"Marcelo deu chutos numa bola que estava dentro da baliza. E gritou golo"
Daniel Oliveira é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
© Blas Manuel
Política Daniel Oliveira
Daniel Oliveira. Jornalista e comentador. 'Transpira' política por todos os poros - ou não fosse, justamente, a discussão da política o seu trabalho. É um dos opinadores com maior notoriedade no espaço mediático. Um papel que assume com inegável entusiasmo, mas nem por isso olvidando o sentido de responsabilidade. A conversa não podia esquivar-se da atual situação política, irremediavelmente marcada pela tragédia dos incêndios e a consequente crise no Governo.
A entrevista decorre sensivelmente uma hora depois do anúncio da demissão da ministra. A novidade do dia que, afinal, já não a era para Daniel Oliveira. Bastou-lhe um telefonema para saber, antes do discurso de terça-feira do Presidente da República, que a ministra iria ser demitida (ou demitir-se). Só faltava decidir se seria anunciado na sexta-feira ou no sábado. Foi antes. O timing do anúncio, defende, foi impulsionado pelo discurso presidencial.
De uma coisa está certo: "Marcelo deu vários chutos numa bola que já estava dentro da baliza e gritou golo" para, com isso, "ganhar força política". Em matéria de incêndios, como noutras, garante não se comover com o "jogo político". Interessa-lhe antes discutir aquilo que ninguém parece querer discutir - "o modelo de desenvolvimento que queremos ter". Se se centrar o problema apenas em demissões, antevê, as tragédias vão continuar ao longo de décadas.
Conhecido o substituo de Constança Urbano de Sousa - Eduardo Cabrita - comenta que esta foi uma "péssima escolha", porque "a remodelação tinha de servir para reforçar o núcleo político do Governo, numa fase que vai ser difícil" e "não é, seguramente" o ministro Adjunto que o fará, entende.
Quanto à moção de censura apresentada pelo CDS? Foi algo "macabro" que nasce da "excitação" dos resultados eleitorais e de quem não percebe que há assuntos "que têm de ser tratados com pinças". Com este 'tiro no pé', quem saiu a ganhar, analisa Daniel Oliveira, foi Costa e a Geringonça. Com o PSD "fechado para remodelações", não há forma de esta solução governativa falhar, conjetura, apesar de apontar falhas ao trio de partidos.
É inevitável começar por falar dos incêndios. Constança Urbano de Sousa acaba de anunciar a demissão e na carta escreve que já havia decidido demitir-se, "insistentemente", depois da tragédia de Pedrógão.
É evidente que a ministra já tinha decidido que se ia demitir. Mas o que é que Costa ia fazer? Demitir a ministra e todo o Ministério da Administração Interna a meio dos incêndios? Ia escolher um ministro novo a meio dos incêndios? Não podia. As pessoas que sabem como estas coisas funcionam já sabiam que a ministra não ia ser demitida antes do fim dos fogos, que deveria ter sido no princípio de outubro. O que acho extraordinário é a quantidade de pessoas que souberam que a ministra iria ser demitida antes do discurso de Marcelo. Se eu soube, houve muito mais gente a saber. Bastou-me um telefonema. Não é propriamente uma coisa muito secreta que o Governo ia demitir a ministra.
Estava por horas.
Não é estar a pensar em demitir. Eu telefonei e perguntei ‘a ministra vai ser demitida?’. Responderam-me: ‘sim, só não sabemos se vai ser anunciado no sábado ou na sexta’.
As pessoas estão tão enganadas em relação ao Marcelo dos afetos...Era completamente inevitável que fosse demitida?
Claro. É ouvir a intervenção de Carlos César à tarde para perceber. Carlos César praticamente disse que ia ser demitida. Marcelo percebeu que Constança Urbano de Sousa ia ser demitida e exigiu a demissão da ministra. É Marcelo no seu melhor. Tenho uma boa relação com Marcelo, até foi ele que apresentou o meu livro, mas as pessoas estão tão enganadas em relação ao Marcelo dos afetos...
Marcelo é um calculista. Enquanto Costa diz coisas que as pessoas não gostam, Marcelo não. É vinte vezes mais espontâneo Costa do que o MarceloEntão, que Marcelo temos?
Marcelo é um calculista. Hiper calculista. Enquanto Costa diz coisas que as pessoas não gostam, Marcelo não. É vinte vezes mais espontâneo Costa do que o Marcelo. O primeiro-ministro diz coisas que irritam as pessoas. Marcelo nunca diz nada que não tenha preparado.
A ministra Constança Urbano de Sousa é a responsável política por aquilo que aconteceu, mas terá de haver outros responsáveis. Depois de Pedrógão, para muitos era certo que aquela tragédia não ia e não podia acontecer outra vez, muito menos quatro meses depois.
Eu não tinha nada como certo.
Mas é inacreditável que tenha acontecido outra vez.
É surpreendente. Não é inacreditável. O que me preocupa é as pessoas acharem que não pode voltar a acontecer. É porque não perceberam porque é que aconteceu. Nós sabemos exatamente o que falhou. Há um relatório, que foi encomendado e que ninguém leu porque as pessoas estão interessadas no jogo político em torno do que aconteceu. O relatório da Comissão Independente explica exatamente o que é que aconteceu e o que é que falhou. O lado mais evidente de falha direta tem a ver com a Proteção Civil. Só tem a ver com a ministra no sentido em que foi ela quem nomeou metade da Proteção Civil. O relatório não fala propriamente da qualidade das pessoas que foram nomeadas, mas sim do facto de terem sido nomeadas, mais ou menos ao mesmo tempo, numa altura muito próxima dos incêndios e que isso reduziu a capacidade de reação e coordenação. Isto é a parte circunstancial e que tem de ser mudada rapidamente. Tudo o resto é estrutural.
Os nossos bombeiros não têm formação. Isto é horrível de se dizer porque andam pessoas corajosas e generosas a combater o fogo. Mas temos uma estrutura de combate ao fogo baseada no voluntariadoO desordenamento do território?
O brutal desordenamento do território. Somos basicamente o país que tem umas cidades rodeadas de território quase selvagem que quase não tem pessoas, em que as coisas crescem e ninguém trata delas. Temos a estrutura da floresta com a menor parcela média de dimensão de propriedade – minifúndio –, somos dos países da Europa com maior propriedade privada de floresta. E é impossível, na atual estrutura de propriedade da nossa floresta, fazer qualquer tipo de gestão de limpeza. As pessoas não têm dinheiro nem forma de manter limpo o que têm.
Sabemos, também, que o facto de haver muitos incêndios faz com que as pessoas, por racionalidade económica, prefiram ter eucalipto e pinheiro que ao fim de dez anos dá lucro do que arriscar ter uma propriedade que vai arder e que não vai ter qualquer viabilidade económica. Não vale a pena criar inimigos fáceis. A questão da floresta é a questão do país. Tem a ver com o nosso desenvolvimento, com o despovoamento de grande parte do país. O que está em causa é enorme.
Junta-se a isto uma coisa que ninguém quer falar porque é muito desconfortável falar, que também vem no relatório, e que aborrece as pessoas. Os nossos bombeiros não têm formação. Isto é horrível de se dizer porque andam pessoas corajosas e generosas a combater o fogo. Mas temos uma estrutura de combate ao fogo baseada no voluntariado, com poucos bombeiros profissionais e voluntários com pouca formação. E a estrutura de direção dos bombeiros totalmente partidarizada.
Porque é que isso acontece?
Quem sabe como as dinâmicas locais funcionam sabe que não há cacique local que, sendo presidente da câmara, não tenha passado ou vá passar para a direção dos bombeiros. Os incêndios são o espelho do que somos enquanto país e de todos os erros que cometemos nos últimos 40 anos. Junta-se ainda mais uma coisa que, uma pessoa diz e parece que fica toda a gente chocada - as alterações climáticas. Estas não aparecem só nos documentários. Se uma pessoa fala das alterações climáticas para explicar o que aconteceu, dizem que se está a arranjar desculpas. Não. As alterações climáticas existem e nós somos o país da Europa, talvez, menos preparado. Vamos ser os primeiros a senti-la de uma forma muito forte. É muito mais difícil hoje planear a prevenção e combate aos fogos porque pode acontecer, por exemplo, a meio de outubro termos o clima que temos. Isto é o que é estrutural.
Que a ministra cometeu imensos erros, cometeu. Que tinha de ser demitida, tinha. Que a Proteção Civil respondeu pessimamente, respondeu. Tudo isso é verdade. Agora, dizerem que não estavam à espera que acontecesse outra vez... Mas como? Mudou alguma coisa? Vai mudar alguma coisa nos próximos dois anos? Nos próximos três anos? Não vai.
Mas era bom que qualquer coisa mudasse e é isso que se espera.
Como? Não é possível. O que a mim me assusta é as pessoas pensarem que [a mudança] podia acontecer em meses. E isto é desculpabilizar o Governo? Não.
Comovo-me muito com o sofrimento das pessoas que perderam tudo, comovo-me muito pouco com a comoção nacional. Estamos viciados nestes momentos mediáticos que daqui a 15 anos ninguém se lembraEste Governo e os anteriores.
Sim, aliás, António Costa foi ministro da Administração Interna e, já agora, Assunção Cristas que foi ministra da Agricultura têm responsabilidades. Mas está tudo convencido de que com um pedido de desculpas de Marcelo Rebelo de Sousa e uma demissão de uma ministra fica tudo resolvido. [Pensar assim] quer dizer que, não só vai acontecer nos próximos anos, como vai voltar a acontecer nos próximos dez e nos próximos 20. Se se acha que o problema é esse, então não vamos fazer nada. Aliás, vê-se na comoção das pessoas em frases como: "nada pode ser como antes". Alguém andou a discutir a reforma da floresta? Alguém perdeu tempo, mesmo depois de Pedrógão, a discutir a sério a reforma da floresta apresentada?
Comovo-me muito com o sofrimento das pessoas que perderam familiares e amigos e perderam tudo o que tinham, comovo-me muito pouco com a comoção nacional. Acho que estamos viciados nestes momentos mediáticos que daqui a 15 anos ninguém se lembra. Por isso é que o debate sobre a ministra me mobiliza pouco. Sobretudo, o facto de o Presidente da República ter aproveitado o momento para ganhar alguma força política, demitindo uma ministra que já se sabia, pelo menos quem quis saber, que estava demitida, também não me interessa especialmente. Não acho motivante este tipo de jogo político. Interessava-me discutir o modelo de desenvolvimento que queremos ter e não parece que as pessoas queiram discutir isso.
O que é que se ganha em não anunciar a demissão de uma ministra logo que a decisão é tomada?
Entre o momento em que se decide demitir uma ministra e o momento em que é anunciada a demissão da ministra costuma passar algum tempo, não costumam passar minutos. Não tenho nenhum problema em dizer que soube que a ministra ia ser demitida antes de Marcelo Rebelo de Sousa falar e que iria ser anunciado na sexta ou no sábado. O mais normal seria ter sido anunciado no Conselho de Ministros extraordinário.
Por mais incompetente que seja um ministro, passa pela cabeça de alguém reestruturar o MAI no meio dos fogos? As pessoas já sabiam que desde Pedrógão a ministra estava demitidaO discurso de Marcelo teve então uma influência no timing do anúncio?
Provavelmente o que o discurso de Marcelo fez foi precipitar o anúncio da demissão. Ora, era tudo relativamente previsível. Que a ministra não tinha condições para ficar já toda a gente sabia. Que a ministra não podia ter sido demitida antes é de uma evidência que me espanta ouvir pessoas com responsabilidades políticas a pedir que a ministra se demitisse no verão. Por mais incompetente que seja um ministro, isso passa pela cabeça de alguém reestruturar o MAI no meio dos fogos? As pessoas já sabiam que desde Pedrógão a ministra estava demitida. Estava demitida, seguramente, depois do segundo relatório da Comissão Independente, onde lhe são atribuídas responsabilidades políticas. Acredito que foi como ela diz, que pediu a demissão várias vezes. Basta olhar para as condições emocionais e políticas que tinha para imaginar que se quis demitir. Mas é evidente que não podia sair antes do fim do verão.
Mesmo em relação ao facto de o Presidente querer que o Parlamento reafirme a confiança ou não no Governo, também o fez depois de o CDS apresentar uma moção de censura, sabendo que o Parlamento o ia fazer. As pessoas gostam. E eu também gosto, da arte de Marcelo. Marcelo deu vários chutos numa bola que já estava dentro da baliza. E gritou golo. Acho que tem talento para isso e o talento na política não é um defeito, é uma virtude.
Acho macabro um partido apresentar uma moção de censura um dia depois de os fogos estarem extintos, quando os funerais ainda nem sequer aconteceramFaz sentido a moção de censura apresentada por Assunção Cristas?
Acho macabro. Um partido para ganhar a liderança da Direita quando sabe que o PSD está num vazio de poder, e vem de uma dinâmica de vitória das autárquicas, para marcar a sua liderança da Direita, apresentar uma moção de censura um dia depois de os fogos estarem extintos, quando os funerais ainda nem sequer aconteceram.
Ainda assim, considera que a moção pode fragilizar a 'Geringonça' de alguma forma?
Não, pelo contrário.
Vai sair reforçada?
Sendo a moção apresentada, ainda por cima, pela antiga ministra da Agricultura que não fez rigorosamente nada que se conheça para melhorar a situação da reforma da floresta, sendo apresentada no momento em que foi e sendo tão evidente o objetivo político da moção de censura, vai ajudar a atual solução. A moção de censura é a melhor maneira de unir os partidos da 'Geringonça'. É um favor que o CDS fez a António Costa porque permitiu que, num momento de fragilidade, o primeiro-ministro e a 'Geringonça' se mostrassem reforçados. Depois de um momento bastante difícil para Costa, o CDS deu-lhe uma vitória garantida.
O CDS facilitou a vida à 'Geringonça' fazendo com que se reafirmasse num momento de dificuldadesFoi um autêntico tiro no pé?
É a excitação de quem acabou de ter bons resultados nas eleições e que não percebe que há assuntos em que é preciso ter pinças e que as jogadas políticas devem ser muitíssimo bem pensadas. Esta eu acho que foi muito mal pensada. O CDS facilitou a vida à Geringonça fazendo com que se reafirmasse num momento de dificuldades. E isso Jerónimo de Sousa e Catarina Martins vão ficar a dever durante muito tempo a Assunção Cristas.
Bloco e PCP quiseram tanto proteger-se do que pudesse correr mal que se protegeram do que correu bemSobre as eleições autárquicas, que leitura pode ser feita dos resultados? Poder-se-á considerar que os resultados, do PS, PCP e Bloco mostram que apenas o PS está a ganhar com a atual solução governativa?
Depois de Pedrógão, os comentadores políticos falavam que tínhamos entrado num novo ciclo político e que o PS estava em maus lençóis, mas depois teve uma vitória retumbante. Depois das eleições, passou-se a dizer que o PS iria ter [nas legislativas] maioria absoluta. E agora, depois desta tragédia, já se diz que Costa está acabado. É preciso de ter um bocado de calma a analisar os ciclos políticos e não tentar descobrir momentos históricos nos próprios dias históricos. É preciso ter calma com os futurismos.
A leitura que faço das eleições autárquicas, para além das leituras locais que são muito diferentes, é que as pessoas estão satisfeitas com a situação económica e social. Estando satisfeitas, tendem a atribuir ao Governo o resultado da sua satisfação e têm alguma razão para isso. É verdade que o Bloco e o PCP conseguiram muitas coisas, mas, não estando no Governo, é ingénuo pensar que se fica com os louros do que é bom e proteger-se, ao mesmo tempo, do que é mau. O Bloco e o PCP quiseram tanto proteger-se do que pudesse correr mal que se protegeram do que correu bem. Acho que isto não atinge tanto o Bloco. Já achava isso há um ano, que o PCP estava muito mais exposto que o Bloco.
Mais exposto como?
Primeiro, porque o PCP tem menos capacidade de adaptação, de conseguir surfar numa situação difícil, tem um barco maior que custa mais a virar a cada momento. Depois porque o eleitorado do PCP, do ponto de vista social, é o que mais tem beneficiado da reposição dos rendimentos – reformados, funcionários públicos. Portanto, é aquele que provavelmente está mais satisfeito com a Geringonça. Por outro lado, o eleitorado do Bloco é mais jovem, tem mais eleitorado do setor privado, mais eleitorado precário que ainda não sentiu de uma forma tão profunda os benefícios do que está a acontecer. Junta-se a isto o facto de PCP e o Bloco terem um discurso - mais o PCP – contrariado.
O que quer dizer com discurso "contrariado"?
Enquanto o seu eleitorado está satisfeito com esta solução, os dois partidos quase que pedem desculpa por estarem nesta solução. Estão sempre a dizer que este não é o seu Governo. Ou seja, a mensagem que passaram aos seus eleitores faz com que estes não lhes atribuam, injustamente, os bons resultados económicos e sociais que este Governo está a conseguir. Têm responsabilidades mas parecem não querer assumi-las. A única forma de as assumirem por completo era entrarem para o Governo e isso, infelizmente, não vai acontecer.
O que me está a assustar é o que está a acontecer, sobretudo, do lado do PCP. Enquanto o Bloco decidiu assumir de uma forma mais clara essa solução - em Lisboa, por exemplo, disponibilizou-se para construir uma geringonça - partes do PCP não. As greves que foram anunciadas e a manifestação por parte da CGTP, que são deslocadas no tempo. Não é fácil iniciar um processo de luta na Função Pública no preciso momento em que as carreiras são desbloqueadas. Ou seja, temo que o relógio, o alarme da Soeiro Pereira Gomes tenha soado na Vitor Cordon e acho que isso enfraquece o movimento sindical. É demasiado evidente que foi agenda eleitoral do PCP que determinou a estratégia de alguns setores da CGTP.
Acho preocupante e mau para o país que os sindicatos não tenham autonomia face ao Governo. Acho bem que os sindicatos lutem contra este Governo, que lutem contra as autarquias do PCP quando estão em causa direitos dos trabalhadores. O que me faz confusão é que não o façam durante dois anos quando julgam que o PCP está a tirar vantagens da 'Geringonça' e mudem de estratégia no dia em que se percebe que o partido está a passar por dificuldades. Precisamos de um movimento sindical forte e autónomo das estratégias eleitorais dos partidos. Em relação ao Bloco, apesar de tudo, acho que tem uma situação mais confortável. Se houver um novo ciclo político, veremos como é que os partidos estão nesta situação.
É trágico que neste OE os únicos trabalhadores maltratados sejam os dos recibos verdes. Os falsos recibos verdes são o faroeste das relações laboraisQue arestas da 'Geringonça' ainda estão por limar?
Não são arestas. É um diamante, uma pedra em bruto. Não há um programa comum. O programa que existia era de urgência que tinha a ver com a reposição de rendimentos e que foi, na realidade, praticamente cumprido. Desde há um ano que vivemos numa situação um pouco estranha em que o PCP e o Bloco são uma espécie de oposição construtiva que mantém o Governo em funções. E isso não é saudável. Deveria haver um novo acordo – há coisas em que sabemos que PS, BE e PCP nunca chegarão a acordo, mas há muitas em que podem chegar.
Há, diria, três áreas muito sensíveis. Uma tem a ver com a questão do trabalho, não tem a ver com Orçamento, sobretudo com a contratação coletiva. Acabar com a contratação coletiva é acabar com o sindicalismo e com a negociação no setor privado. Podemos decidir que o futuro do país não são salários baixos e que temos de combater a desigualdade que, depois, se não permitimos que haja os instrumentos de negociação para que isso também aconteça no setor privado, na realidade estamos só a mexer no setor público, nos impostos e nos reformados. Ora, nesta área o PS não quer mudar e não querendo mudar acho que trai o espírito da 'Geringonça'. Não há nenhum entendimento à Esquerda que não passe ou não tenha de passar pela questão laboral, não pode haver um entendimento à Esquerda que não tenha a questão da dignidade do trabalho e a redistribuição dos rendimentos como uma questão central na sua política.
A outra área tem a ver com a precariedade e os recibos verdes. É trágico que neste OE os únicos trabalhadores maltratados sejam os dos recibos verdes, é um péssimo sinal. Vão ficar a pagar muito mais, vão ter o maior aumento de impostos da sua história. Este Governo mexeu na precariedade na Administração Pública e ainda não fez rigorosamente nada na precariedade do setor privado. Sobretudo os falsos recibos verdes são o faroeste das relações laborais. Há uma parte muito grande da população para quem estas alterações que vão sendo feitas, todos os direitos, não existem. Isto cria uma clivagem no país e a sensação de dois mundos que não se tocam e legitima-se o discurso da Direita sobre um setor público protegido.
Depois, a questão do investimento público. Vai haver mais investimento público. O que me preocupa é que o Bloco e o PCP não participem nesse debate. Comportam-se um bocado como partidos reivindicativos em relação a direitos das pessoas, e bem, mas Bloco e PCP não são sindicatos, são dois partidos. Para lá dos direitos das pessoas, Bloco e PCP têm que se preocupar com o futuro do país. Não há programa de Esquerda para a mudança na nossa economia que não se concentre no debate sobre onde é que vai haver investimento público e para quê. Gostava de ver a 'Geringonça', e não exclusivamente o Governo, motivada para fazer esse debate. Bloco e PCP ainda não deram esse passo de responsabilização.
Estes são exemplos de como a 'Geringonça' não tem arestas para limar, é em si uma grande aresta que funciona porque, enquanto em toda a Europa assistimos a uma regressão civilizacional e perda de direitos, Portugal é o único país onde ou estabilizamos ou evoluímos.
O diabo não parece que venha, a Direita, à falta do diabo, agarrou-se ao fogo, mas não chega. O PSD vai estar fechado para remodelação e não há nenhuma razão para que a 'Geringonça' falheE quem é que poderá ‘saltar fora’ primeiro desta solução governativa?
Ninguém. A 'Geringonça' vai durar até às próximas eleições legislativas, a não ser que aconteça qualquer coisa na Europa, a Geringonça vai manter-se. O diabo não parece que venha, a Direita, à falta do diabo, agarrou-se ao fogo, mas não chega. O PSD vai estar fechado para remodelação e não há nenhuma razão para que a 'Geringonça' falhe. E toda a gente sabe que o primeiro a largar a corda sofrerá as consequências.
Santana Lopes tem melhores condições para vencer a liderança, o que será um sossego para António Costa. É um caso extraordinário do eterno derrotado em quem as pessoas veem uma excelente pessoa para vencerNessa remodelação do PSD, Rui Rio ou Santana Lopes? Quem dos dois está em melhores condições de pegar no partido?
Se não tivesse onde gastar o dinheiro, apostava na vitória interna de Santana Lopes. Tem mais ligação à estrutura, aos interesses dentro do PSD, mobiliza mais facilmente os Relvas desta vida. Santana tem melhores condições para vencer a liderança, o que será um sossego para António Costa. Santana Lopes é um caso extraordinário do eterno derrotado em quem as pessoas veem uma excelente pessoa para vencer. Perdeu três eleições internas dentro do PSD, quase todas de forma humilhante. Deu uma maioria absoluta ao PS no país. Na realidade, só ganhou uma vez uma eleição, em Lisboa, para João Soares. E quem acompanhou de perto sabe que foi João Soares que a perdeu. Santana será uma escolha que funcionará dentro do partido. Não mexerá muito nas estruturas, herdará as de Passos. O conservadorismo aqui, mesmo quando se está mal, costuma funcionar.
Rui Rio é uma incógnita para o PSD e, naturalmente, causa mais receios. Para o país também é uma incógnita. Acho que tem preocupações ao centro político com um perfil autoritário, muito mais autoritário que Cavaco Silva. Rui Rio tem mesmo tiques de tiranete e, quem acompanhou o que ele fez no Porto, sabe-o. Se ignoramos o que é bom para o país, é o melhor candidato para o PSD porque, pelas caraterísticas que tem, tem um discurso que chega mais facilmente a um eleitorado cansado, desiludido, até a um eleitorado de Esquerda. É mais transversal e, portanto, um maior risco para António Costa.
E que efeitos terá esse maior risco na atual solução?
Tudo o que seja um risco para António Costa, é bom para a 'Geringonça'. Porque retira a autoconfiança ao PS e obriga-o a ficar mais dependente do PCP e do Bloco. Tudo o que signifique manter o equilíbrio instável na 'Geringonça' acho que é bom para o país, porque significa que teremos um Governo mais ancorado à Esquerda.
Nesse ponto de vista, o desafio de Rui Rio é capaz de ser preferível para o país. O debate político é que vai ser deprimente no PSD. Vai-se discutir táctica, vai-se discutir fait-divers – aquilo em que Santana Lopes é especialista. Rui Rio também não é propriamente uma pessoa com uma enorme elegância programática. Vamos ter aquela política levezinha, que é boa para fazer notícias, mas que não é muito boa para discutir aquilo de que o país precisa. Se me dissesse que Santana era de Esquerda, eu acreditava [risos], se me dissesse que era da Direita conservadora, também acreditava. Porque ninguém lhe conhece grandes convicções políticas. Tem boas jogadas, diz umas coisas. Costa merecia do lado do PSD um político igualmente tenso. O problema é que o PSD tem uma crise de quadros. Quando um dos grandes ideólogos do PSD é Marques Mendes, estamos conversados. Hoje o CDS tem mais inteligência política. Os jovens mais à Direita, mais interessantes, tendem a ir para o CDS e não para o PSD.
O PSD é um partido de caciques. Um partido que se está a ruralizar, num país que não tem mundo ruralPor que razão está isso a acontecer?
Porque o PSD é um partido de caciques. Um partido que se está a ruralizar, num país que não tem mundo rural. Está a perder força nos centros urbanos e não tem uma marca política clara. O PSD sempre foi uma coisa estranha, um objeto estranho no conjunto da Europa. Chama-se Partido Social Democrata mas que é um partido de centro Direita – coisa que não acontece em mais nenhum país europeu. Olhamos para o PSD hoje e não temos facilidade em encontrar quadros políticos que possam vir a ser líderes e não só. Desse ponto de vista, é um partido muito frágil e não sei quanto tempo demorará a reencontrar-se.
O PSD tem o seu panteão político cheio de derrotados. É o Santana Lopes, o Marques Mendes. Figuras que foram derrotadas várias vezes e que são as referências no partido. Não que a derrota seja uma vergonha. Só perde quem tenta Mas é um bocado estranho. A última figura de referência que o PSD teve foi Cavaco Silva.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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