"Ir para a Cruz Vermelha, onde salário é zero, é questão de dar exemplo"
A poucos dias de terminar o seu último mandato como diretor-geral de Saúde, Francisco George, o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto, fala do passado, elogia e critica o presente e desvenda um pouco do seu futuro.
© Blas Manuel
País Francisco George
Francisco George é desde 2005 o diretor-geral de Saúde e, ao fim de uma dúzia de anos, vai abandonar o cargo. A lei assim o obriga. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, diz sentir que deixa um Serviço Nacional de Saúde que é um exemplo para outros países.
Nesta conversa, tida na sala onde tudo começou há 17 anos, recorda alguns dos casos mais mediáticos, passa em revista a sua carreira e alguns aspetos da sua vida.
Chegou à Direção Geral de Saúde (DGS) no ano 2000 e em 2005 assumiu o papel de diretor-geral. Agora, passados 12 anos, vai abandonar o lugar por força da lei, pois completa 70 anos. Se pudesse continuar no cargo continuaria?
Não. Quando comecei a minha carreira pública há 44 anos já sabia que isso iria acontecer. As regras estavam bem claras, estavam estabelecidas, vêm do tempo da ditadura, mas neste caso concreto devo dizer que estou inteiramente de acordo com a lei. A Administração Pública não pode ser comparada ao setor privado, não é privada, tem dez milhões de acionistas e são os cidadãos em geral que a representam. Deve ser modernizada e inovada, não pode ter dirigentes vitalícios. Saio com a sensação de ter conseguido chegar ao fim, que era o meu desejo.
Como começou o percurso Direção -Geral?
Comecei exatamente nesta sala. Vim cumprimentar o antigo diretor-geral, que era o pai do antigo Presidente da República, Jorge Sampaio. Vim aqui para concorrer a um posto de delegado de saúde e assim aconteceu. Desde então, fiquei com o chamado vínculo à Administração Pública.
Os portugueses no seu conjunto fizeram da saúde em Portugal um exemplo, um exemplo a nível mundialQual foi a evolução do estado da saúde em Portugal desde que assumiu funções enquanto diretor-geral?
Sem qualquer leitura pessoal, em termos de contributo, posso-lhe dizer com toda a certeza que os portugueses no seu conjunto fizeram da saúde em Portugal um exemplo, um exemplo a nível mundial. Portugal está no top 5 no que diz respeito à saúde da mãe e da criança, tivemos imensos sucessos em áreas de planeamento familiar, da diminuição da mortalidade infantil, a questão da mortalidade materna que hoje em dia já não tem expressão em Portugal, além do fácil acesso ao sistema que as mães e as crianças têm e que é um exemplo.
Todos os meus colegas, com quem me reúno regularmente, quer no contexto da União Europeia, quer na Organização Mundial de Saúde, me perguntam como foi possível chegar a este nível de desenvolvimento tão rápido e, ainda mais importante do que a rapidez, de forma tão uniforme entre o interior e o litoral.
O que fica por fazer? Sai com o sentimento de dever cumprido?
Fica muito por fazer. As discussões ligadas à saúde não param, há sempre o que fazer. Os dias são pequenos, as semanas são pequenas, os meses são pequenos, os anos são pequenos. Nunca há tempo para fazer tudo e é sempre possível fazer mais e melhor, por vezes até com ganhos em eficiência. Estamos a trabalhar muito perto com a Ordem dos Médicos, com o Infarmed, com a Administração Central. As Normas de Orientação Clínica têm sido muito bem recebidas, muito bem observadas no seu conjunto e têm sido importantes porque os doentes e cidadãos têm o direito a receber boas práticas em termos clínicos.
Portanto, consegue-se ir com o sentimento de agrado. Cheguei ao fim da corrida, cheguei à meta que começou a ser desenhada há 44 anos, sem grandes problemas. E penso que terei dado alguns contributos, mas os contributos principais que assinalam o desenvolvimento do país são dados por todos, a começar nos cidadãos. O país hoje é diferente, é um país moderno, é um país procurado por cidadãos de todo o mundo, é um país onde se vive bem e que tem indicadores de saúde que estão muito à frente de outros países, incluindo os países mais industrializados da Europa.
Começou durante o executivo de António Guterres e já atravessou vários governos, qual deles deu, na sua opinião, mais prioridade à saúde?
Bem, essa pergunta é difícil de responder. Em relação aos ministros o que tenho dito é que ainda não fiz uma grelha para os classificar, mas em relação aos governos não consigo responder. Não consigo avaliar. Estou a pensar fazer uma grelha ponderada para os avaliar, mas não estou muito preocupado com isso.
Aquilo que posso dizer é que tenho o maior respeito pela definição das políticas, das competências institucionais que a Constituição atribui a ministros. Estamos num regime democrático e, naturalmente, agora é diferente daquilo que acontecia no passado. Quando comecei, nos primeiros anos da minha carreira pública, ainda não estávamos num regime democrático e era mais difícil, mas agora não, mesmo que não concorde num plano pessoal, tenho de aceitar porque são governos legítimos e são órgãos de soberania que tomam as suas decisões, que têm de ser tidas em conta pela Administração Pública.
E com qual sentiu que a DGS conseguiu fazer mais avanços?
O que lhe posso dizer é que há um cimento aglutinador, sobretudo desde que fui sucessivamente propondo alterações na Direção-Geral de Saúde, que culminam numa abertura sobretudo à área clínica, hospitalar, às carreiras médicas. Em termos de boas práticas, houve grande trabalho no sentido de estar presente em termos normativos em todas as áreas. Houve também a preocupação de tornar mais robustos os sistemas de informação, hoje a informação sobre mortalidade ou sobre doenças - aquilo a que chamamos morbilidade - é muito rápida e reconhecidamente muito eficaz. Todos os sistemas agora aqui na DGS são digitais, são paper-free. Isso tem colocado Portugal na linha da frente a nível mundial com indicadores que são quase todos atualizados a todo o instante. Avançamos muito nesta área, há aqui uma visão de modernidade que é real, que não existia, ultrapassaram-se barreiras antigas. As barreiras existem sempre quando se pretende mudar, mas também é possível ultrapassá-las.
© Blas Manuel
Teve uma direção marcada por casos que envolveram desde a Gripe A, a Legionella, mais recentemente a Hepatite A e o Sarampo. Considera que todos estes surtos foram acompanhados com a eficácia e recursos que gostaria e de igual forma?
Sim. Seguramente que sim. Aliás todos os meus homólogos europeus me interrogam como foi possível resolver esses problemas em pouco tempo. Por exemplo em Itália, ainda não foram resolvidos e Itália é uma das grandes potências industrializadas.
Nós temos uma grande tradição de serviço público, a ‘escola portuguesa de saúde pública’ é secular, é reconhecidamente de grande qualidade. Quando olhamos para a galeria dos retratos vemos que o primeiro diretor-geral ainda foi nomeado durante a monarquia, depois sucederam-se personalidades que colocaram sempre o interesse público à frente e isso é importante. A DGS constitui um património histórico gerador de uma sensação de responsabilidade, em relação aos seus dirigentes, mas também de caráter social.
Não é possível fazer saúde pública sem a comunicação social. Muitos jornalistas reconhecem que falar comigo é muito fácil, se calhar falar para o governador do Banco de Portugal já não é tão fácilA forma de atuação foi sendo melhorada com a experiência destes casos? Nomeadamente no que diz respeito à aproximação às pessoas, com a opção de briefings diários?
Sim, claro que sim. Não é possível fazer saúde pública sem a comunicação social. Muitos jornalistas reconhecem que falar comigo é muito fácil, se calhar falar para o governador do Banco de Portugal já não é tão fácil. Mas a verdade é que o telefone toca e eu atendo quase sempre e a maioria das chamadas é oportuna, pretende esclarecer, saber esta ou aquela situação, quais os riscos e isso é importante porque não podemos informar a população sem a comunicação social, há aqui um interesse comum.
A DGS e os seus dirigentes têm o dever de informar os cidadãos e os cidadãos têm, por outro lado, o direito de ser informados e isso só pode ser feito assim, a comunicação social também têm de informar e essa informação tem de ter uma fonte credível e tem de ser rápida. Este paradigma de criar parcerias informais entre comunicadores e as pessoas que têm de receber a informação é essencial para o país moderno que somos e que queremos continuar a ser.
Vacinação: A mãe não tem o direito de decidir pelo filho expô-lo ao risco de doençasA este propósito, em relação à vacinação, acha que se trata de um assunto delicado mas que necessitava de uma abordagem direta, como a que escolheu usar?
A vacinação no nosso país têm uma taxa de cobertura das mais altas do mundo inteiro, mas agora colocou-se a questão em termos de debate público de saber se devia ou não ser obrigatória para crianças. Mas na questão da obrigatoriedade, devo dizer que em relação à vacinação tenho alguma dificuldade em reconhecer esse aspeto, pois acho que é preferível a intervenção pedagógica, informativa, explicar que é preciso vacinar a criança porque as vacinas são eficazes para evitar as doenças, nomeadamente dar exemplos.
Mas também há que ter em conta que uma criança não pode decidir. Ninguém pergunta a uma criança recém-nascida se quer a primeira vacina, a da Hepatite B, mas na ausência de decisão do próprio, a mãe tem de apoiar tudo o que diz respeito à proteção do filho - tem de lhe aquecer a água do banho no inverno, deve ter cuidados de puericultura em relação ao vestuário, em relação à alimentação, em relação à higiene e naturalmente tem de vacinar. A mãe não tem o direito de decidir pelo filho expô-lo ao risco de doenças.
A vacina contra a Gripe foi alargada esta semana a bombeiros e diabéticos. Este é um passo importante para travar a propagação do vírus? Porquê?
É, sim. Foi uma proposta nossa ao Governo. Comprovadamente a vacina da Gripe é sobretudo eficaz na redução e prevenção de complicações. As pessoas idosas, diabéticos, bombeiros que são vacinados podem ficar com Gripe, mas ficam a saber é que uma vez adquirida a Gripe, tem menos probabilidade de originar uma complicação. Podemos dizer que a vacina é importante para reduzir a mortalidade específica, porque evita as suas complicações.
Pela primeira vez foi identificada uma população de mosquitos portadores do Dengue, em Penafiel, e o sistema já estava montado para perceber quando é que entraria no paísEm relação ao mosquito portador do Dengue que foi encontrado na região norte do país. Há razão para preocupação?
É preciso esclarecer muito bem esta questão. Desde 2009 que estabelecemos uma rede nacional de armadilhas para capturar mosquitos. O Serviço Nacional de Saúde não se destina só a medidas que tenham a ver com os centros de saúde, hospitais, cuidados continuados, também trata de colocar em situação de sentinela um conjunto de dispositivos em que, entre outros, há armadilhas que capturam sistematicamente mosquitos. Esses dispositivos estão colocados estrategicamente pelo país, nos portos, nos aeroportos, no interior, no litoral e são armadilhas que atraem e aspiram mosquitos e uma vez recolhidos são analisados. Isto tem sido feito nos últimos oito anos muito regularmente e sobretudo com o apoio, em termos de análise, do Instituto Ricardo Jorge, que tem especialistas que verificam quais são os mosquitos capturados e percebem se estão ou não infetados.
Pela primeira vez, foi agora identificada uma população de mosquitos, em Penafiel, que não existia em Portugal e o sistema já estava montado para perceber quando é que entrariam no país. Estes mosquitos têm uma capacidade invasora e uma vez instalados podem transportar doenças, sobretudo agentes virais, mas só se estiverem infetados. Visto que nenhum deles estava infetado não é necessário tomar medidas extraordinárias, mas é necessário tomar medidas preventivas.
Como por exemplo?
Como eliminar as populações de mosquitos. Identificar os seus criadores, a água, por exemplo, e eliminá-los. E isso tem de ter o apoio da população, com medidas tão simples como recolher latas, os pratos dos vasos, recolher pneus velho. Os pneus não podem estar ao ar livre, porque a chuva pode criar pequenas lâminas de água parada e isso é suficiente para que os atraiam.
Greves: Não é possível satisfazer os desejos de todos, há a necessidade de dialogar maisComo vê estes protestos e ameaças de greve de médicos e enfermeiros? Pode dizer-se que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está a atravessar um dos períodos mais críticos?
Vejo com preocupação. Mas não é a primeira vez que há greves, nem de enfermeiros nem de médicos. As greves dos enfermeiros são sempre muito observadas, mas há aqui um problema que tem a ver com a gestão financeira orçamental. Não é possível satisfazer os desejos de todos, há a necessidade de dialogar mais e de se encontrarem soluções acordadas de forma consensual. Mas vejo com preocupação tudo isto.
O SNS comemorou recentemente 38 anos de existência, é positivo o balanço que faz?
Sim, claro que sim. Se todos os setores do país tivessem avançado como o da saúde, estaríamos todos melhor.
Os nomes que têm sido apontados como potenciais sucessores para o seu lugar têm sido sempre mulheres, desde Graça Freitas, Catarina Sena ou Raquel Duarte. Gostava que a sua sucessora fosse uma mulher?
Sim, sim, gostava. Quando olhamos para a galeria dos retratos vemos que só há uma mulher e isso tem de acabar. Temos de colocar mulheres no topo da administração, tanto por razões de igualdade de género, como pelas conquistas que foram alcançadas e que têm de ser consolidadas.
Quem gostava de ver no lugar?
Antes de mais tenho de dizer que isto não é como acontecia há pouco tempo. Agora há a necessidade de provas públicas e portanto temos de esperar uma decisão final para ver a quem é dada luz verde. Por isso não posso responder a esta questão. Tenho como certo que no dia 20 de outubro sairei com a absoluta convicção de que não irei intervir mais na condução dos trabalhos na Direção-Geral de Saúde.
Em que ponto/estado vai o seu sucessor(a) encontrar a DGS?
Com poucos recursos, mas com mais capacidade de resposta.
© Blas ManuelJá disse em algumas entrevistas que faz poucas férias. Será que com o fim do mandato irá conseguir tirar algum tempo para descansar ou ainda não é desta?
No fim do mandato vou tirar alguns dias de férias, sim, mas depois decidi candidatar-me a Presidente da Cruz Vermelha. O atual Presidente já completou três mandatos, o lugar vai ficar vago no final do mês de outubro e vou apresentar a minha candidatura. Não posso garantir que seja eleito, a eleição é difícil, tem de ser consensual e portanto se não receber o consenso dos membros do Conselho da Cruz Vermelha procurarei outras ocupações, mas penso que há condições para ser eleito. Caso seja, dedicar-me-ei à Cruz Vermelha Portuguesa, julgo ter a energia e tenho um passado de independência comprovada, de neutralidade, de imparcialidade.
Sair de um lugar de projeção para um outro onde a remuneração é zero é uma questão de dar o exemplo e isso é uma das questões que mais me atraiEra portanto um cargo que gostaria de assumir? Sente ter o perfil indicado para o desempenhar?
Considero ter o perfil, sim, se não não me candidatava. Trata-se de um cargo de grande responsabilidade, a Cruz Vermelha Portuguesa é uma missão sobretudo humanitária e, exatamente para dar o exemplo, o presidente não recebe nenhuma remuneração, nenhum salário. Há uma entrega em termos de missão, de voluntariado, que é modelar. Sair de um lugar de projeção para um outro onde a remuneração é zero é uma questão de dar o exemplo e isso é uma das questões que mais me atrai.
Em 2006 foi condecorado com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, que lhe foi entregue a 5 de março desse ano pelo Presidente da República Jorge Sampaio e, em 2014, recebeu a Medalha de Serviços Distintos do Ministério da Saúde Grau Ouro, o que significaram estes reconhecimentos para si?
Agrado. Recebi essas distinções, quer por parte de Jorge Sampaio, quer por parte de Paulo Macedo com agrado, com felicidade, com alegria, com orgulho e com sentimento de agradecimento.
Não sei pintar, não sei música e tenho como expressão artística a escritaTem uma página em que partilha algumas lutas, pessoais e profissionais. A escrita é um escape para si?
Sim, é o Dossier de Lutas. É uma expressão artística. Não sei pintar, não sei música e tenho como expressão artística a escrita. Normalmente espero um sinal, por vezes em termos de pensamento para escrever. Agora estou a escrever sobre um tio meu que era pintor. Gosto de escrever e gosto dos textos que escrevo.
Por que razão escolheu a medicina, teve a ver com o seu pai que também era médico? E a especialidade em saúde pública?
Sim, provavelmente teve a ver com o meu pai, mas também por falta de vocação para os outros grandes cursos, que na altura eram medicina, engenharia e arquitetura, mas via-me mais médico do que engenheiro ou advogado. A parte da especialidade foi uma opção para permitir encontrar o meu destino sem ser influenciado por mais ninguém, nomeadamente o meu pai... e consegui.
Em algumas das partilhas fala da morte da sua esposa e filha. Sente que se refugiou no trabalho e na dedicação aos outros?
Não encontro grandes diferenças, mas não fazia sentido desistir. Mobilizei energias para continuar.
Quem me queira comparar com outros ou me cite, que o faça de forma justa. Gostava que dissessem de mim a verdadeCostuma dizer-se que com a saúde não se brinca. Mas nestes anos todos à frente da Direção-Geral de Saúde tem alguma história caricata que possa partilhar?
Lembro-me de uma, sim. Uma vez organizámos tudo para receber aqui, na sede da DGS, uma secretária de Estado do governo americano, no tempo do presidente Bush, e tinha pedido para se organizar uma receção à senhora, só que as pessoas que ficaram incumbidas desse trabalho, esqueceram-se, pura e simplesmente que íamos ser visitados por um membro do governo norte-americano, veja bem, da grande potência americana. De repente, estou a trabalhar e entra-me pela porta um grupo grande de guarda-costas, que tomam posições no meu gabinete e segue-se a senhora depois de ter feito o percurso todo sozinha. Fiquei muito incomodado, porque ninguém a tinha esperado, hoje em dia até penso que devia ter sido eu a esperá-la à porta. Mas correu bem, no fim até me convidou para ir à Casa Branca, o que fiz uns dias depois.
Por fim, pergunto, como gostava de ser recordado?
Com normalidade. Não é uma questão de ser recordado, nunca pensei nisso dessa forma. Posso dizer que gostava de ser recordado com justiça, de forma justa. Quem me queira comparar com outros ou me cite, que o faça de forma justa. Gostava que dissessem de mim a verdade.
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