"O coração é um órgão relativamente estúpido, mecânico, mas que ama"
José Fragata, diretor do serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, não acredita na síndrome do coração partido mas acredita na sua ligação com o sentir. No Dia Mundial do Coração, tece, em entrevista ao Vozes ao Minuto, algumas considerações sobre o órgão, sobre o futuro da Cardiologia e até sobre o legado que espera deixar.
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País José Fragata
José Fragata conta com mais de três décadas como cirurgião cardiotorácico, um balanço de cerca de seis mil operações em adultos e quatro mil em crianças. Um balanço que lhe confere a experiência necessária para poder dizer que a Medicina envolve uma dimensão maior do que a técnica.
Atualmente diretor do serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, e vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa, não dispõe do tempo que desejava para exercer mas sabe que faz mais pela Saúde através dos seus internos do que com mais uma operação que faça.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, por ocasião do Dia Mundial do Coração, fala sobre a "verdadeira revolução" que irá acontecer com a possibilidade dos enxertos cardíacos de animais transgénicos. "Uma realidade que espero ter ocasião de ver ainda no meu tempo de vida", confessa, sublinhando que será uma nova forma de olhar para a insuficiência cardíaca.
José Fragata explica ainda o papel da má comunicação na taxa de erros médicos nos hospitais portugueses e como podem ser "erros cometidos por pessoas boas a trabalhar em sistemas maus, em sistemas perigosos". O Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a saúde pública e privada foram outros dos temas abordados.
Os anos de experiência, conta, não ajudam a lidar com a morte de doentes. "Só piora", lamenta. Mas há que olhar para o outro lado da balança, "para os que estão em casa com as famílias". No final do dia, quando uma criança operada à nascença pede à mãe para o visitar, por exemplo, o sentimento é único: "Sinto-me o melhor do mundo".
Os números da transplantação cardíaca em Portugal estão próximos dos números de que o país precisa
Como é que anda o coração dos portugueses?
Acho que o coração dos portugueses anda bem. Isto é, acho que têm sido feitos grandes progressos na última década, provavelmente, em termos de saúde cardiovascular e penso que não temos de facto nenhuma posição que nos envergonhe no universo europeu. É óbvio que o progresso foi, sobretudo, feito no tratamento da doença cardíaca isquémica, da doença coronária, e penso que temos ainda bastante para avançar na doença cerebrovascular, os chamados AVC’s.
Em termos técnicos?
Em termos, sobretudo, de organização. Vai passar-se em relação à doença cerebrovascular o mesmo que se passou na doença coronária. Quando um vaso entope, o território a jusante tende a morrer, é o que se chama um enfarte. Esse enfarte pode ser no coração, mas se for no cérebro esse enfarte é cerebral e é um acidente vascular cerebral (AVC). O que aconteceu na cardiologia é que a cardiologia de intervenção começou a atuar nos enfartes, no processo de via verde coronária, de modo a que antes de o músculo cardíaco morrer, o vaso ser desentupido. Isso é a cardiologia de intervenção, o que permitiu passar a salvar músculo cardíaco. Há toda uma logística que passa no INEM, que passa na cardiologia e nos serviços.
Em relação à doença cerebrovascular a tendência é a mesma e conseguem-se limitar as dimensões dos AVC’s se a intervenção for numa janela de tempo curta. Acho que a logística de via verde de AVC não está tão difundida como a logística de via verde coronária, portanto, é nesse aspeto, de organização e de meios, que se calhar se tem de investir.
Fez história, em março passado, por ter colocado um coração a funcionar de forma artificial pela primeira vez em Portugal. Tem acompanhado o paciente?
Estive com ele noutro dia, o senhor está bem. Agora vamos continuar, já temos mais doentes em lista, e penso que até ao fim do ano vamos fazer mais um ou dois. [É um procedimento que] tem indicações específicas, o primeiro método de opção é a transplantação cardíaca mas há doentes que não têm possibilidade para serem transplantados. E estes dispositivos são dispositivos de assistência ao coração – o coração do doente mantém-se –, mas são bombas que se acoplam ao coração de modo a tirar-lhe parte do trabalho que ele realiza.
Na altura, já tinha dito que não é uma solução que responda à maior parte dos problemas…
Não, não vamos pensar que quem está mal do coração vai pôr um coração artificial. Agora, podemos pensar que para doentes que não podem ser transplantados, como é o próximo caso que vamos fazer, esta é a única solução que temos para lhe dar. E nessa perspetiva, nós temos a responsabilidade de dar aos doentes soluções. A Medicina só faz sentido se der soluções para as pessoas, soluções que não só lhes devolvam a sua vida mas qualidade de vida.
Desde esse doente já foi feita mais alguma operação do género?
Não. Isto é um investimento considerável e aplica-se a candidatos próprios. O país é pequeno. Agora temos outro candidato e vamos encetar o processo nesse sentido, no prazo de um mês. Sempre que começa uma prática – passa-se com os transplantes e passa-se com tudo – a própria oferta estimula a procura e na Medicina isso também é verdade. Mas nunca em Portugal o número de doentes destes será muito grande, por razões várias. Primeiro, porque a transplantação cardíaca funciona e os números da transplantação cardíaca em Portugal estão próximos dos números de que o país precisa, que são à volta de 50/60 transplantes por ano. Por outro lado, porque é dispendioso e obviamente que nós não podemos dar a um tudo e não dar aos outros. E há aqui uma gestão de economia de saúde e de opções. Estes casos são doentes muito selecionados e que de facto tenham algum benefício disso para que o país possa suportar essa despesa.
Órgãos de porcos transgénicos vão revolucionar todos os programas de transplantação
Há uns tempos surgiram alguns estudos, feitos na China, sobre a questão da clonagem de porcos para utilizar depois os órgãos em pacientes que precisem, por exemplo, de um coração…
Sim, não só na China. Em meados dos anos 90, penso eu, depois da clonagem da ovelha Dolly, surgiu um grande entusiasmo na preparação de animais, neste caso os porcos transgénicos, isto é, preparados geneticamente para que os seus órgãos fossem tolerados imunologicamente pelo hospedeiro humano. Ou seja, permitir que, se uma pessoa precisa de um transplante, sacrifica-se um porco desses transgénicos e usa-se o órgão. Isso começou a ser iniciado em Inglaterra e teve alguns insucessos.
No outro dia estive em Barcelona com um colega meu americano, uma pessoa muito importante, um nome muito sonante nos Estados Unidos, que me segredou que o trabalho de laboratórios que ele conhece, nos EUA, à volta dos transgénicos está muito avançado outra vez, que vão começar com o rim mas que o coração será a seguir. Portanto, penso que, num futuro que não estará distante, irá haver material… Porcos manipulados geneticamente para serem tolerados uma vez implantados num corpo hospedeiro.
Como pode imaginar isso, se acontecer e se funcionar, e acho que estamos num bom caminho de evolução, vai revolucionar todos os programas de transplantação porque um dos limites à transplantação é a falta de dadores, como em qualquer órgão. E certamente vai dar uma grande pancada também nos corações artificiais. Agora resta saber o que é que vai ser mais caro, se é um coração de um porco transgénico ou o coração artificial, porque a manipulação [dos porcos transgénicos] exige um esforço grande, naturalmente também económico, para preparar animais destes com fiabilidade.
Num futuro próximo, poder-se-ão eliminar as filas de espera para transplantar um coração?
Se o programa dos heteroenxertos, dos enxertos cardíacos de animais transgénicos, for uma realidade, como me dizem que está a ser, - não é a minha aérea – o que lhe posso dizer é que isto vai ser, verdadeiramente, uma revolução porque entramos na chamada substituição de peças. Quando transplantamos já substituímos peças, mas ainda com uma fatura grande de imunosupressão e tudo isso... Se se conseguir produzir um coração que tenha uma parecença imunológica muito grande com uma determinada pessoa, obviamente o sistema imunitário dessa pessoa vai tolerar esse coração melhor. Isso é uma realidade que espero ter ocasião de ver ainda no meu tempo de vida.
É entusiasmante?
É porque isso permitirá olhar para insuficiência cardíaca de uma forma diferente. A insuficiência cardíaca é muito prevalente porque tem a ver com o facto de, agora, os enfartes do miocárdio passarem a sobreviver mais e nós estamos mais velhos, todos, a população tem envelhecido. Em Portugal a percentagem de pessoas com mais de 65 anos é bastante significativa. Toda a gente sabe que no final de vida se consome muito mais saúde do que no início.
Tem ideia de quantas cirurgias já fez até hoje?
Bem mais de 10 mil. O número de intervenções em que estive envolvido foi o triplo ou o quádruplo dessas porque, obviamente, hoje em dia já ajudo, bastante, e durante muitos anos ajudei outros. São cerca de 6 mil adultos, 4 mil crianças, talvez.
Costumo dizer que num velhote tudo puxa para baixo e num recém-nascido tudo puxa para cima
Consegue dizer-me qual foi a cirurgia mais difícil em que esteve envolvido?
Há níveis de dificuldade na cirurgia, como em tudo. As cardiopatias congénitas, por exemplo, estão graduadas com cinco níveis de dificuldade, de complexidade. Uma pessoa na minha fase de vida opera muitos doentes na chamada fase cinco de complexidade e serão cirurgias dos recém-nascidos, grandes operações da cirurgia cardíaca... É difícil dizer qual foi a operação mais difícil, cada caso é um caso.
A cirurgia de um recém-nascido deverá ser bastante mais delicada…
Nos recém-nascidos é claro que o aspeto de minúcia e a necessidade de detalhe são muito importantes. E a margem de erro é menor, os tecidos são mais pequenos. Por outro lado, os recém-nascidos têm uma resistência brutal. Costumo dizer que num velhote tudo puxa para baixo e num recém-nascido tudo puxa para cima. Isso é verdade, às vezes parece quase um milagre de vida. Agora, não há grandes margens na cirurgia cardíaca de recém-nascidos para fazermos erros, não há grandes margens… Mas mesmo, às vezes, quando os fazemos, os recém-nascidos são muito perdoadores.
Já esteve, por assim dizer, do lado de fora do vidro da sala de operações, com a sua filha. É uma experiência que tem que impacto no comportamento de um médico?
É uma experiência que muda uma vida. Aliás, as experiências medem-se na modificação que fazem em nós. E, a partir daí, passei a olhar para os pais de uma forma diferente. E aqui, no serviço, quando operamos crianças, uma ou duas vezes durante a cirurgia, a enfermeira circulante, que é quem tem disponibilidade, vem cá fora dizer aos pais como é que está a correr.
É muito mau quando nós vamos ao médico e ficamos à espera de ver a evolução da cara dele para saber o resultado de uma análise. E é muito mau quando ficamos, como público, do lado de fora, à espera quatro ou cinco horas sem saber o que se está a passar lá dentro.
A Medicina tem uma dimensão social, humana, pessoal muito grande e nós às vezes privilegiamos muito os aspetos técnicos mas, verdadeiramente, a Medicina trata pessoas e isso é absolutamente claro.
Não vive uma sem a outra, a técnica e a dimensão humana?
Vou-lhe dizer, até, que à medida que os anos vão passando nós vamos valorizando, se calhar, a componente humana mais do que a técnica. Em princípio, ‘we should master’ [devemos dominar] a parte técnica, o que não quer dizer que seja sempre assim e continuamos a perder doentes, às vezes. Mas acho que a vida e os anos nos vão despertando mais. Se calhar estes internos novos que aqui tenho estão muito preocupados com a performance técnica, os seus ‘skills’ próprios. Não quer dizer que desrespeitem o que é a pessoa mas estão tão embrenhados naquilo… e é fácil, numa especialidade muito tecnológica, ultrapassarmos a sociologia da própria profissão, mas na minha fase de vida, a gente passa a ligar mais a isso. Passa a emocionar-se mais.
70% dos erros em Medicina com consequências devem-se a má comunicação
Falando do erro na Medicina, sabendo que já escreveu bastante sobre o assunto e partindo do princípio que não é possível existir Medicina sem erro, o que é que acha que pode ser melhorado neste campo?
70% dos erros em Medicina com consequências devem-se a má comunicação. A taxa de erro nos hospitais portugueses, segundo um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública, é de cerca de 12%. Portanto, 12 em cada 100 processos clínicos derivam de um erro com consequências.
No que consiste essa má comunicação?
Essa má comunicação está em eu dizer-lhe coisas que você não percebeu e que eu não percebi que você não tinha percebido. A saúde, hoje em dia, não é exercida, normalmente, no consultório de uma pessoa, é exercida nos grandes grupos hospitalares. Os hospitais de periferia referem-nos doentes, que são tratados por médicos, enfermeiros, por técnicos, há rendições de turnos, há um conjunto de interfaces de comunicação que têm margens de erro.
É o problema do retrovisor e do canto do retrovisor que não cobre a área do carro que de facto está a ultrapassar-nos. E nós até olhámos para o retrovisor, ou seja, nós até fazemos as coisas bem mas… e essa é a filosofia do erro médico. Há uns erros que são negligência, são muito feios, são violações, mas a maior parte dos erros, 90% ou mais dos erros, são erros de sistema. São erros feitos por pessoas boas trabalhando em sistemas maus, pessoas boas trabalhando em sistemas perigosos.
Hoje em dia confundem-se reformas com cortes. Reforma é separar público do privado, é arranjar um sistema de rede coronária ou de rede de AVC
No nosso Serviço Nacional Saúde (SNS) o que é que acha que podia ser melhorado para evitar essas falhas ou, pelo menos, agilizar o sistema?
O SNS, que é uma bandeira do país e que foi uma conquista da Revolução de Abril, teve enormes desenvolvimentos - falamos das doenças cardiovasculares, podemos falar da oncologia, falamos da Medicina materna e infantil, Portugal tem das mais baixas taxas de mortalidade neo-natal, e de facto houve reformas verdadeiras. Esta crise não lhe fez bem. É preciso haver coragem para dizer isso, não lhe fez bem. E nós hoje, nesse aspeto, estamos piores do que estávamos.
Não há investimento público na Saúde. Hoje em dia a Medicina é muito tecnológica e, portanto, se o Estado não assumir a sua responsabilidade de investimento público na Saúde, e não está a fazê-lo, o SNS vai estiolar. Vai passar a haver transfere de pessoas do setor público para o setor privado, como já há transfere de pessoas para o estrangeiro. Essas pessoas não vêm e os sistemas de saúde precisam, sobretudo, de médicos e enfermeiros, mas precisam primeiramente de pessoal de saúde.
Por isso, não acho que o caminho que o SNS está a seguir seja bom neste momento. Apesar das grandes vitórias que teve, o SNS precisava de uma reforma que não teve.
O que quer dizer com isso?
Hoje em dia confundem-se reformas com cortes. Num sistema que não tem dinheiro, tem de se perguntar onde é que se corta, e se estamos a gastar nos medicamentos, cortamos nos medicamentos ou numa outra coisa qualquer, em horas ou pagamentos, o que quer que seja. Isso não é uma reforma. Reforma é separar público do privado, é arranjar um sistema de rede coronária ou de rede de AVC, nas carreiras, isso são reformas de Saúde. Mas essas grandes reformas não temos, infelizmente, visto. E isso junta-se a uma moral recessiva, de pouco dinheiro, dificuldades de contratações e pouco investimento público em tecnologia, que é um dos problemas graves que nós temos aqui.
Acha que a separação efetiva entre o público e o privado…
Isto é uma opinião, como já disse, eu não sou político, só sou cirurgião. Mas é muito claro… e não é por promiscuidade, isso é uma coisa que existe mas existe pouco. Há uma grande tendência a dizer que o público e o privado têm de estar separados por causa da promiscuidade, a promiscuidade poderá existir, pontualmente, como haverá pessoas que passam receitas falsas - em todas as profissões há bons e maus - mas o sistema tem a sua fiscalização própria e não é por aí. Não é por isso, é pela dedicação. Não faz sentido nenhum que uma pessoa trabalhe de manhã no público e de tarde vá trabalhar para o privado para ganhar a vida. Se calhar devemos ter um público mais pequeno. Para já devíamos ter um Sistema Nacional de Saúde e não um Serviço Nacional de Saúde. Isto sim, é político. Porquê? 35%, 40% das camas já estão no setor privado, portanto, o país não pode dispensar isso. Nem por um principio político, não pode. A política é muito interessante mas temos que olhar para os factos práticos. (...)
Por outro lado, é normal que uma pessoa trabalhando num sítio só se possa dedicar a essa causa inteiramente, e possa desenvolvê-la. Não faz sentido esta migração de médicos e pessoal de enfermagem de um lado para o outro.
Acho que o país, se calhar, se não pode ter um serviço público muito grande, tem de ter um setor público muito bom e mais pequeno. Os doentes não deviam andar a passar do público para o privado e o privado devia ser responsabilizado até ao fim pelo seguimento dos doentes, uma forma de capitação. E isto faz sentido, porque isto clarificava e permitia que cada um dos lados se dedicasse plenamente. Portanto, não é promiscuidade, é pela necessidade de dedicação. E por outro lado, que houvesse uma competição saudável entre os dois sistemas. Dá ideia que o Estado não deixa respirar o país.
Ao falar da promiscuidade, e haverá de facto, de certeza que não é a maior parte…
Não é, não é. É como o problema da negligência, a maior parte de nós não é negligente, as pessoas poderão fazer erros mas os médicos, o pessoal de saúde, é predominantemente bom e pessoas bem intencionadas. Poderá haver ovelhas negras, como em todo o lado. É muito fácil para a comunicação e até para alguns setores decisores exorbitarem essa parte. Faz parte.
O problema dos doentes não é serem tratados no público ou no privado. Quando estamos doentes o que queremos é ser tratados bem e rápido
Porque é que um médico diz a um utente do serviço público para ir ao privado?
Se um utente tem sistema de saúde que cobre os seus gastos no privado e está no sistema público em lista de espera é de elementar justiça ler-lhe os seus direitos de poder ser tratado num lado ou no outro. Porque isso só permite que vá ser tratado mais cedo.
O problema dos doentes não é serem tratados no público ou no privado, isso é uma questão concetual para político. Quando estamos doentes o que queremos é ser tratados bem e rápido. É isso. O privado e o público fazem bons cuidados. O problema do público, neste momento, não é a qualidade do trabalho que faz, é um problema de acesso, há listas de espera.
O país tem dupla cobertura de saúde. Se eu me candidatar a ser operado no SNS, que é um direito meu, se eu tiver de esperar quatro meses por uma cirurgia e se eu tiver um seguro de saúde para o qual paguei e que me paga essa cirurgia no setor privado… Os doentes devem saber que, tendo opções, não têm de ser tratados todos no privado nem no público. Os doentes migram para onde acham melhor. Aliás, a Constituição e este ministério consagram o direito de livre escolha dos doentes. Agora, coagir doentes que não têm cobertura no setor privado para irem para o setor privado, parece-me uma prática pouco ética.
Como é que é o dia de dia de um diretor do serviço de Cirurgia Cardiotorácica?
É pesado. Tenho 64 anos e tenho um privilégio grande de ter treinado uma equipa. Portanto, no momento em que estou aqui, estão a ser operados doentes no serviço se calhar tão bem ou melhor do que eu os operaria e isso, de facto, é um privilégio grande. Nem toda a gente se pode gabar do mesmo mas eu, de facto, tenho esse privilégio.
Digo que era mais interessante quando não era diretor, podia dizer mal do diretor, operava e estava sossegado. Hoje em dia tenho imensas solicitações, quer na Universidade [Nova de Lisboa] - tomei posse como vice-reitor há poucos dias -, quer na parte administrativa académica, quer na gestão, que começou a tirar tempo à parte clínica. É óbvio que continuo a operar mas com muita competição, com pedidos de várias coisas e isso distrai-nos, tira-nos o tempo.
Mas também é uma fase de vida, este serviço beneficia hoje, penso eu, mais da inspiração, da liderança e da facilitação que eu lhe possa criar do que de mais um caso que eu faça.
Um colega meu americano dizia com uma certa graça e com uma certa profundidade que ‘quando opero um doente salvo uma vida, quando ensino um dos meus internos ou especialistas mais novos a operar um doente salvo centenas de vidas’.
A técnica é importante mas preocupo-me mais em passar [aos internos] a mensagem de vida da cirurgia
No treino dos seus colaboradores e de cirurgiões mais novos, sem falar da técnica, que é crucial, o que é que para si mais importante que seja aprendido por eles?
É uma pergunta muito inteligente. A técnica é importante mas preocupo-me mais em passar-lhes a mensagem de vida da cirurgia. A empatia, a compaixão, a capacidade de se relacionarem em equipa, o respeito pelo caso e pelo doente e o sentido de responsabilidade. É muito importante que a gente ensine as pessoas a serem tementes ao que fazem. Isto é, perceberem que há limites. Privilegio mais até aspetos de decisão e de estratégia, sou cuidadoso com a técnica e ensino as posições base de coisas, mas preocupo-me muito mais que eles apreendam a cirurgia no seu conjunto.
As técnicas veem-se nos livros, praticam-se, mas o conceito da filosofia do caso, do doente, da noção do risco, dos limites do risco, isso leva anos a aprender e isso é uma coisa que eu lhes posso dar com alguma facilidade.
Depois de tantos anos a lidar com pacientes, como é que lida com a morte de um paciente?
Muito mal. Perdi um doente esta semana e lido muito mal.
Acha que melhorou essa parte da profissão?
Não, piorou. Cada vez lido pior com isso. Até porque a idade nos fragiliza emocionalmente. Uma das características da idade é a pessoa ficar mais frágil de sentimentos, é normal. Os velhos choram mais facilmente e comovem-se mais facilmente. Sente-se um gosto muito amargo, é uma frustração em que o receio de não ter estado à altura ou da má decisão se cruza com os danos colaterais que se fazem nas famílias. É horrível. Uma pessoa ter de comunicar a alguém que não conseguimos, é mau demais. Mas ‘it comes with business’, vem com a vida, uma pessoa tem de estar à altura disso, temos de pôr do outro lado da balança a esmagadora maioria dos outros que estão em casa com as famílias.
No outro dia veio aqui uma miúda de nove anos que eu tinha operado há nove anos, uma transposição num recém-nascido, e que me tinha visto certamente nalgum jornal ou na televisão e pediu à mãe a prenda de anos de me vir conhecer. É incrível, tenho a fotografia dela aqui no telemóvel, porque me quis fotografar com ela. Ofereceu-me uma caricatura minha muito bem feita, com o bigode e os óculos e o nariz, apanhou-me bem os traços, e ofereceu-me um postal muito bonito que tenho lá em casa.
Como é que se sentiu?
O melhor do mundo. Senti-me muito feliz pelo facto de ter conseguido modificar a vida daquela criança recém-nascida há nove anos e que agora veio aqui com a mãe. E que me quis conhecer, que é uma coisa que eu acho de uma maturidade incrível.
A perceção de vivência reside no cérebro mas também é verdade nós amamos com o coração. Nós reagimos a qualquer coisa e o coração bate
É verdadeiro que alguém pode morrer por causa de um coração partido?
Isso é o velho tema das emoções e do coração. A perceção de vivência reside no cérebro mas também é verdade nós amamos com o coração. Nós reagimos a qualquer coisa e o coração bate. Porque é que o coração bate? Não é que esteja ligado ao cérebro diretamente, se calhar está, mas é através de mediadores. Há produtos que são libertados no organismo e que nos fazem eriçar os pelos como os animais, o coração bater mais, ficar suados. Portanto, há uma relação entre o sentir e o coração.
Para pessoas de idade que perdem o outro que era, digamos, contorno da sua vida, não custa acreditar que, do ponto de vista físico, isso seja um abatimento enorme. Obviamente o coração, que nessas pessoas de idade é um órgão já de menos resistência, pode fraquejar por aí. Mas não há verdadeiramente uma noção do coração partido. É sabido que as emoções, e mais as emoções negativas, são predisponentes à doença coronária, é verdade, mas não é de um dia para o outro que isso acontece. Faz parte da chamada aureola mística do coração, que talvez não seja 100% verdadeira e talvez não seja 100% mentirosa.
Há pessoas que desistem de viver. Há mesmo doentes que desistem de viver e é um fator, morre-se mais depressa
No ano passado, morreu uma atriz chamada Carrie Fisher e no dia a seguir morreu a mãe, com certeza que existirão outros fatores envolvidos…
Provavelmente já teriam qualquer fragilidade cardíaca e a emoção e a depressão é muito forte e portanto conjugam-se coisas.
Não é uma síndrome em si…
Não. Um coração é uma bomba, é um órgão relativamente estúpido, é um órgão mecânico. É claro, uma pessoa com essa idade já teria doença coronária, já teria as suas fragilidades. Há pessoas que desistem de viver. Há mesmo doentes que desistem de viver e é um fator, morre-se mais depressa. O estado de espírito com que se entra para um bloco operatório ou com que se vem ser operado afeta o resultado da cirurgia. Fugir dos doentes que dizem ‘eu vou morrer nesta cirurgia’. Não sou obviamente crente em fenómenos que não entenda, mas…
Já perdeu um paciente por razões que não consegue explicar?
Sim, claro. A Medicina só é parcialmente previsível e parcialmente certa. Há muitas coisas na área da Medicina que nós não entendemos. Não temos explicações para tudo, há coisas que não entendemos. Não se pode ir para uma operação como favas contadas porque isso é mentira, não existe, nem nos filmes. E mesmo quando se faz tudo bem, há uma componente de sorte ou de azar. Há uma componente chamada variação aleatória, que a variação que nós não percebemos.
O que o faria a si ficar de coração partido?
Perda de familiares. O coração parte-se, sobretudo, por afetos. Também me entristece ver a evolução que alguns aspetos da sociedade hoje levam a que nós conheçamos o preço de tudo e cada vez mais desconheçamos o valor das coisas. Os valores são perenes, os preços e os custos flutuam. Mas, sobretudo, questões familiares e de foro próprio. No fundo nós temos todos um grande apego à vida, à nossa e à dos outros, e esse é um princípio de auto-defesa primária.
Reformar-se é algo que lhe partirá o coração?
É uma inexorabilidade e uma realidade nova. Quando chegar, e espero que chegue aos 70, vai ter de ser equacionada, mas vou sair com a sensação de ter cumprido o meu dever. É muito difícil, sabe, para pessoas que tiveram vidas muito ativas, reformarem-se no dia a seguir. E normalmente essas pessoas morrem mais cedo, portanto eu vou tentar que a minha reforma seja progressiva.
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