"Utilizamos a mesma água para beber e para a sanita. É um luxo"
Que responsabilidade têm as alterações climáticas sobre os incêndios,? E de que forma nos devemos adaptar a um planeta cada vez mais quente e seco? O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) em busca de respostas.
© Global Imagens
País Filipe Duarte Santos
Domingo, 15 de outubro. Em pleno outono, Portugal assistiu ao pior dia do ano em matéria de incêndios florestais. As temperaturas altas e seca extrema precipitaram o país para uma nova tragédia: 44 pessoas perderam a vida em resultado dos 500 fogos que lavraram com especial incidência no Norte e Centro.
Filipe Duarte Santos, professor da Faculdade de Ciências na Universidade de Lisboa, explica que a dimensão dos incêndios se deve indiretamente às alterações climáticas, mas aponta culpas à mão criminosa pelo elevado número de ignições registadas em Portugal.
O especialista em alterações climáticas fala ainda dos furacões que atravessam o Oceano Atlântico e assolam as Caraíbas, dizendo que “chegarem à costa da Europa é um cenário, por enquanto, extremamente improvável”. O presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) tece também algumas considerações sobre o ceticismo de Donald Trump em relação ao aquecimento global e descansa os mais apreensivos: Com uma transição para energias renováveis, é possível controlar as alterações climáticas.
Podemos atribuir as tragédias dos incêndios que têm assolado Portugal às alterações climáticas?
Não, de modo nenhum. O que acontece é que as alterações climáticas estão, lentamente, mas de uma forma que já é observável, a tornar o nosso clima mais quente e mais seco. Isso são fatores que aumentam o risco meteorológico de incêndios. Se uma pessoa tentar incendiar um pinhal num dia em que choveu, no inverno, tem uma grande dificuldade em fazê-lo. Mas se tentar atear fogo num dia em que o país está em seca, em que as temperaturas são muito elevadas, existe muita matéria combustível e não chove há semanas, vai ter um sucesso enorme. Basta lançar um fósforo para causar um grande incêndio.
Quer isso dizer que não há uma influência direta, mas indireta?
Exatamente. As alterações climáticas estão a aumentar o risco meteorológico de fogo florestal, mas há que considerar a mão-humana. Portugal é, de acordo com vários estudos, o país da União Europeia onde o número de ocorrências ou ignições é mais elevado. Não está suficientemente esclarecido quantas destas ignições são inadvertidas (resultam, por exemplo, de queimadas) e quantas são premeditadas e resultam de fogo-posto. Essa caracterização não está a ser feita no nosso país.
É provável que as secas se tornem cada vez mais frequentes e intensas
Como é que se justificam as temperaturas elevadas que se fizeram sentir em pleno outono?
Tem muito provavelmente a ver com as alterações climáticas, que estão a tornar o clima do planeta mais quente. A temperatura média global da atmosfera à superfície está a aumentar – já aumentou um pouco mais de 1º Celsius desde o período pré-industrial – e as ondas de calor são mais frequentes em todo o mundo. É isso que se tem observado também em Portugal. As séries de temperatura que são obtidas nos postos meteorológicos revelam que há uma tendência para temperaturas mais elevadas. Foi o caso dos fogos que se deram em junho, no final da primavera, e em outubro, já no outono, ambos com consequências dramáticas.
É previsível que, nos próximos anos, os picos de calor comecem a registar-se mais cedo e terminem mais tarde?
Sim, é muito provável. O período do ano em que o risco meteorológico de incêndio é elevado deixou de ser apenas o verão e começou a ocorrer no fim da primavera e a estender-se ao outono.
Grande parte do território está em seca severa. Corremos o risco de ficar sem água para subsistir?
Creio que não, porque Portugal é um país com uma economia avançada, faz parte da União Europeia e é das regiões mais industrializadas do mundo. Tem condições sociais e económicas relativamente elevadas quando comparadas com outros locais a nível mundial, sobretudo na África e na Ásia. Portanto, apesar das dificuldades, temos capacidade de nos adaptar em termos de recursos hídricos a um clima mais seco e quente. É provável que as secas se tornem cada vez mais frequentes e intensas.
De que forma o país se pode preparar para lidar com esta realidade?
Uma das formas de nos prepararmos é consumirmos menos água. O consumo de água per capita em Portugal tem baixado. Outro aspeto importante é que haja menos perdas de água nas redes de distribuição. E há outras coisas a fazer, como seja criar outro circuito de água além da que vem das nossas torneiras e que temos o privilégio de beber com segurança. O facto é que utilizamos a mesma água para beber e para a sanita. Isso é um luxo se tivermos situações de escassez de água, como está já a acontecer em algumas localidades do país, que têm sido abastecidas por camiões cisterna. Temos de adotar o comportamento e este tem de ter reflexos na lei. Devemos fazer a reutilização da água para nos adaptarmos a circunstâncias climáticas novas.
Se não dermos valor económico à floresta, a probabilidade de haver fogos aumenta
De que forma se pode adaptar a floresta portuguesa para que mitigue o efeito de estufa e não represente riscos em matéria de incêndios?
No passado, havia em Portugal – sobretudo no Norte e Centro – uma relação muito estreita entre a agricultura e floresta. A floresta tinha valor para as pessoas que viviam da agricultura no Interior do país. O que se passou foi que nas últimas décadas houve uma migração dessas pessoas para as cidades ou para fora do país. A desertificação desconectou a agricultura - que passou a ter uma expressão muito reduzida - da floresta. Esta deixou de ter um valor económico significativo e ficou mais sujeita a fogos florestais, porque é menos protegida. Há que ter em conta que a maior parte da floresta portuguesa é privada e está profundamente fragmentada. Em muitos casos, nem sequer lhe é conhecido o cadastro. Se não dermos valor económico à floresta, a probabilidade de haver fogos florestais aumenta.
Nas últimas semanas, uma dezena furacões passou pelo Atlântico e assolou as Caraíbas. O furacão Ophelia foi uma amostra do risco que a Europa corre no futuro?
Creio que não. Os furacões no Atlântico Norte nascem ao largo do Oeste de África, na região de Cabo Verde, e depois ganham intensidade e atingem o Golfo do México. Muitos deles penetram em terra nos Estados Unidos e no México. Alguns vão ao longo da costa Leste dos EUA e infletem para Oeste. O que se está a observar é que as trajetórias dos furacões no Atlântico Norte têm tendência a deslocarem-se para Norte e para Leste, mas chegarem à costa da Europa é um cenário, por enquanto, extremamente improvável.
O furacão Ophelia foi uma exceção?
Não. Quando chegou às costas da Europa Ocidental, o furacão Ophelia já era uma tempestade não tropical. Teve na zona dos Açores uma categoria 3, ainda enquanto ciclone tropical, mas a partir daí os ventos foram perdendo intensidade.
Ainda assim, provocou mortes na Irlanda.
Há muitas tempestades que não são tropicais que têm lugar na costa ocidental da Europa. Os ciclones tropicais têm diâmetros na ordem dos mil quilómetros e têm uma energia que não é comparável aos ciclones que assolam a costa ocidental da Europa.
Com uma transição para as energias renováveis, conseguimos controlar as alterações climáticas
O perigo da ocorrência de furacões como os que assolam as Caraíbas torna-se maior com o passar dos anos?
Aquilo que se está a observar, devido às alterações climáticas, é um número crescente de furacões com ventos muito fortes (os de maior intensidade e que tem associada maior quantidade de precipitação). O número total aparentemente não está a variar muito, mas a percentagem de furacões muito intensos está a aumentar.
Isto representa um risco acrescido muito grave para as populações. A razão por que os ciclones intensos estão a tornar-se mais frequentes tem a ver com o principal motor da energia de um ciclone tropical, que é a temperatura superficial da água do mar. Devido às alterações climáticas, a temperatura superficial do oceano está a aumentar e o ciclone tropical recebe essa energia térmica e converte-a em energia cinética.
As alterações climáticas são já um caminho sem retorno?
Depende muito da transição energética que for ou não feita à escala global. Atualmente, 80% das fontes primárias de energia são os combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural). Para combater as alterações climáticas e diminuir de forma drástica as emissões de dióxido de carbono, é necessário passarmos a ter sistemas energéticos mais eficientes e usarmos energias renováveis. Esta transição não é fácil, mas é possível. Se conseguirmos fazê-la, conseguimos controlar as alterações climáticas. Porém, se a transição se fizer muito lentamente, estas irão agravar-se ao longo das décadas.
O mundo será capaz de se adaptar tão rapidamente?
Os países com economias avançadas têm mais facilidade de adaptação do que os países pobres. Nestes últimos, sobretudo os que dependem muito da agricultura – um dos setores mais vulneráveis às alterações climáticas – as pessoas estão realmente em risco. Também são vulneráveis as ilhas baixas do Oceano Índico (Malvinas, Kiribati, Marshall), os países com costas baixas extensas e os países menos desenvolvidos da África e da Ásia. Se não controlarmos este problema, a vulnerabilidade pode gerar um número bastante maior de refugiados, que serão forçados a sair dos seus países.
Políticas de Donald Trump são perigosas e deploráveis
Os EUA, mesmos sendo dos maiores poluidores do planeta, saíram do acordo de Paris. Que perigos advém desta decisão?
Eu diria que é uma decisão surpreendente, se bem que os EUA só vão poder sair praticamente no final do mandato do atual governo. Mas há muitos estados norte-americanos que estão perfeitamente conscientes das alterações climáticas e que têm políticas de mitigação, como é o caso emblemático da Califórnia. Esses estados vão continuar a combater as alterações climáticas, a procurar fazer uma transição energética dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. E, felizmente, depois do anúncio do governo norte-americano, os outros países que ratificaram o acordo de Paris mantiveram o seu compromisso.
Personalidades como Donald Trump contribuem para a desvalorização do aquecimento global?
Sim. Nos EUA, sobretudo no Partido Republicano, há uma tendência para o ceticismo em relação às alterações climáticas. Consideram que a transição energética prejudica a economia do país, para a qual é essencial a indústria dos combustíveis fósseis. Este raciocínio é muito facilmente contestável, até porque, fazendo a transição energética no domínio das energias renováveis, também se criam empregos. Continuando com esta política de negação das alterações climáticas e não contribuição para o seu combate, põe-se em risco não só os Estados Unidos, que têm uma grande capacidade de se adaptar, mas sobretudo o resto do planeta. Revela uma falta de solidariedade muito grande para com os países menos desenvolvidos.
O mundo pode ressentir-se com políticas deste tipo ou opiniões como a do presidente norte-americano não têm potencial de contágio?
Penso que as políticas de Donald Trump têm influência. Do ponto de vista ambiental, são perigosas, indesejáveis e até mesmo deploráveis. Os governos nas democracias são substituídos pelo processo democrático. Vamos esperar que isso também aconteça nos Estados Unidos e vamos, tanto quanto possível, minimizar os efeitos da opinião que esta governação tem sobre as alterações climáticas.
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