"Em Portugal, o nosso Estado Islâmico chama-se incêndios florestais"
A tragédia que atingiu, em particular, o concelho de Pedrógão Grande começou há, exatamente, uma semana, razão pela qual o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto é Duarte Caldeira, ex-presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses e atual presidente do Centro de Estudos de Intervenção e Proteção Civil.
© Duarte Caldeira
País Duarte Caldeira
O último balanço da tragédia ocorrida na região Centro do país dá conta de 64 vítimas mortais e mais de 200 feridos. Aldeias evacuadas, habitações destruídas, pessoas retiradas de casa por precaução e uma enorme mancha cinzenta. É desta forma que se pode descrever os efeitos dos incêndios da última semana, tendo sido o de Pedrógão Grande o mais gravoso.
Para Duarte Caldeira é “óbvio que teve de falhar alguma coisa”, embora defenda que nenhuma das falhas partiu da Polícia Judiciária que afirmou, perentoriamente, que a causa do incêndio foi uma trovoada seca.
A ausência de uma estratégia que defina a interdição das vias rodoviárias no perímetro do incêndio é uma das falhas apontadas pelo especialista que acusa a Proteção Civil de ser “fechada a opiniões exteriores”, apontando quatro lições que, sublinha, devem ser retiradas desta tragédia.
Como é que se explica a tragédia de Pedrógão Grande?
Ora, num país que lida com incêndios florestais gravosos há 30 anos, é óbvio que teve de falhar alguma coisa. É impossível perante um resultado destes, em que morrem 64 pessoas, que não tenha falhado alguma coisa.
As pessoas estão habituadas a que as trovoadas tenham um trovão que seja audívelA Polícia Judiciária diz que o incêndio teve origem numa trovoada seca…
Acredito perfeitamente na versão veiculada pela Polícia Judiciária. Não me passa pela cabeça que uma instituição com o prestígio, a competência técnica e científica, e a idoneidade que tem pudesse inventar uma versão relativamente à causa do incêndio que não seja tecnicamente sustentada.
Mas os populares garantem que as trovoadas começaram mais tarde, quando o incêndio já lavrava.
Há aqui um erro de desconhecimento científico. É que as pessoas estão habituadas a que as trovoadas tenham um trovão que seja audível. Só que quando as nuvens estão muito altas podem ocorrer, perfeitamente, trovoadas e descargas sem que seja percetível pelas pessoas. Aliás, os registos do IPMA demonstram que efetivamente havia descargas na altura em que o início [do incêndio] ocorre, embora não tenham sido percecionadas pelas pessoas.
Considera que o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses se precipitou ao dizer que acredita que o incêndio teve "mão criminosa"?
Não quero fazer juízos de valor porque também não conheço quais são as razões que levaram o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses a afirmar o que afirmou. Eu não me permito a mim, cidadão, pôr em causa a seriedade técnica e científica da Polícia Judiciária. Para mim, esta questão está absolutamente esclarecida.
Voltemos à primeira questão então… Como é que se explica esta tragédia?
O problema em Portugal é que os incêndios são potenciados por carga combustível resultante do estado a que a floresta chegou. Esta é a primeira dimensão do problema dos incêndios. A segunda diz respeito às condições meteorológicas e, no sábado, estavam todas as condições reunidas para que o incêndio deflagrasse. A terceira dimensão, que é no fundo a que está em discussão, é como é que se respondeu? Qual foi o tipo de resposta operacional a este conjunto de circunstâncias?
O sucesso de uma operação da Proteção Civil reside fundamentalmente na capacidade de antecipação da evolução da ocorrênciaE qual foi?
É preciso que se perceba que estamos na presença, não de uma operação de bombeiros, mas de uma operação da Proteção Civil. Não é a mesma coisa. A operação da Proteção Civil tem um caráter multi-institucional, isto é, não são apenas os bombeiros que estão envolvidos, são também outras autoridades. O sucesso de uma operação da Proteção Civil reside fundamentalmente na capacidade de antecipação da evolução da ocorrência.
E houve essa capacidade?
No aspeto da segurança das pessoas há nitidamente, do meu ponto de vista, uma falha que não é deste incêndio florestal, é do sistema, pois não está devidamente considerada, aquando da ocorrência de incêndios florestais, a salvaguarda da segurança das vias rodoviárias existentes nos perímetros de incêndio. Não se pode estar à espera que um incêndio possa afetar uma via rodoviária para se tomarem as medidas de precaução necessárias.
Isso pressupõe uma mobilização muito grande de elementos das forças de segurança…
Seguramente que sim, mas perante a ocorrência de um incêndio florestal, que todos sabemos que em Portugal se transforma rapidamente em grandes operações da Proteção Civil, deverá ser equacionada a necessidade de reforço dos elementos das forças de segurança que permitam a adoção de medidas cautelares de imediata interdição das vias rodoviárias.
É isso que justifica as 47 mortes na Estrada Nacional 236-1?
Eu estou a afirmar que não é um problema deste incêndio, ou seja, a inexistência desta abordagem do problema já podia ter criado, em situações anteriores, problemas deste tipo porque não há, no sistema de planeamento operacional, esta abordagem de interdição imediata das vias rodoviárias do perímetro do incêndio com a mobilização suplementar de agentes da autoridade.
Que esta circunstância foi a causa da morte de 47 pessoas naquela estrada não é ainda possível afirmar
Mas quando era presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses alertou para esta questão. Não se fez nada porquê?
O nosso sistema de Proteção Civil está marcado por uma grande dificuldade de os decisores terem disponibilidade e humildade para ouvir e aprender. O nosso sistema de Proteção Civil está excessivamente impregnado de opiniões, há uma discussão fechada que faz com que se torne impenetrável a opiniões exteriores. Ninguém sabe tudo de nada. É indispensável que o nosso sistema de Proteção Civil aprenda a abrir-se ao conhecimento exterior, aprenda a não descurar a opinião das universidades, dos centros de investigação e dos especialistas.
Então não podemos isentar totalmente de culpas a Proteção Civil.
A Proteção Civil não é uma entidade abstrata, é um sistema que tem serviços e órgãos. Quando falamos de Proteção Civil é uma coisa abstrata, tudo é Proteção Civil. Quando falamos de Proteção Civil é preciso precisar do que é que estamos a falar. A razão por que tem que haver uma unidade de comando na Proteção Civil é exatamente em função da sua especificidade. É um conjunto de partes autónomas que, em determinada situação, se transforma num todo e tem que funcionar como um todo. E sempre que este sistema não funciona como um todo, abre fratura no seu seio.
Reformulando: podemos isentar de culpas a unidade de comando da Proteção Civil em Pedrógão?
Neste momento não podemos, nem isentar, nem atribuir culpas a ninguém. Agora, que há culpas, no sentido de responsabilidades, a apurar, isso há. E isto não tem que significar necessariamente, como é prática em Portugal, cortar cabeças. Esta é a forma mais idiota e medíocre de abordar esta questão. Nesta fase não se pode colocar em cima da mesa demissões porque são coisas demasiadamente sérias para serem tratadas assim. Mesmo que isso se faça não pode ficar sem resposta e sem identificação o que é que realmente falhou neste sistema.
Nós não temos uma rotina em Portugal de apuramento das coisas, mas temos que começar a ter, pois quando estamos na presença de 64 pessoas que perderam a vida nestas circunstâncias não houve nem eficácia, nem eficiência. É preciso ir à procura então de por que razão não houve nem eficácia, nem eficiência
Parece que também não houve eficácia nas comunicações. Como é que funciona o SIRESP?
O SIRESP é um sistema de comunicações com tecnologia de ponta que tem sistemas de replicação, ou seja, sistemas alternativos que quando falha um o outro entra em ação. A questão das falhas do SIRESP não é de relevância técnica, porque falhando o SIRESP é possível utilizar de imediato modelos de replicação para que não haja interrupção na comunicação. E se há interrupção é uma fração de segundos, não é relevante do ponto de vista técnico. A análise que está a ser feita ao SIRESP é política.
O SIRESP funciona através de antena de telemóvel ou satélite?
É um sistema que tem infraestrutura física, ou seja, funciona por antena. Não é exatamente como a antena de telemóvel, mas funciona com a instalação de uma antena física.
Mas faz sentido ficarmos reféns de uma estrutura física que pode ser destruída pelas chamas?
O SIRESP não é apenas para os incêndios florestais. Nós estamos a falar de um incêndio quando o sistema de comunicações de catástrofes tem a ver com todo o tipo de catástrofes.
Se houvesse um furacão, as antenas não sobreviveriam à força dos ventos…
Vamos lá ver. Quando falha o sistema de comunicação, os sistemas de replicações muitos funcionam por via satélite. O SIRESP, do ponto de vista operacional, não pode ser discutido como está a ser discutido. A mais-valia do SIRESP é a possibilidade de todos os agentes que estão numa ocorrência comunicarem entre si. Quando falha o SIRESP, cada agente não fica sem comunicações, os diferentes agentes ficam é com dificuldade em comunicar entre si. Esta questão está a ser abordada na perspetiva de confundir a discussão política com a operacional, o que é perverso. Está na hora de cada agente da Proteção Civil, sem exceção, olhar para dentro e perguntar: será que estamos a fazer certo o que deve ser feito?
Que lições se devem tirar desta tragédia?
Em primeiro lugar levar a sério e definitivamente a alteração do mundo rural em Portugal, porque o nosso território está absolutamente anarquizado e a verdade é que um dos grande aliados dos incêndios é a ausência de ocupação humana do espaço. É preciso passar das palavras aos atos, porque não há falta de diagnóstico há é falta de coragem política.
Há outro Portugal para além das cidades e dos turistas e que só é lembrado quando os incêndios ocorrem.
Em segundo lugar, o nosso sistema de Proteção Civil continua a ter vulnerabilidades que precisam de atenção e de decisões e em terceiro lugar falta uma estratégia de comunicação todos os dias.
Estamos a falar de comunicação interna ou externa?
Não me refiro apenas à estratégia de comunicação que leva a filtrar uma informação que chega sobre a queda de um canadair antes de a transformar num acontecimento público. Não se pode transformar um alerta, antes de se saber se é falso, num acontecimento nacional. A realidade é que os cidadãos não sabem o que fazer em situações de catástrofe. Um estudo feito há dois anos concluiu que 80% dos portugueses não sabe nem manusear um extintor nem o que fazer durante um sismo. Ficou demonstrado outra vez que um cidadão é o primeiro garante da sua sobrevivência se souber o que fazer. Na sociedade portuguesa não existe uma cultura de auto-proteção porque também não tem sido definida como prioridade no sistema de Proteção Civil a formação dos cidadãos. A quarta e última lição prende-se com o facto de estas questões de segurança não poderem ser tratadas durante o ano apenas como dimensões orçamentais, porque em Portugal o nosso Estado Islâmico chama-se incêndios florestais. Temos que olhar para os incêndios como um problema de segurança nacional.
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