"Estamos a morrer de doenças que se relacionam com a alimentação"
Detentor daquilo a que a ciência chama de alimentação de excelência, Portugal parece estar de costas voltadas para a dieta mediterrânica. Qual o impacto disso? Mais peso e menos saúde. Falamos com Alexandra Bento, Bastonária da Ordem dos Nutricionistas, sobre o verdadeiro impacto da alimentação na saúde.
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País Alexandra Bento
Jovens com peso a mais, idosos com nutrientes a menos. Portugal assume-se como um país bipolar a nível nutricional e não faltam culpados para isso.
Da falta de formação, à má informação, passando pela escassez de acesso até ao comodismo a uma cultura sedentária que se alastra de dia para dia, são muitos os fatores que interferem com a saúde dos portugueses. E em todos eles há um denominador comum: a alimentação.
Em conversa com o Notícias ao Minuto, Alexandra Bento, Bastonária da Ordem dos Nutricionistas, não hesita na hora de dizer que "nunca se comeu tão mal como se come hoje" e que a prova é bem mais dramática do que podemos pensar: "Estamos a morrer de doenças que se relacionam com a alimentação".
O problema não é de agora, destaca, e por isso mesmo diz que o imposto sobre o açúcar "veio tarde, porque o excesso de peso e a obesidade não é um assunto de ontem e já há algumas décadas que nós sabemos que temos este problema". Quanto a taxar o sal, o outro inimigo da saúde, "se me pergunta se eu implementaria, não teria dúvidas em dizer que sim, porque somos um país que come o dobro do sal que tem de comer", frisa.
Para a porta-voz dos nutricionistas portugueses, está mais do que na hora de olhar para alimentação com outros olhos, dando-lhe a devida importância para a saúde.
Assim como a saúde tem de estar em todas as políticas, a alimentação, que mais impacto tem na saúde, também tem de estar em todas as políticas
Somos um país com uma dieta alimentar bastante cobiçada, não só pelo sabor, mas também pelos benefícios que traz para a saúde, mas mesmo assim estamos entre os mais obesos. O que pode estar a correr mal?
Temos um passado de uma dieta alimentar que é considerada muito saudável, como sabemos. A dieta mediterrânica está mais do que estudada, em termos de evidências científicas dos benefícios para a saúde, agora, a questão é se as pessoas comem dessa forma. E essa forma simples de comer tem por base os produtos de origem vegetal, ou seja, os hortícolas, as frutas, os cereais e bem sabemos que, nos dias de hoje, acontece muito um consumo excessivo de outros alimentos que não têm uma boa relação com a saúde, sobrecarregados de açúcar, sobrecarregados de gordura e também com imenso sal.
Ora, desta forma, só podemos vir a ter peso a mais, doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão arterial... e é disso que estamos a morrer atualmente. Podemos dizer que estamos a morrer de doenças que se relacionam com a alimentação porque nos afastamos cada vez mais daquilo que é um padrão alimentar saudável.
Por que razão estão os portugueses a abandonar a dieta mediterrânica?
Por motivos vários, não consigo encontrar um só. Mas acaba por ser o envolvimento nesta sociedade global, a que cada vez mais nos aculturamos. Vivemos de uma forma apressada e não pensamos naquilo que devia ser a organização do nosso dia alimentar.
A questão é que nunca tanto se soube da relação entre a alimentação e a saúde e nunca as pessoas tiveram tantos conhecimentos em termos de alimentação e em termos de nutrição, conhecimentos que, no fundo, são mais teóricos, porque na prática nunca se comeu tão mal como se come hoje. O que é preciso é que todos nós tenhamos consciência disto e todos nós façamos um esforço para alterar o paradigma.
É preciso que haja uma festa alimentar, mas festa alimentar não é sinónimo de exageroSim, até porque há cadeias de fast-food que vendem hambúrgueres a um euro, o que faz com que seja quase impossível resistir...
As questões são mesmo essas e por isso é que é necessário um envolvimento individual. Eu própria tenho de saber como me alimentar e ter literacia suficiente, mas também tenho de ter vontade de organizar a minha vida alimentar, porque de nada me vale eu saber o que é que me faz bem e o que é que me faz mal se não o ponho em prática. E no fim disto tudo é também preciso haver a lógica do prazer, porque comer bem e saudável também quer dizer comer com prazer. O comer saudável é comer de uma forma equilibrada, é comer com prazer, que me saiba imensamente bem, comer com companhia, que pode ser dos familiares ou dos amigos, é preciso que haja uma festa alimentar, mas festa alimentar não é sinónimo de exagero.
E a nível geral, o que é preciso fazer?
Além desta necessidade individual, é preciso que haja também uma vontade coletiva e essa vontade coletiva inicia-se pelo Governo, mas depois inicia-se também por todas as partes que devem estar envolvidas, desde a indústria alimentar, que tem de providenciar produtos mais saudáveis. Atualmente fala-se disto, mas há 10 anos, ou 15 ou 20 anos, a indústria alimentar visava o lucro sem pensar na saúde do consumidor, hoje em dia sabe que obviamente tem de visar o lucro, mas pensando na saúde do consumidor. A restauração a mesma coisa.
Há uns anos era impensável pensarmos que local de trabalho tinha de ter a obrigação de pensar na saúde dos seus trabalhadores e a saúde dos seus trabalhadores também passa pela alimentação. Quando um local de trabalho tem um refeitório em que a oferta alimentar não é saudável, então não se está a cumprir com aquilo que devem ser a normas de viver em sociedade.
E por aí adiante, as escolas, as próprias cidades, que têm de estar organizadas em termos de saúde. Já pensou que as cidades já estão na era - e convém que seja para sempre - da mobilidade, da deslocação dentro da cidade por transportes sem motor, o andar a pé, andar de bicicleta, e que isto tem de ser pensado no desenho da cidade. Quanto às questões ambientais, não há cidade alguma que pense 'bem, eu não tenho nada a ver com as questões ambientais, não quero saber da recolha do lixo, das zonas urbanizadas'... isto é impensável.
Portanto, os municípios reclamam, só que há uma ou outra dimensão para a cidade, que é o comer saudável e com tradição cultural e devo-lhe dizer, já que estamos em período eleitoral para as autárquicas, que é importante que os autarcas pensem nisso. Cidades como Nova Iorque e Londres têm sido das que mais pensam na responsabilidade da autarquia ou município para a saúde alimentar da sua população e são os próprios habitantes que reclamam que o programa eleitoral tenha medidas promotoras de saúde através da alimentação.
A cidade pode fazer imensas coisas em termos da oferta da alimentação saudável, desde o local em que devem estar os supermercados, desde os locais que podem ou não podem vender à volta das escolas, desde oferta alimentar para quem é mais carenciado com vales para a aquisição de alimentos saudáveis, desde a carta dos restaurantes, que deve cumprir o requisito da tradição local mas com a tónica da saúde e a tónica da saúde é tão simples como a medição do sal.
Os nossos idosos carregam um rosário de doenças crónicas o que torna muitas vezes difícil que tenham acesso, e aqui a palavra é mesmo acesso, a uma alimentação equilibrada
O recente estudo do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável 2017 diz que 15% dos idosos estão em risco de desnutrição. Porque é que temos uma balança tão discrepante, com peso a mais de um lado e peso a menos do outro?
Existe, sim, uma discrepância e é preocupante, porque nós sabemos que muitos dos nossos idosos ou têm problemas económicos, ou têm problemas de isolamento ou têm problemas de saúde que torna mais difícil o controlo do seu estado nutricional. Os nossos idosos carregam um rosário de doenças crónicas, pois têm a diabetes, doenças cardiovasculares, problemas osteoarticulares, problemas de dentição e tudo isto torna muitas vezes difícil que tenham acesso, e aqui a palavra é mesmo acesso, a uma alimentação equilibrada. Esse acesso depende disto tudo, acesso económico, acesso a uma literacia suficiente para saber como hei-de organizar o meu dia alimentar, acesso físico aos alimentos. É
Muitos dos nossos idosos, e isto é particularmente relevante, estão institucionalizados e esta desnutrição é mais acentuada quando eles estão institucionalizados, ou seja, quando estão em lares ou em centros de dia, o que nos permite pensar: Então se eles estão numa instituição que tem a obrigatoriedade de lhe providenciar tudo aquilo que necessitam, porque é que os idosos institucionalizados têm um estado nutricional pior? Pode ser por duas dimensões, uma porque os idosos institucionalizados estão em pior estado de saúde e, segundo, porque estas instituições não têm a capacidade de lidar com as questões nutricionais de idosos. E esta segunda digo-lhe claramente que é verdadeira.
E essa segunda deve-se a quê? Falta de informação, falta de formação?
Deve-se a falta de formação e formação e desde logo por não terem os quadros técnicos adequados. Não vejo uma instituição destas sem ter o auxílio de um nutricionista, mas digo-lhe que estas instituições não ficam muito satisfeitas se falarmos nesta questão e digo-lhe porque sei do que estou a falar. Imaginam que ter um nutricionista numa instituição particular de solidariedade cas e as questsocial - a maior parte dos lares que temos no nosso país - é um custo e não será um custo, será uma poupança, porque o nutricionista saberá com correção acautelar todas as questões alimentares e ao fazê-lo também saberá fazer uma boa gestão económica daquilo que é o providenciar a alimentação aos idosos.
Julgo que está para breve uma resolução da Assembleia da República neste sentido, pelo menos há vontade. A Ordem dos Nutricionistas tem vindo a dar dimensão a esta questão, porque os dados estão aí e não se podem esconder. Há, de facto, estudos que nos demonstram que os idosos gozam de mau estado nutricional e se eles têm mau estado nutricional, muito mais quando estão institucionalizados, então é preciso trabalhar estas questões.
Há pouco falava da literacia para conseguirmos organizar a vida alimentar. Onde podemos encontrar esse conhecimento?
A escola é a chave, o que não quer dizer que outros locais não devam ser trabalhados. Mas o passado já nos demonstrou essa questão com a educação ambiental, em que, de facto, foram as crianças que levaram o conhecimento e as questões de alerta ambientais para os seus pais e avós. É uma maneira mais eficiente de trabalharmos o nosso presente e futuro, mas, claro está, a nossa literacia não é só termos mais conhecimento. A literacia alimentar é trabalharmos o nosso conhecimento, mas também as nossas atitudes e comportamentos, porque se vou só imprimir o aumento de conhecimento, posso ter uma população que sabe imenso mas que nada faz. Tenho também de trabalhar as questões motivacionais.
E no caso dos jovens, porque é que os nossos miúdos são dos mais obesos da Europa?
Porque estas questões não foram convenientemente trabalhadas no passado e continuam a ser trabalhadas de uma forma incipiente no presente. É preciso imprimir mais vontade e mais força para trabalhar estas questões, porque a situação é urgente. Repare, a obesidade é uma doença crónica que ainda por cima não é uma doença só por si isolada, é um risco para outras doenças que são pesadíssimas em termos económicos, sociais e pessoais.
O aumento da prevalência da diabetes no nosso país deve-se, em muito, ao aumento do peso da nossa população. Isto quase parece um dominó, em que a primeira peça cai e arrasta a outras todas. Portanto, há que trabalhar o determinante de saúde que mexe com isto tudo, que é a alimentação. Se há que trabalhar, há que em todas as políticas trabalhar de uma forma forte a alimentação. Assim como a saúde tem de estar em todas as políticas, a alimentação, que mais impacto tem na saúde, também tem de estar em todas as políticas, mas não pode ser só o Ministério da Saúde a tratar as questões da alimentação, por isso é que esta estratégia inter-ministerial pela alimentação saudável tem tanta importância. É o mesmo que o nosso Governo dizer que a questão alimentar não pode ficar só na alçada do Governo, tem de estar também na alçada dos outros parceiros que se relacionam, como a indústria alimentar e da restauração. Mas mesmo dentro do Governo, têm outros ministérios de estar envolvidos, e pensamos logo no Ministério da Educação, da Agricultura, mas também no da Solidariedade Social e porque não no da Economia?
Não quer dizer que os bolos não têm lugar na nossa vida, claro que têm, assim como rissol, o bolinho de bacalhau, só não pode ser diárioEm que medida a falta de consciência sobre o impacto da comida na saúde interfere com estas taxas elevadas de obesidade e excesso de peso em Portugal?
Há aqui uma questão importante que é: as escolhas saudáveis deverão ser mais fáceis. E atrás do fácil tem de estar tudo, tem de estar mais disponível, não pode ser mais caro, tem de ser mais saboroso... pelo menos estes três vetores são muito importantes.
Trocando isto por miúdos seria assim: paro a meio da manhã, vou a um café fazer a merenda e o que é que eu tenho de oferta alimentar que me salte aos olhos? Bolos, rissóis, croquetes, refrigerantes, vá lá que até vou tendo uma meia-de-leite.
A questão do ser fácil tem de estar à cabeça, tenho de entrar num sítio e a montra ser muito apelativa para estas coisas mais saudáveis e saborosas. Aqui é evidente que estes espaços têm de perceber esta dimensão e quando me dizem 'temos de providenciar prazer e ter lucro', mas nada contra, é óbvio, trata-se de um negócio, é evidente que tem de ter lucro, que tem de proporcionar prazer à pessoa e rapidez, mas isto não é antagónico, não é antagónico eu chegar a um café e pedir um iogurte com fruta, tem de passar a ser uma coisa simples.
Tem de haver um esforço coletivo, mas isso não quer dizer que os bolos não têm lugar na nossa vida, claro que têm, assim como rissol, o bolinho de bacalhau, só não pode ser diário, porque estão carregados ou de gordura e sal ou de açúcar e isso não é saúde.
E por falar em açúcar, o imposto veio tarde?
Posso dizer que veio tarde porque o excesso de peso e a obesidade não é um assunto de ontem e já há algumas décadas que nós sabemos que temos este problema. Na década de 70, alguns pensadores da área da saúde alertavam para estas situações e lembro aqui o falecido Emílio Peres e o Gonçalves Ferreira, que falavam nestas questões e adivinhavam as primeiras estratégias. Este Programa Nacional de Promoção para a Alimentação Saudável tem coisas idênticas e similares àquelas que estiveram a ser pensadas na década de 70, é interessantíssimo ler os documentos dessa altura e pensar 'como é que é possível não se ter dado seguimento a estas coisas?'.
Poderíamos ter prevenido muita coisa...
Não tenha dúvidas. Aliás, a Ordem dos Nutricionistas tem vindo a reclamar junto do Governo e da Assembleia da República a criação de um conselho nacional na área da alimentação e da nutrição. Aqui há uns dias saiu uma resolução da Assembleia da República em que os senhores deputados recomendam isso mesmo ao Governo, que queriam um tal conselho nacional, mas este conselho já existiu na década de 80. Portanto, quando a Ordem dos Nutricionistas reclamava junto do Governo que é necessário que haja um organismo que, de uma forma forte e transversal coordene tudo o que são diretrizes de alimentação e nutrição e faça a respetiva vigilância do estado de saúde através da alimentação, não foi uma ideia milagrosa que teve, porque isto já existiu, porém foi descontinuado.
Em abono da verdade, este Governo tem querido fazer. Temos, felizmente, um Secretário de Estado da Saúde, o professor Fernando Araújo, que é muito conhecedor e muito sensível para esta causa, porque ele sabe que, se nada fizermos, o Serviço Nacional de Saúde vai ser incomportável no futuro. Mas é preciso fazer mais, muito mais.
E aproveito para dizer que é com muito descontentamento que eu vejo uma promessa do Ministério da Saúde para abrir 55 vagas para nutricionistas nos cuidados de saúde primários, nos centros de saúde, e que ainda só está em promessa. Puxo a brasa à minha sardinha porque me interessa que os nutricionistas trabalhem nos locais para os quais foram formados, mas puxo a brasa à minha sardinha coletiva, porque ter nutricionistas nos centros de saúde é importantíssimo para o estado de saúde da população.
Somos um país que come o dobro do sal que tem de comerAlém deste imposto centrado no açúcar, um imposto para o sal ou para os alimentos processados não poderia fazer falta?
É uma medida que tem de ser equacionada, mas se tem de ser implementada já é outra questão. Se me pergunta se eu implementaria, eu não teria dúvidas em dizer que sim, e não tenho dúvidas nenhumas de dizer que sim porque somos um país que come o dobro do sal que tem de comer.
A tese de doutoramento de uma colega, a Carla Gonçalves, foi precisamente sobre o sal e consumo de sal em adolescentes portugueses e culminou na produção de um equipamento doseador rápido de sal. É fantástico. Temos possibilidade de ser o primeiro país do mundo a produzir um aparelho simples que mede a quantidade de sal e que indica quais os alimentos que mais contribuem para o consumo de sal. Por exemplo, os enchidos têm muito sal, mas será que importa taxá-los? Porque é um produto local, que é consumido mais esporadicamente.
Ou seja, sim, é importante equacionar esta medida, acho que é importante levá-la a efeito, mas acho que para desenhar uma medida destas é preciso um trabalho intenso para ser uma boa medida, senão é uma medida económica e não uma medida de saúde. E não é isso que se pretende.
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