"Há gente que nos apoia e ignora. Temos de ter os pés assentes no chão"
Sempre com muito boa disposição, Luísa Ortigoso, a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto, deu-se a conhecer melhor numa conversa em que fala da sua carreira no mundo da representação e de tudo o que a levou a seguir este caminho.
© Joana Correia
Fama Luísa Ortigoso
Apesar de não ser uma pessoa mediática e de "não correr atrás das entrevistas", Luísa Ortigoso pertence ao leque de atores acarinhados pelo público português pelo trabalho que tem desenvolvido durante a sua já longa carreira.
O amor pela arte de representar nasceu aos 12 anos e agora, aos 59, não trocaria a sua profissão por nada.
Tanto nos palcos como em televisão, Luísa Ortigoso já interpretou inúmeras personagens, tendo sido - "sem dúvida" - a Olga da série 'Bem-Vindos a Beirais' a que despertou mais a atenção do público.
Com um enorme sorriso no rosto e a boa disposição que tanto a caracteriza, Luísa Ortigoso esteve na redação do Notícias ao Minuto para falar abertamente destes anos vividos no mundo das artes, partilhando ainda alguns dos seus pontos de vista sobre o mundo da representação.
Como foi a infância de Luísa Ortigoso?
Tive a infância mais feliz que se pode ter. Acho que é essa felicidade da infância que me dá a força para ultrapassar algumas adversidades que nesta profissão toda a gente tem. Fui uma criança muito amada pelos pais, tios, avós, primos, por toda a gente. Foi uma alegria aquela infância. Depois um dia, na adolescência, decidi que queria ser atriz. Não sei o que é que isso diz de mim, mas foi assim. Tinha eu 12 anos.
Como é que entrou no mundo da representação?
Uma amiga disse-me que na Guilherme Cossoul, onde começaram tantos e tão bons atores deste país, estavam a fazer um curso para retomar o teatro na sociedade e eu fui. Foi uma alegria porque achei que era mesmo aquilo que eu queria fazer.
Nunca senti que me detestassem, o que não é mauDesde sempre teve propostas ou passou por algumas dificuldades?
Há sempre gente que nos apoia, há sempre gente que nos ignora. Quando começamos numa área como esta ou em qualquer área artística acho que isso se passa. Temos de ter também os pés um bocadinho assentes no chão. Temos muita tendência em voar, a criatividade fala sempre mais alto, mas há um lado que tem de ficar com os pés no chão porque há pessoas que nos adoram e há pessoas para as quais somos indiferentes. Nunca senti que me detestassem, o que não é mau.
Mas alguma vez pensou em desistir da representação?
Não. A única vez que, vagamente, isso me passou pela cabeça, fiquei tão infeliz com a ideia que a pus de parte rapidamente.
Bebo muito dos outros. Mas apesar de ser uma observadora quase militante, o trabalho de construção da personagem é um bocado solitárioPor norma, tem algum ritual para encarnar uma personagem? Como é que é o seu processo de criação?
É uma coisa muito solitária, se bem que eu bebo muito dos outros, sou muito sanguessuga no aspeto de ir na rua e estar sempre a olhar para as pessoas. Mas apesar de ser uma observadora quase militante, depois esse trabalho de construção é um bocado solitário. Tenho de sentir aquela personagem cá dentro e, sobretudo, tenho de sentir que as outras pessoas estão a acreditar nela. O que tento sempre é fazer pessoas. Sobretudo em televisão, o que nós construímos são pessoas com quem os telespectadores se identifiquem ou não.
Quando fiz a Olga, por exemplo, houve uma altura em que pensei que se calhar estava a exagerar. Sei que construí aquela personagem em cima do fio da navalha, mas ao mesmo tempo ela tinha de ser aquele excesso porque se não, não tinha tanto sabor. Mas estava um bocadinho com medo. Depois as pessoas chegavam ao pé de mim e diziam: ‘Conheço uma Olga’. Parece que em todas as terras havia uma Olga. Portanto, preciso de sentir que elas são credíveis e vou buscar coisinhas pequeninas. São mais os pequenos detalhes que me interessam nas personagens. No teatro são menos percetíveis porque há uma distância entre o palco e a plateia. É talvez a única coisa em que eu acho que a imagem, seja televisão ou cinema, nos permite ir mais ao detalhe.
O seu papel mais recente é na série 'O Sábio'. Sentiu alguma dificuldade ao dar vida a Felícia Mendes?
Das últimas personagens que me ofereceram, acho que esta talvez tenha sido aquela que menos me tenha desafiado em termos de construção. Talvez o cuidado de deixar que aquela mulher ficasse lá no seu canto discreto, de personagem discreta que é. Mas, em termos de construção, não foi a mais desafiante que fiz até hoje, apesar de ter gostado muito de a fazer. Gostava muito do meu núcleo, deu-me prazer fazer, trabalhar com aquelas pessoas.
Inspirou-se em alguém para criar esta personagem?
Baseio-me sempre em alguém, acho que nós nos baseamos sempre em alguém. As personagens têm sempre um bocadinho de nós, obviamente, o corpo é nosso, a voz é nossa, o coração é nosso e o entendimento também. Mas há sempre um bocadinho de alguém.
Já interpretou inúmeros papéis televisivos, qual acha que foi o mais marcante para o público?
A Olga dos Beirais, sem dúvida. A primeira talvez tenha sido a Rosa do ‘Anjo Selvagem’, mas foi um boom da época também. Foi a primeira vez que uma novela teve um impacto tão grande junto do público. A nível de popularidade e da abordagem das pessoas na rua, talvez tenha sido maior nessa altura, mas porque foi uma novidade. Não conseguia ir sequer ao supermercado, mesmo. Portanto, imaginem os protagonistas... Mas a Olga foi muito acarinhada pelo público.
Eu não existo sem o público, eu ou qualquer atorComo é a sua relação com o público?
A melhor possível. Eu não existo sem o público, eu ou qualquer ator. As pessoas são sempre muito carinhosas comigo.
Qual foi a abordagem na rua que mais a marcou?
Há pessoas que me comovem, sobretudo quando me dizem: ‘Quando ouço a sua voz vou a correr ver’, ‘gosto tanto de si, é a minha melhor companhia...’. São coisas que nos tocam o coração, vão aquecendo, porque sabemos que não somos indiferentes na vida daquelas pessoas. Mas a mais marcante de todas nem foi em relação a personagem de televisão, foi em relação a uma personagem do teatro. Estava no teatro nacional a fazer a ‘Frida e a Casa Azul’, que era um monologo sobre a Frida Khalo do José Jorge Letria, com a encenação da Luzia Maria Martins, e aquilo foi tudo muito marcante porque foi a última coisa que a Luzia encenou e o único monólogo que fiz até hoje, acho que todos os atores deviam fazer um para ver como é que é. Foi um trabalho incrível, adorei fazer aquilo, e houve um dia que um grupo de invisuais foi ver o espetáculo e ficou à minha espera na porta dos artistas. Quando eu cheguei cá fora, houve uma senhora que me agarrou nas mãos e disse: ‘Muito obrigada porque eu hoje vi’. Não consegui dizer nada a seguir porque só chorava. Foi das coisas mais impressionantes. Nunca mais me esqueci disso e já lá vão uns anos.
De todas as personagens que interpretou até hoje, qual é a que se identifica mais com a Luísa Ortigoso?
Tenho a sorte de fazer personagens que se afastam muito de mim. Não tenho nada a ver com a Olga, nada. Credo, aquela mulher cansava-me imenso. Mas também não tenho a ver com a Felícia do ‘Sábio’, nem com a Rosa [do ‘Anjo Selvagem’]. As que me deram mais gozo até agora foram aquelas que mais se afastaram de mim e eu acho que todas elas se afastaram imenso de mim. Ainda não fiz uma personagem que dissesse assim: ‘É muito parecida comigo’. Que sorte que eu tenho tido.
Gosto muito da vida e talvez isso seja aquilo que mais me defineEntão e como é que descreve a Luísa Ortigoso longe dos holofotes?
Sou uma pessoa normal. Gosto muito de viver, de fazer fotografia, de passear, adoro estar com os meus amigos, adoro comer, música, cinema, gosto de ir às compras no mercado, aquela coisa de ir comprar os legumes frescos… Depois sou uma avó babada. Mas sobretudo é isso, gosto muito da vida e talvez isso seja aquilo que mais me define.
O que quero são personagens que me desafiem e tenho sempre saudades daquelas que ainda não me desafiaramHá algum papel que gostasse de representar e que ainda não tenha tido a oportunidade?
Aqueles que ainda não fiz e todos os que me desafiarem. Já há muito tempo que deixei de pensar nos papéis que adorava fazer. Ao princípio havia muito essa coisa de querer fazer as grandes personagens, dos grandes clássicos, mas na verdade o que eu gosto é de construir personagens sejam elas dos clássicos ou dos contemporâneos. O que quero são personagens que me desafiem e tenho sempre saudades daquelas que ainda não me desafiaram, mas hão-de desafiar, espero eu.
Hoje em dia, os artistas veem-se quase na obrigação de aderir às redes sociais para conquistar o público. Como é que vive esta nova realidade?
Como isso exatamente, realidade. Se é uma coisa que acho extraordinária ou maravilhosa, não sei, mas também não acho que seja um papão. Tudo depende da forma como as pessoas utilizam as coisas. As redes sociais podem ter uma importância fundamental em muita coisa, tanto a nível artístico quanto social. Agora, se forem mal utilizadas é como tudo. Há que haver equilíbrio. Eu tenho página do Facebook e tenho Instagram porque sei que as pessoas me procuram ali. Se calhar não sou a maior expert do assunto, mas tenho. Eu vivo em sociedade, integrada, portanto, não fujo das redes sociais. Aliás, não costumo fugir das coisas, só daquelas que não gosto mesmo e que fazem mal às pessoas. Quando comecei não havia [redes sociais], mas também não havia computadores nem telemóveis. E agora já não imaginamos que se possa ter vivido sem isso.
*A segunda parte desta entrevista pode ser lida aqui.
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