"É prematuro, senão aventureiro, ligar mortes a falta de assistência"
Fernando Serra Leal da Costa, especialista de hematologia clínica e de oncologia médica e ex-ministro da Saúde, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Leal da Costa
Atualmente é médico no Instituto Português de Oncologia (IPO) e dá aulas na Escola Nacional de Saúde Pública, mas ainda há dois anos assumia o cargo de ministro da Saúde. Fernando Serra Leal da Costa, especialista de hematologia clínica e de oncologia médica, foi secretário de Estado Adjunto do ministro da Saúde Paulo Macedo, quem acabou por substituir no cargo já em 2015.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto recorda as condições do IPO quando lá chegou, em 1993, fala do que falta atualmente e comenta as polémicas que rondavam o Sistema Nacional de Saúde e o Ministério da Saúde quando esteve no governo, bem como os desafios que atualmente ‘pairam’.
O que o levou a especializar-se em hematologia e oncologia?
Em hematologia pelo desafio que a especialidade na altura representava. Nessa altura estava interessado no transplante de medula. Depois acabei por também adotar a especialidade de oncologia, que não existia quando comecei a especialidade, porque durante algum tempo trabalhei com doentes oncológicos não só hematológicos e achei que era interessante, até porque na realidade a hematologia que me interessa está muito mais próxima da oncologia do que de qualquer outra especialidade.
Quando chegou ao IPO, o que precisava de mudar? E agora?
Ah, faltava muita coisa. Quando eu vim para aqui em 1993 as dificuldades eram imensas. Não havia apoio laboratorial durante 24 horas, havia algumas coisas básicas que não estavam asseguradas.
Hoje em dia é um hospital moderno que do ponto de vista oncológico está ao nível do que melhor se faz em todo o mundo. Agora temos problemas do ponto de vista das instalações e o hospital precisa rapidamente de crescer. Precisaria de ser construído um novo hospital ou pelo menos um edifício de ambulatório adequado àquilo que são as necessidades, já que a probabilidade de se construir um novo hospital hoje em dia é remota.
Não diria que Portugal seja um país pioneiro na luta contra o cancroQuanto a tratamentos para o cancro, considera que Portugal é um dos países pioneiros nesta luta e descoberta?
Não diria que Portugal seja um país pioneiro. Acho que desse ponto de vista Portugal não tem sido pioneiro. Acho que Portugal foi pioneiro quando construiu o IPO, que foi um dos primeiros do mundo. Hoje em dia, o que Portugal eventualmente tem feito é tentar acompanhar o que melhor se faz nesta matéria.
Os recursos faltam, as condições não são as melhores para que se desenvolva verdadeiramente grande pioneirismo em termos de investigação e desse ponto de vista temos de ser modestos e reconhecer que os países economicamente mais dotados, nomeadamente os EUA, serão sempre aqueles que irão liderar em termos de pioneirismo a investigação contra o cancro.
Foi consultor de Aníbal Cavaco Silva para os Assuntos da Política da Saúde. Esta relação entre a política e a saúde é fácil de gerir?
Há muitos anos disse que os médicos têm uma propensão especial e particular para a política, mais do que não seja porque desempenham uma profissão que está muito próxima das pessoas. Por um lado conhecem bem as pessoas e o seu sofrimento e ao mesmo tempo através desta condição estamos sempre dispostos a encontrar soluções para os problemas. A relação é normal entre a política e a medicina. Em Portugal até houve presidentes da República médicos. Não acho que haja qualquer relação de antagonismo, bem pelo contrário.
Essa reportagem fez parte de um conjunto de intervenções que na altura estavam montadas para tentar denegrir aquilo que era a atuação do Ministério da Saúde
Reagiu a uma reportagem da TVI sobre o caos das urgências em Portugal, quando era adjunto de Paulo Macedo, dizendo que o que se viu ali eram “pessoas bem instaladas” e “profissionais esforçados”. Mantém essa opinião?
Absolutamente. Essa reportagem fez parte de um conjunto de intervenções que na altura estavam montadas para de alguma forma tentar denegrir aquilo que era a atuação do Ministério da Saúde e pior do que isso - e isso foi o que mais me doeu - denegrir o Serviço Nacional de Saúde e o trabalho esforçadíssimo de quem lá trabalha. Este ano as condições não terão sido diferentes mas já não se fizeram reportagens.
Em boa verdade, se olharmos com atenção, houve aspetos importantes que aquela reportagem mostrou, nomeadamente de serviços muito modernizados que foram pura e simplesmente abafados. E quanto às pessoas bem instaladas eu apenas referi um aspeto que é fundamental que é o de as pessoas estarem todas deitadas em camas com resguardo anti-queda, coisa que define um dos parâmetros mais importantes da qualidade em atendimento.
Isto passou-se em 2015, acha que os serviços de urgência em Portugal melhoraram desde aí?
É óbvio que durante os últimos anos e continuadamente o Sistema Nacional de Saúde (SNS) tem sempre melhorado. Houve serviços que na altura já estavam a ser alvo de remodelação, houve obras que foram feitas e outras que irão ser.
Portanto, não tenho a mínima dúvida de que o Sistema Nacional de Saúde tem vindo a melhorar. É evidente que nos dois últimos anos o ritmo de melhoria do SNS foi obviamente muito diminuído. A principal preocupação do Governo que agora temos é não fazer investimento, é não responder àquilo que são as necessidades dos portugueses em termos de saúde. Em contrapartida a estratégia que decidiram foi a de fazer a reposição de salários dos funcionários públicos. Eu próprio agradeço porque fui beneficiado, mas os portugueses em geral não têm sido beneficiados por esta política de saúde que o Governo atual tem desenvolvido.
É sempre muito prematuro, senão aventureiro, ligar mortes a processos de falta de assistênciaE como comenta as mortes por falta de assistência nos hospitais? O caso de David Duarte é o mais mediático.
Comento como sempre comentei. É preciso em primeiro lugar que se demonstre que houve na realidade falta de assistência e que essa falta de assistência foi a causa de morte nesses casos. É evidente que em Portugal, como em qualquer outro serviço de saúde, e isso está bem documentado, há sempre uma probabilidade de haver acidentes, de haver casos em que a assistência não foi a melhor. É sempre muito prematuro, senão aventureiro, ligar mortes a processos de falta de assistência. E se essas mortes por falta de assistência acontecerem aquilo que temos de fazer é avaliar as condições que determinaram essa circunstância e fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para as corrigir.
Quem tem de procurar os acordos com o governo é a indústria farmacêutica, não o contrárioNesta altura houve ainda uma crise ligada aos custos do tratamento da Hepatite C, o que depois levou o governo a fazer um acordo com a farmacêutica. Considera que a pressão deve ser mais posta nas farmacêuticas do que nos governos?
No caso da Hepatite C, o que houve foi uma situação que levou a indústria farmacêutica a querer fazer um acordo com o governo e não o contrário. Quem tem de procurar os acordos com o governo é a indústria farmacêutica, não é o governo que tem de procurar fazer acordos com a indústria farmacêutica. Quem pretende vender o seu medicamento é a indústria e por isso é ela que tem de sistematicamente criar as condições adequadas para que exista um preço que seja comportável para todos os portugueses.
Aquilo que aconteceu com a Hepatite C, neste caso, acabou por ser um processo normal de negociação que aqui e acolá poderá ter sido aparentemente perturbado por algumas ações, mas nada de extraordinário ou de novo que nunca tenha acontecido noutros países.
Recentemente têm surgido novos casos de Sarampo e Hepatite A. Considera que a culpa é da 'moda' de não vacinar as crianças?
Não diria isso, até porque a percentagem de não vacinados em Portugal é relativamente pequena. O que me parece é que estes casos, que revelam uma tendência epidemiológica, no caso do sarampo, devem levar claramente aqueles que não têm vacinado os seus filhos a que o façam o mais rapidamente possível. O que caso de hepatite A tem que ver essencialmente, ao que tudo indica, com a transmissão entre homens que têm sexo com homens e aí o grande apelo, mais do que à vacinação, é que não insistam em ter sexo desprotegido porque isso de facto é um risco muito grande.
O que se pode fazer para prevenir o reaparecimento destas e de outras estirpes?
No caso do sarampo, como de outras doenças virais, é reforçar o programa de vacinação (naquelas que têm vacinas) e tentarmos de uma forma muito clara convencer as pessoas de que a vacinação é um bem precioso e que não deve ser desperdiçado. Até porque Portugal tem um programa alargado gratuito de vacinação que tem de ser aproveitado por todos. Já quando há emergência natural do vírus por questão seletiva, pois não nos resta outra coisa que não cruzar os dedos e estar preparados para responder às ameaças infeciosas que aí vêm e, obviamente, trabalhar no sentido de desenvolver novas vacinas. É isso que tem sido feito.
Não estou convencido de que a vacinação deva, nesta fase, passar a ser obrigatória. 'Moda' da não vacinação tenderá a passarAcha que se estas situações continuarem será necessário que a vacinação se torne obrigatória?
Não estou convencido de que a vacinação deva, nesta fase, passar a ser obrigatória. Acho que a vacinação obrigatória é qualquer coisa que faz sentido existir em contextos de graves crise de saúde pública. Deste ponto de vista não existe ainda uma pressão epidémica ou endémica que justifique a vacinação obrigatória. Estou convencido de que esta ‘moda’ da não vacinação tenderá naturalmente a passar, até porque compete aos especialistas irem explicando às pessoas que tudo o que se tem dito sobre as vacinas, na maioria dos casos, não tem nenhuma credibilidade científica. Como tal, talvez ainda não seja preciso chegar a uma medida tão drástica como a vacinação obrigatória.
Imagine que temos vacinação obrigatória e há um acidente alérgico com alguém que faça um choque anafilático e morra. De quem é que fica a responsabilidade? Do prestador? As medidas de terapêutica obrigatória são sempre muito complicadas.
Processo da eutanásia pode levar, como já aconteceu em países como a Bélgica, à morte de doentes mentais em contexto de depressão. Isso é pavorosoA eutanásia é um dos temas que tem estado na ordem do dia, qual é a sua posição em relação a isto?
Esse é um assunto sobre o qual se tem falado com uma grande confusão terminológica. Acho que há pessoas que continuam a confundir aquilo que é a eutanásia com o que é o suicídio assistido ou com a prossecução de tratamento paliativo sem intenção de prolongar o sofrimento por via de tratamentos desnecessários. Há alguma confusão em torno dessas matérias.
Se me perguntar qual é a minha posição quanto à eutanásia enquanto processo, eu diria que quanto ao homicídio regulado a minha visão é de que, embora reconheça que possa haver situações de extrema penosidade onde não se justifique a continuação da manutenção da vida, tenho grandes dúvidas sobre a legalização e regulação deste processo. Processo que pode levar, como já aconteceu em países como a Bélgica, pura e simplesmente à morte por eutanásia de doentes mentais em contexto de depressão. Isso é qualquer coisa de absolutamente pavoroso com que em circunstância alguma nenhum médico pode concordar.
No final de 2016, escreveu um artigo a criticar a proposta de Lei 34/XIII. Considera que legislação ligada à saúde ainda promove a divisão e exclusão em vez da inclusão – mesmo falando em termos de medicinas alternativas ou não reconhecidas?
Penso que a legislação em saúde, do ponto de vista das medicinas alternativas, ainda tem um largo passo para andar. Nós, governo, fomos obrigados a regular e a legislar sobre uma disposição que tinha sido feita no Parlamento e que, do meu ponto de vista, tem alguns erros importantes. Nomeadamente porque alarga demasiado aquilo que são intervenções não habituais, não clássicas, na saúde das pessoas e põe ao mesmo nível terapêuticas que, do meu ponto de vista, não têm nenhuma prova científica e outras que são já práticas correntes, muitas delas até já assumidas e integradas naquilo que é a medicina ocidental. Penso que demos passos importantes, mas teria sido melhor se a iniciativa não tivesse partido do Parlamento, mas sim do governo. As iniciativas que por vezes partem do Parlamento têm um contexto muito mais político do que técnico.
Seguramente temos qualquer coisa a aprender com as medicinas tradicionais
Considera que algumas medicinas alternativas deviam ser reconhecidas?
Penso que há intervenções terapêuticas não convencionais - prefiro esse termo a medicinas alternativas – que devem ser reconhecidas e adotadas. Por exemplo a acupuntura, a osteopatia, são intervenções ditas não convencionais que têm vindo a ser integradas na medicina corrente. Até mesmo alguma fitoterapia, faz sentido que seja incluída, e seguramente temos qualquer coisa a aprender com as medicinas tradicionais.
Dito isto, há outras intervenções sobre as quais tenho as maiores dúvidas, por exemplo, a homeopatia, que não tem nenhuma evidência científica sólida que demonstre a sua eficácia para, enfim, os fins terapêuticos a que ela se diz propor.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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