Israel e Palestina "podem ser vizinhos, não têm de se adorar"
Com um novo livro e a preparar o primeiro Museu Judaico de Lisboa, Esther Mucznik é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Esther Mucznik
Há mais de 20 anos a defender a criação de um Museu Judaico de Lisboa, o projeto de Esther Mucznik tem agora inauguração prevista para 2018.
A ex-vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa (de 2002 a 2016), fundadora e presidente da Associação Memória e Ensino do Holocausto e membro da Comissão de Liberdade Religiosa é a entrevistada do Vozes ao Minuto de hoje.
Paralelamente ao trabalho para a concretização do museu, Esther Mucznik escreveu um novo livro. ‘A Grande Epopeia dos Judeus no Século XX’ foca-se no caminho para a fundação do Estado de Israel, mas também na história do judaísmo em Portugal.
Como foi o trabalho de investigação para este livro?
Isto é uma investigação e não é uma investigação. Tem muito a ver comigo própria, com a minha família, é um percurso de vida. Os meus pais vieram da Polónia e tiveram quatro filhos, que já nasceram em Portugal. Íamos muitas vezes a Israel e toda a sua história está presente na minha família, na minha identidade.
O livro nasce de uma necessidade de explicar coisas que, acho, os jovens hoje não têm bem noção. Uma delas que o Estado de Israel não nasce em 1948. Oficialmente, sim, mas enquanto político nasce no século XIX. Israel faz parte de mim, como faz parte, de formas diferentes, de todos os judeus.
A minha decisão de escrever foi por sentir que o tempo vai passando e as pessoas vão perdendo de vista todo o percurso, a lenta, difícil e complexa, talvez inacabada, construção do Estado de Israel.
Israel é um país que existe muito para além do conflito, como é óbvioÉ uma questão de preservação da memória?
Mas não só. O conflito israelo-palestiniano, sendo real, abafa de certa maneira, contribui para camuflar o que deu origem ao Estado de Israel, bem como a realidade do país. É um país que existe muito para além do conflito, como é óbvio.
É uma das sociedades mais desenvolvidas do planeta, apesar de 70 anos de guerra latente é um país que se mantém fiel aos seus valores iniciais de democracia, separação de poderes e imprensa completamente livre. Onde as pessoas vivem, amam, choram, riem, trabalham, vão ao cinema. Muitos interessam-se pelo conflito, e acho bem, mas não se interessam nada pelo país. Este livro destina-se a tirar uma luz diferente.
No final do seu livro escreve que para haver paz entre israelitas e palestinianos é necessário "separar a política do sagrado, ou seja, separar o Céu e a Terra". Acha que isso será alguma vez possível?
Não sei, mas espero que sim porque nenhuma guerra é eterna. Acho que as pessoas de parte a parte têm de abandonar os seus mitos e fantasmas. Uma das atitudes palestinianas tem sido negar a ligação de Jerusalém e dos judeus, o que é absurdo. O problema é que é uma guerra inútil, tentar provar quem é que tem ligação a isto ou àquilo. Não é disso que será feita a paz, se um dia houver paz.
A paz entre Israel e o Egito em 1979 foi feita de coragem política de parte a parte, de compromissos políticos, de confiança mútua, esses é que são os ingredientes importantes para a paz [...] Nem os judeus vão sair de onde estão, nem os palestinianos vão sair, que também fazem parte daquela terra. Não é preciso casarem-se, mas podem ser vizinhos, não têm de se adorar.
A realidade nunca é tão bela como os sonhos. Se queremos que os sonhos fiquem intactos é melhor nunca tentar concretizá-losNa sua opinião, o sonho dos "primeiros idealistas" para o Estado de Israel foi cumprido?
A realidade nunca é tão bela como os sonhos. Se queremos que os sonhos fiquem intactos é melhor nunca tentar concretizá-los. No essencial acho que se cumpriu, sim. Quando eles começaram a ir para lá no final do século XIX a situação era dificílima. A “terra do leite e do mel” descrita na Bíblia não tinha nem leite nem mel, tinha pântanos a sul e desertos a norte. Muitos dos pioneiros morreram de doenças e exaustão.
Foi muito difícil, mas criou-se o único Estado democrático do Médio Oriente, com poder judicial independente, uma imprensa extremamente crítica e um povo que não é passivo. Em 70 anos ainda não cumpridos de vida de Israel há 11 prémios Nobel. No geral, as pessoas têm um nível de vida relativamente bom (claro que há também pobres). A paz ainda não aconteceu, é esse o aspeto mais negativo, e há outros, como em qualquer outro país. Mas acho que o sonho, no essencial, foi cumprido.
Nós hoje vemos que o anti-semitismo não acabou. A humanidade não tolera a diferença
Como vê o futuro? Pensa que as provações passadas por este povo de "cerviz dura", como escreve, já terminaram?
Nem pensar. Não há nenhum judeu que acredite nisso. O povo judeu foi alvo de imensas perseguições, como se sabe – a Inquisição, o Holocausto, os guetos… Nós hoje vemos que o anti-semitismo não acabou. A humanidade não tolera a diferença.
Quando as pessoas estão infelizes e algo não está bem, arranjam um bode expiatório. Os judeus eram o bode expiatório de eleição porque não tinham quem os defendesse. Agora têm o Estado de Israel […] Também cumpriu essa função, servir de refúgio em caso de necessidade.
De certa maneira a Inquisição e a constatação dos seus malefícios funcionou como uma vacinaComo explica que Portugal tenha 'escapado' aos movimentos anti-semitas que se verificaram em muitos países na Europa no século XX?
É muito interessante constatarmos isso. Tendo em conta aquilo que nós conhecemos sobre o período do Marquês de Pombal, no final do Século XVIII, a elite portuguesa, os chamados estrangeirados que tinham ideias mais abertas e uma visão mais ampla do mundo, lutavam conta a Inquisição. Achavam que era algo absurdo e que uma das razões da decadência de Portugal tinha sido a sangria feita aos judeus. De certa maneira a Inquisição e a constatação dos seus malefícios funcionou como uma vacina.
Aprendeu-se com a história?
Aprendeu-se com a história. A Inquisição ficou tão mal vista, foi má para Portugal inteiro. Era uma camisa de forças do pensamento. […] Há situações paralelas: de acolhimento e convivência durante o tempo das Cruzadas enquanto na Europa os massacres aos judeus eram atrozes, e também um período de integração no século XIX e XX em Portugal, contrastante com o que se passava na Europa. Tudo isso tem muitas explicações, tem a ver com a História, com o papel dos judeus e com o próprio caráter do povo português.
O Museu Judaico de Lisboa vai para a frente. A construção ainda não começou, mas estamos a trabalhar afincadamente Como estão a decorrer os preparativos para o Museu Judaico de Lisboa?
O museu vai para a frente. A construção ainda não começou, mas estamos a trabalhar afincadamente na museologia e a museografia. Temos peças muito bonitas, muitas doações interessantes, mas também imagens e interatividade. A inauguração está prevista para 2018. Acho que vai ser uma mais-valia para os lisboetas, Portugal e para o turismo internacional.
O projeto foi aprovado unanimemente por todos os partidos da Câmara Municipal e pela Direção-Geral do Património Cultural naquele sítio. Há pessoas em Alfama que têm receio por causa dos arraiais do mês de junho, mas pelo nosso lado não haverá problema nenhum. A nossa posição será colaborar, não impedir seja o que for. Nem o museu vai ter qualquer interferência, pelo contrário! É uma alegria ter ali aquela gente toda.
Este era um projeto há muito reivindicado pela comunidade israelita. O que falta fazer na cidade, no país, para assinalar o legado dos judeus portugueses?
A primeira vez que fui propor um museu judaico em Lisboa foi há 21 anos […]. O museu era importante, mas mais do que isso era importante conhecer melhor a História, nomeadamente nos programas escolares […] Fala-se do Holocausto mas não do contributo positivo judaico a Portugal.
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