"Se houver eleições antecipadas, creio que ganhará o não à independência"
A “cristalização de posições” levou a um impasse na Catalunha. Responderá a Generalitat com a efetiva declaração unilateral da independência à investida de Madrid? Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Luís Moita, especialista em Relações Internacionais, traça possíveis cenários para o futuro do país vizinho.
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Mundo Luís Moita
O governo espanhol vai reunir-se este sábado para dar início ao processo que desembocará na ativação do artigo 155.º da Constituição, por forma a retirar a autonomia à região da Catalunha. As atenções estão agora divididas entre Madrid e a Generalitat, que se espera que venha a declarar sem reservas a independência unilateral daquela região autónoma.
Entretanto, Carmen Calvo, do PSOE, confirmou na sexta-feira que o seu partido chegou a acordo com o executivo de Rajoy para marcar novas eleições na Catalunha. Poderá ser esta a primeira medida depois de acionado o artigo 155.º.
Desde o referendo de 1 de outubro, que deu vitória à autodeterminação da Catalunha, que se vive uma situação de impasse. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Luís Moita, especialista em Relações Internacionais, admite estar surpreendido com a "incapacidade" de criação de "pontes de diálogo entre Madrid e Barcelona".
No entender do professor catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa, é expectável que o centralismo de Espanha prevaleça no imediato, mas "o horizonte, a prazo, será provavelmente a independência" da Catalunha.
Faz impressão como é que compatriotas, pessoas civilizadas, não tiveram capacidade de estabelecer diálogo entre siComo é que olha para a situação que se vive na Catalunha?
Estamos perante uma contradição invulgar, um conflito institucional de dimensão fortíssima. O governo de Madrid apronta-se, praticamente com o apoio de todos os partidos nacionais, a aplicar o artigo 155.º da Constituição espanhola, que limita a autonomia do governo catalão. É uma medida de enorme gravidade, que se aplica pela primeira vez na história, e de consequências imprevisíveis. Por seu lado, o líder da Generalitat está muito pressionado pela necessidade de diálogo que tem tentado promover de todas as maneiras e pelo setor radical dos independentistas, que instiga com particular veemência a declaração imediata da independência.
O que surpreende em tudo isto é a total ausência de pontes de diálogo. Não há nenhuma ponte entre Barcelona e Madrid em situações críticas como esta. Faz impressão como é que compatriotas, pessoas civilizadas, não tiveram capacidade de estabelecer diálogo entre si. Isto significa que há uma insuspeita cristalização de posições.
Que argumentos prevalecem em cada um dos lados?
Do ponto de vista de Madrid, os partidos nacionais sabem que não podem abrir mão, nem sequer ensaiar qualquer tipo de abertura, porque receiam perder o eleitorado espanhol. A generalidade da Espanha não quer perder a Catalunha. O PSOE, o Podemos e os Cuidadanos opõem-se em absoluto a qualquer cedência. Do outro lado, assistimos à intransigência da Catalunha, que se explica pela sedimentação, arrastada no tempo, de sentimentos de indignação e de frustração. Estes foram-se acumulando de tal maneira que levaram a um extremar de posições porventura despropositado.
Portanto, estamos nesta incapacidade de encontrar pontes que permitam entendimentos, nem que seja por cedências mútuas ou soluções alternativas. Estou a referir-me claramente ao estado federal, como algo que está no horizonte de muitos intervenientes.
Se proclamar a independência, a Catalunha fa-lo-á fora da lei e será objeto de repressãoMadrid decidiu avançar com o fim da autonomia da Catalunha, mas esta região anseia tanta autonomia que ameaça mesmo tornar-se independente. O que vai prevalecer?
Essa é uma pergunta impossível de responder numa previsão a prazo. Penso que, no imediato, vai prevalecer o ponto de vista do governo de Madrid. Se proclamar a independência, a Catalunha fa-lo-á fora da lei e será objeto de repressão. A polícia nacional intervirá contra os Mossos d’Esquadra ou acima dos Mossos d’Esquadra, provavelmente haverá prisões ou julgamentos dos responsáveis políticos. O governo de Madrid está numa posição de força e será talvez um pouco quixotesca a proclamação da independência da Catalunha.
No entanto, julgo que estão desencadeadas dinâmicas sociais que a prazo serão algo de irreversível, cujo horizonte será provavelmente a independência. Não sei em que situação, nem em que quadro, nem quanto tempo isso demorará, mas são muito fortes as dinâmicas sociais que esta crise alimentou no sentido da independência daquela região.
A Catalunha foi muito reprimida durante o período do franquismo. Poderemos vir a assistir a uma situação semelhante?
Não creio que se volte para trás. Durante o franquismo, até a própria língua catalã era proibida, não havia qualquer autonomia regional nos termos que a nova Constituição espanhola de 1978 permitiu. Voltar atrás parece-me impensável, porque apesar de tudo há uma matriz democrática e europeia na conduta do Estado espanhol, mesmo que o atual tenha uma política de direita. A repressão que poderá haver não terá analogia com os tempos anteriores.
A autodeterminação está para os povos como a liberdade está para os indivíduosUm povo pode declarar a independência de forma unilateral?
Há uma questão fundamental, de base. A autodeterminação está para os povos como a liberdade está para os indivíduos. Há um princípio universalmente aceite pelas nações de que os povos têm direito a autodeterminar-se. Recentemente, houve um referendo no Curdistão iraquiano sobre a autodeterminação deles. Há uma espécie de direito histórico do povo curdo a ter a sua pátria, que seria o Curdistão. Como há antecedentes da Escócia, do Quebec… Há situações, não apenas coloniais, em que é aceite pela civilização que os povos possam seguir o seu destino. Porém, temos de pensar que a liberdade está sempre condicionada à lei. E, portanto, da mesma maneira, também há-de haver algumas regras para o exercício da autodeterminação.
O problema é que a Constituição espanhola impede a autodeterminação da Catalunha.
A Constituição impede-a, mas há aqui duas legalidades em confronto. Há a legalidade constitucional espanhola e há uma suposta fundamentação legal da vontade popular catalã. Quando estas entram em confronto, a situação torna-se muitíssimo difícil. Por isso, o ideal seria haver entendimentos para que ela se pudesse exprimir num quadro de legalidade mutuamente e internacionalmente reconhecida.
A verdade também é esta: inúmeros avanços históricos se fizeram contra a legalidade estabelecida. O 25 de Abril em Portugal foi um ato ilegal e um golpe de Estado contra o regime vigente. Sem querer comparar, notemos que houve muitos momentos históricos de rutura. Isso não pode ser ignorado.
Mas há uma outra questão de fundo. Vivemos um tempo de soberanias partilhadas no quadro europeu, em que a independência dos povos está marcada pela interdependência. Constituindo-se como uma espécie de poder supranacional, a União Europeia desvaloriza, de forma subentendida, os estados-nações e promove novas entidades políticas de âmbito regional, incentiva a regionalização dos países, gosta dos estados federais e incrementa euro-regiões. Que sentido faz uma região como a Catalunha proclamar a sua independência num momento em que os estados-nações estão fragilizados, em que as soberanias tradicionais já não correspondem à situação atual? Nesta geometria variável, eu acho que é duvidoso que faça sentido multiplicar os estados nacionais, como é o caso da Escócia e da Catalunha.
Será saudável haver deliberação popular e tirar a prova dos nove através de eleições antecipadas Irá Carles Puigdemont resistir à pressão de Madrid ou corre o risco de cair?
Muitos consideram que a única saída airosa para todas as partes é o governo da Catalunha cair e convocarem-se novas eleições regionais, que servirão para tirar a limpo se houve mudanças de opinião. Há incertezas sobre qual é a resultante deste processo que começou com o referendo. Será saudável haver deliberação popular e tirar a prova dos nove através de eleições antecipadas.
Estou convencido de que o independentismo não é maioritário na CatalunhaSe a queda do governo vier a acontecer, qual o cenário político mais provável (mais ou menos pro-independência)?
Eu estou convencido – vale o que vale e é um sentimento algo difuso – de que o independentismo não é maioritário na Catalunha. Há dias ouvi uma estatística que me impressionou, segundo a qual 70% dos atuais habitantes da Catalunha têm a mãe ou o pai originários de fora daquela região. Ou seja, [Barcelona] é hoje uma cidade muito cruzada por movimentos que ultrapassam fronteiras. A Catalunha está integrada numa euro-região, cuja capital é Toulouse, que apanha o Midi-Mediterrâneo e os Alpes Franceses. Aquela região está no epicentro do cruzamento de muitas interações. Estou convencido de que, se houver um referendo ou eleições a que os partidos se apresentem com programas políticos claros a esse respeito, ganhará o não à independência. Isto é um palpite meu que não está comprovado.
Há valores imateriais, não contabilizáveis, que pesam muitíssimo nessas decisões
O que acontece se os catalães se tornarem independentes? Têm mais a ganhar ou a perder?
Essa é uma pergunta de difícil resposta. Se há bastantes forças a desejar a independência, presumem que têm algo a ganhar com isso. Mas nem sempre os cálculos se podem fazer na base do custo-benefício, como se se tratasse de um negócio. Há fatores de natureza histórica, cultural, de identidade do povo, da sua língua e determinação de futuro, que são valores imateriais, não contabilizáveis, que pesam muitíssimo nessas decisões.
No caso de ser proclamada a independência, a Catalunha sai da União Europeia?
O procedimento previsível seria candidatar-se como um novo estado-membro, a não ser que houvesse, a título excecional, outra solução qualquer. Que eu saiba, não há um procedimento-padrão para um caso como este, pelo que não sei o que aconteceria ao certo. Tratando-se de um novo estado-membro, há-de ter os procedimentos normais de um pedido de adesão. Se, uma vez estado independente, a Catalunha se limitasse a pedir a Bruxelas a sua integração na União Europeia, Espanha poderia vetar essa admissão. Os responsáveis não podem deixar de ter ponderado isto.
Pode estabelecer-se um termo de comparação entre o que está a acontecer na Catalunha e o Brexit?
Sim, vivemos uma fase na nossa história em que predominam bastantes forças centrífugas em detrimento da unidade do estado-nação. O estado-nação está em crise.
A fórmula do estado federal poderia ajudar a limar arestas e a compatibilizar antagonismosEspanha abre um precedente perigoso que pode estender-se a outra regiões autónomas?
É possível. Sabemos que há movimentos no quadro do estado espanhol de fortíssimo pendor nacionalista. O caso limite é o do País Basco, que tem uma história própria. Não tem uma língua latina, ao contrário dos outros povos. Além disso, há um nacionalismo galego relativamente forte, mas a Galiza hesita sempre entre manter-se mais próxima de Espanha ou mais próxima de Portugal. Falam-se ainda de episódios como a independência de Andaluzia e da Extremadura.
De que forma Portugal deve acompanhar a luta pela independência na Catalunha?
É curioso como, do ponto de vista dos portugueses, se encara esta situação da Catalunha e do regionalismo das regiões espanholas. Eu creio que há duas correntes. Uma é bastante contrária a este tipo de fenómenos, argumentando que para Portugal é bom que haja só depois estados peninsulares. Creem que, se a Catalunha for independente, Portugal passa a terceiro lugar nos estados dos países ibéricos, o que seria uma depreciação do nosso país no panorama internacional. Mas há também quem diga que a independência da Catalunha fragilizaria o centralismo de Madrid e isso favoreceria Portugal. São discussões apenas na ordem da previsão. Não creio que Portugal deva ter uma posição determinada num dos sentidos. Mas a posição oficial portuguesa é inequívoca no sentido de não ingerência nos assuntos espanhóis e de discreta oposição à independência da Catalunha.
A não se concretizar a independência, é viável que o povo catalão se mantenha contrariado na nação espanhola?
É difícil. Teria de haver cedências mútuas e Madrid teria de dar algumas contrapartidas à Catalunha, à volta da tal mesa que faz falta. Se fosse claro que a Espanha gostaria de se conservar unida, os espanhóis teriam de fortalecer a coesão na diversidade. Quem sabe, a fórmula do estado federal poderia ajudar a limar arestas e a compatibilizar antagonismos.
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