sua simplicidade. Não é preciso ser católico para admirar o Papa Francisco. Ele está a revolucionar a Igreja Católica, em todos os aspetos.
Não vi nenhum líder religioso e político do mundo islâmico a ir buscar os refugiados e ele foi. Mesmo que tenha sido uma pessoa, ele foi.
A crise dos refugiados já dura há alguns anos. Acha que a Europa, as instituições europeias têm agido de forma adequada para resolver este problema?
O receio na Europa é que nesta onda de refugiados possam vir muitos simpatizantes do Daesh porque foi o Daesh que criou esta situação. Algumas das guerras que estão a criar refugiados estão ligadas a grupos religiosos. Os Taliban no Afeganistão, a Al-Qaeda no Iraque e na Síria o Daesh. Eles estão a criar esta onda porque as pessoas estão a fugir deles e será que entre os refugiados poderão ou não poderão estar simpatizantes do Daesh.
O abismo nesta situação é a travessia. Perderam-se muitas vidas e algumas pessoas ganharam dinheiro com isso.
O mesmo versículo do Alcorão que pode levá-lo a salvar uma vida pode fazer com que mate pessoasQuão importante é a leitura do Alcorão para que os não muçulmanos entendam o Islão?
É obrigatório. É um ponto de partida para as pessoas que querem conhecer o Islão. As pessoas que conhecem o Islão e que deturpam alguns versículos, têm de fazer uma nova leitura. E é muito importante que essa leitura seja feita com uma mente mais aberta, senão o mesmo versículo que pode levá-lo a salvar uma vida pode fazer com que mate pessoas. As pessoas têm de ter uma mente mais aberta e respeitar as outras formas de leitura dos versículos do Alcorão ou da prática do Islão, porque se nos limitarmos a uma só leitura a uma só postura, estamos a auto-destruir-nos.
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