"Em Portugal temos cerca de 100 mil infetados e grande maioria não sabe"
No rescaldo do Dia Mundial da Luta Contra as Hepatites Virais, que se assinalou a 28 de julho, Guilherme Macedo, diretor do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar de São João, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
© Global Imagens
País Guilherme Macedo
A maior parte das pessoas com hepatite C não sabe que tem esta doença viral. No dia 28 de julho, data em que se assinalou o Dia Mundial da Luta Contra as Hepatites Virais, o Notícias ao Minuto foi falar com Guilherme Macedo, diretor do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar de São João, para tentar perceber como se cumprirá o objetivo de tentar eliminar as hepatites virais B e C como ameaça à Saúde Pública até 2030.
Entre as contribuições para este meta está o programa piloto de tratamento da hepatite na prisão de Custóias, cujo sucesso motivou o despacho conjunto do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde, a 28 de julho. para que se tente reproduzir pelo país aquilo que este projeto fez.
Cinco em cada seis pessoas não sabem que têm uma hepatite viral. Como é que este número é tão grande?
Acontece simplesmente porque é uma doença que não dá sintomas. Mesmo na fase aguda, só uma pequeníssima percentagem é que tem sintomas agudos que permitem detetar rapidamente a doença, ou suspeitar pelo menos. Enquanto na fase crónica, que é a grande maioria das infeções, os sintomas são completamente inespecíficos e indefinidos. Portanto, uma das grandes dificuldades no combate à doença é justamente esse. Não há forma fácil e clínica para as pessoas suspeitarem do diagnóstico. O diagnóstico faz-se através de uma análise específica que não precisa de nenhuma suspeita prévia.
É um teste simples e barato da pesquisa do anticorpo para o vírus da hepatite C, que pode ser requisitado em qualquer centro de saúde, em qualquer instituição hospitalar, ou mesmo fora das instituições hospitalares, desde que depois a pessoa leve essa análise ao seu médico.
Em Portugal temos cerca de 100 mil pessoas infetadas e a grande maioria não o sabeRecomenda que as pessoas façam este teste com alguma regularidade?
A recomendação que existe é muito clara: todas as pessoas, alguma vez na vida, devem fazer essa determinação. Depois há a circunstância em que, por vários acontecimentos do seu passado individual, podem ter mais necessidade de procurar especificamente esse anticorpo.
Agora, alguma vez na vida, mesmo as pessoas que achem que não têm sintomas nenhuns, devem fazer essa pesquisa porque a presença do vírus é de facto comum entre nós – em Portugal temos cerca de 100 mil pessoas infetadas e a grande maioria não o sabe.
Os médicos de família estão sensibilizados para a necessidade de fazer este teste pelo menos uma vez na vida?
A sensibilização ainda não existe e esse é um caminho que nós temos vindo a percorrer ao longo de muito tempo, que é tentar, justamente, comunicar e estar em sintonia com os colegas de medicina geral e familiar para que se faça este pedido. Porque, apesar de tudo, o primeiro contacto que muitos dos nossos doentes têm com o sistema de saúde é com a medicina geral e familiar. Portanto, penso que tem um papel fundamental nesta determinação.
Existem vários preconceitos e estigmas associados a esta doença, mas a verdade é que [pedir o teste] é um ato de maior e melhor gestão clínicaAcredita que existe o preconceito de falar com o paciente quando o médico acha que ele deve fazer este tipo de teste?
Sim, esse preconceito existe. Existem vários preconceitos e estigmas associados a esta doença, mas a verdade é que [pedir o teste] é um ato de maior e melhor gestão clínica, porque estamos a falar de uma doença que agora é perfeitamente curável, tratável com alguma simplicidade, e portanto não há razão nenhuma para que se deixe que algum indivíduo permaneça durante anos e anos, não só potencialmente a ser infetável para os familiares, amigos e etc., como com um diferente percurso de vida. Estamos a falar da cura de uma doença que poderia ser fatal.
No dia 28 de julho, Dia Mundial da Luta contra as Hepatites, o destaque foi para o objetivo de “eliminar a hepatite viral (B e C) como ameaça à Saúde Pública até 2030”. Como é que tal se conseguirá cumprir?
Na B é menos difícil porque temos vacina e, portanto, num programa de vacinação em massa como está a ser feito na maior parte dos países do mundo – é um argumento. Claro que depois é preciso tratar as pessoas que já estão infetadas, o que também já está a ser feito.
A hepatite C é um pouco mais difícil porque não há vacina e, portanto, não falamos propriamente em erradicar o vírus, mas falamos em eliminar. Isto é, eliminar a infeção, o que significa identificar todas as pessoas infetadas e tratá-las adequadamente, com o objetivo final da cura.
E é possível evitar novos casos?
A prevenção de novos casos passa por haver um plano maciço de tratamento de todas as pessoas infetadas. Se assim for, não há razão para haver novos infetados. Esse é um dos grandes objetivos, para o qual Portugal também está a dar os seus primeiros passos.
Tratámos todas as pessoas identificadas como infetadas pelo vírus da hepatite C no Estabelecimento Prisional do PortoQuanto há comunidade de reclusos, onde há muitos casos de hepatites virais, o que se tem feito?
São números que são conhecidos [segundo dados de 2015, havia 2035 doentes infetados com hepatite C nas prisões] e que motivaram que em Portugal o Hospital de São João com o Estabelecimento Prisional do Porto fizessem um projeto totalmente pioneiro, que começou em janeiro deste ano e cujos sucesso e aplicabilidade foram o grande motor do despacho conjunto do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde que há dias surgiu para tentar reproduzir aquilo que este projeto piloto fez. Está a ter um enorme sucesso, nós tratámos neste momento todas as pessoas identificadas como infetadas pelo vírus da hepatite C no Estabelecimento Prisional do Porto. Alguns tratamentos ainda estão em curso, mas a taxa de sucesso é enorme, muito próxima dos 100%.
Até aqui os reclusos não tinham acesso aos tratamentos?
O acesso era muito limitado, porque há muitos condicionalismos logísticos para proporcionar esse tratamento. O que nós fizemos no nosso hospital e no nosso serviço em particular foi desmontar, de facto, essas dificuldades logísticas e ter uma proximidade muito grande. São os próprios médicos do serviço que se deslocam à instituição, temos também tudo articulado com a nossa farmácia e a farmácia do estabelecimento prisional. Há todo um processo de articulação logística que é relativamente complexo e que nós conseguimos garantir. Por isso é que o programa teve tanto sucesso. Pensamos que é possível reproduzir este programa em todo o país, agora vai obrigatoriamente levar a um grande esforço das instituições e em particular, e como sempre, dos profissionais de saúde.
Estamos a tirar da frente potenciais custos muito grandes de doenças hepáticas que vão evoluir para a cronicidadeEste tipo de programa acarreta grandes custos para o Sistema Nacional de Saúde?
Não, precisamente o contrário. Estamos a tirar da frente potenciais custos muito grandes de doenças hepáticas que vão evoluir para a cronicidade, que passarão a não existir porque vamos tratá-las antes de elas se tornarem crónicas. Outro dos grandes objetivos, colateral, bem sei, é também económico. O impacto económico em termos de gestão de saúde de um projeto destes é enorme na nossa opinião.
Este tipo de projeto já é algo que se faz noutros países?
Não é um projeto muito comum em termos universais, precisamente pela complexidade logística. Agora há outros países que têm outro tipo de programas e que têm outros profissionais envolvidos no tratamento dos reclusos e que também têm sucesso. São exemplos que não são frequentes, mas que se devem reproduzir. Neste momento Portugal, a partir do exemplo que criámos no Hospital de São João, já é um exemplo a reproduzir.
E quanto aos toxicodependentes, qual tem sido a intervenção nestes casos?
A nossa intervenção também tem sido ampla, tem sido o mais inclusiva possível. Temos trabalhado em conjunto com o SICAD, de forma a poder tratar todas as pessoas que nos são referenciadas e que estão em programas de desintoxicação. Também é uma frente de tratamento que temos há bastante tempo.
Neste momento Portugal, a partir do exemplo que criámos no Hospital de São João, já é um exemplo a reproduzirEsta intervenção também é feita na rua, com associações que estão a tentar tirar os toxicodependentes da rua, por exemplo?
Sim, isso é um projeto muito relevante e penso que era possível articular, mais uma vez com o esforço dos profissionais e das pessoas envolvidas.
Era possível articular uma forma mais fácil de acesso desse tipo de população à medicação. Porque a medicação pode ter um bom preço, pode haver muitos profissionais interessados, mas a verdade é que essa é uma população tão exclusiva e tão difícil de participar na vida hospitalar que é exatamente o contrário que temos de propor: que o hospital se desloque a essas populações, é isso que estamos a fazer
E em relação às outras hepatites (A, D, E e G)?
Têm outros contornos epidemiológicos e têm outras estratégias de ação. Os tratamentos não têm obviamente o mesmo impacto que têm estes e portanto não tem sido propriamente uma área de grande dedicação das estruturas sanitárias. É muito importante haver o controlo das hepatites víricas, como é óbvio, até porque de quando em vez há surtos, mas a verdade é que o grande ónus, digamos assim, é sobre a hepatite C.
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