"Quando ganhei a 1ª estrela perguntavam-me se tinha a ver com pneus"
Conhecido por praticamente todos os portuguesas, seja pelos pratos, pelas estrelas Michelin ou pelas participações na televisão, o chef Cordeiro é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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Lifestyle Chef
"Não há nenhum cozinheiro que seja bom cozinheiro se não gostar de comer". A frase é do chef José Cordeiro, confesso amante de comer e incapaz de viver sem cozinhar. Para ele, os cozinheiros têm de gostar de comer porque só assim conseguem gravar os paladares no cérebro e criar os seus próprios pratos.
Entre os vários restaurantes que dirigiu viu dois receberem estrelas Michelin, o importantíssimo reconhecimento que na altura poucos sabiam o que era. “Quando ganhei a primeira estrela Michelin, em 2004, ninguém sabia o que é que isso era, até me perguntavam se tinha a ver com pneus”.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto falou sobre a sua carreira, os seus projetos e paixões, a importância das estrelas Michelin, mas também sobre como Portugal ainda não conseguiu ‘exportar’ a sua fantástica gastronomia.
Quando é que nasceu a sua paixão pela cozinha?
Aos oito anos de idade já fazia bolinhos de bacalhau - o que em Lisboa se chamam pastéis de bacalhau - e rissóis e croquetes. Mas vem muito da minha mãe. Comecei a aprender a cozinhar mais porque os meus pais saíam para Aveiro e para Lisboa - isto já cá em Portugal, pois viemos de Angola quando eu tinha uns oito anos. Fomos corridos de lá para fora – por causa dos caixotes que chegavam - coisas da vida dos ‘transtornados’, como nós costumamos chamar – e eu punha-me em casa a experimentar fazer coisas para depois eles provarem. Na altura não sabia fazer mais nada, mas tinha aquela curiosidade para fazer e para comer, porque sempre gostei de comer.
Em relação a Angola, que memórias traz em termos de paladares?
Agora tenho três restaurantes em Luanda. Mas de Angola sempre trouxe os paladares da muambada e do funge (pirão) e do folar de Páscoa que a minha mãe fazia. Aquele folar à moda de Bragança, com carnes. A minha mãe fazia o folar e oferecia ao padre, ao polícia, etc, na altura da Páscoa. Era tradição...
Uma estrela Michelin para um chef de cozinha é como um Óscar para um atorJá recebeu duas estrelas Michelin, uma no restaurante da Casa da Calçada, em Amarante, e outra no restaurante Feitoria, do Altis Belém, em Lisboa, o que é esta distinção significa para si?
As estrelas Michelin são muito importantes, no fundo, para nos satisfazer um bocado o ego. Uma estrela Michelin para um chef de cozinha é como um Óscar para um ator. Na gastronomia a nível mundial é o prémio mais importante que existe. Eu ganhei a primeira e abri o caminho para aquilo que depois se veio a suceder em Portugal. Ganhei a primeira estrela em 2004, na Casa da Calçada, e em 2011 no Feitoria. Não é fácil. É um grau de exigência muito grande. Os produtos têm de ser de máxima qualidade.
Há pessoas que andam enganadas, porque pensam que um restaurante com comida tradicional não pode ganhar uma estrela Michelin. Pode ganhar uma estrela Michelin, desde que tenha qualidade. Não precisa de ser cozinha criativa, tem é de ter qualidade. E essa qualidade tem de ser sempre igual. Portanto, hoje não pode ser muito bom e amanhã não prestar. Tem de haver uma responsabilização. Era assim que devia ser tudo, mas às vezes corre mal.
Espera ganhar a terceira?
Espero ganhar a terceira, em qual deles não sei. Venha para onde vier, é bom. Neste momento estou mais no Blini, em Vila Nova de Gaia. É uma marisqueira criativa e está a correr muito bem. Neste momento vou uma vez por mês a Lisboa, mas continuo a ter o meu espaço no Terreiro do Paço [Bacalhau na Praça by Chef Cordeiro], dedicado ao bacalhau – tem só dois ou três pratos de carne – que também está a correr muito bem.
Recentemente falou-se muito da histórias de um chef que entregou a sua estrela Michelin porque precisava de liberdade. Como é que vê esta questão das estrelas poderem tirar liberdade e das pessoas que abdicam delas?
Não gosto muito de falar de casos de colegas, seja em Portugal ou lá fora, mas como é natural vou lendo notícias. Eu rio-me um bocado disto tudo, porque acho que para qualquer profissional que ama e tem paixão por aquilo que faz ganhar uma estrela Michelin é importantíssimo. Quando dizem que não, eu rio-me, porque acho que nós devemos ser coerentes e ter noção do que andamos a fazer. A verdade é só uma, independentemente do chef A ou B, o Guia Michelin vai continuar a existir e a ter muita força a nível mundial. Eu ganhei duas, mas tenho a certeza que tive sempre toda a liberdade e continuo a ter. Não estou nada preocupado.
Já há muitos anos tive um inspetor do Guia Michelin que me disse: “Cordeiro, aquilo com que te tens de preocupar ao nível do Guia Michelin é: não tens de servir o Presidente da República muito bem e o trolha muito mal, tens de servir toda a gente muito bem”. Portanto, se o trolha entrar no meu restaurante, quiser jantar e tiver dinheiro para pagar, eu tenho de o servir conforme sirvo o Presidente da República, é igual. Nós temos de ter um tipo de serviço e temos de ser coerentes com aquilo que fazemos, temos de ser honestos.
Acho que o mais importante no meio disto tudo é a honestidade, e a minha honestidade é esta: não vou entregar estrelas nenhumas, se me perguntarem diretamente se quero ganhar a terceira, claro que digo que quero, não sou hipócrita. Eu estou a trabalhar porque quanto melhor eu trabalhar nos meus espaços, melhor os clientes são servidos. Isto é um negócio. Nós trabalhamos para ganhar dinheiro, a estrela é um reconhecimento extra. Eu sempre fui um homem feliz na cozinha, sempre, toda a minha vida. Não é por ter estrelas ou não. E dizem que é preciso gastar muito dinheiro no restaurante para ter estrelas, e tal, isso é tudo conversa.
Cada vez é mais difícil encontrarmos pessoas que tenham a paixão pela cozinhaQuais são as grandes dificuldades que enfrenta enquanto chef?
Todos os restaurantes têm problemas. O principal é mesmo os recursos humanos. Cada vez é mais difícil encontrarmos pessoas que tenham a paixão pela cozinha e que queiram mesmo isto. Toda a gente se queixa do mesmo, seja na restauração ou na hotelaria, não há pessoal que tenha dedicação, porque não é só querer trabalhar.
Vai fazendo vários projetos de consultoria. É difícil para si elaborar toda a carta e depois ter de a deixar nas mãos de outras pessoas?
Não é fácil. Precisamos de conseguir ter pessoas que assumam aquilo que está estipulado. No fundo, deixo tudo feito – faço as fichas técnicas, treino as equipas e faço testes com as pessoas. Felizmente, neste momento, nos meus espaços, tanto no Bacalhau na Praça como no Blini, tenho duas equipas muito boas. Demorou tempo? Sim, quase três anos, mas estou descansado.
Televisão traz-me uma forma de ficar conhecido muito mais rápida do que uma estrela MichelinEm relação à televisão, o que é que retira de mais importante das várias experiências que teve no pequeno ecrã?
Fiz todos os primeiros programas de cozinha que existem em Portugal. Fiz o primeiro ‘Master Chef’, o primeiro ‘Top Chef’, que era para profissionais, depois fiz o ‘Chefs Academy’, o um e o dois, depois fiz o ‘Chefs Academy Kids’ e a seguir fiz o ‘Cook Off’, com a Catarina e o Kiko. A experiência mais divertida e que mais gozo me deu foi o último programa, o 'Cook Off', porque nós andámos a viajar por Portugal inteiro. Não existe nada melhor para um profissional do que conseguir ver montes de produtos no meio daquelas aldeias. Isto é muito enriquecedor para nós. No fundo é conhecer a nossa verdadeira cozinha.
A televisão o que é que me traz? Traz-me uma forma de ficar conhecido muito mais rápida do que ganhar uma estrela Michelin. Porque a estrela Michelin, ganhamos e ficamos conhecidos, sei lá, 20% a nível nacional e não só. Quando ganhei a primeira estrela Michelin, em 2004, ninguém sabia o que é que isso era, até me perguntavam se tinha a ver com pneus.
Dá-lhe prazer ensinar aquilo que sabe aos concorrentes dos programas de televisão?
Dá-me muito gozo ensinar os miúdos. Os meus fãs são mais crianças e idosos. Eu adoro ensinar as crianças, porque, no fundo, é estar a começar a criar uma alma para a cozinha. Não quer dizer que aquela criança venha a ser um grande cozinheiro, mas se eu lhe puder ensinar alguma coisa que depois mais tarde lhe venha a dar jeito, ótimo. Os miúdos adoram isto, porque são verdadeiras esponjas. Eles absorvem tudo. É claro que dá muito mais trabalho fazer um programa com miúdos do que com adultos. Não têm alguns conhecimentos e de vez em quando há um que pede para ir à casa de banho e tem de se cortar a gravação, etc. É muito engraçado.
Tem algum prato favorito?
Só há um prato de que eu não gosto, que é porrada. Ao nível dos meus restaurantes, só há um prato que é proibido, que é o cordeiro. Não podem fazer cordeiro, senão qualquer dia ainda se enganam e lá vou eu para o forno [ri-se]. Mas em termos de comida gosto de comer mesmo tudo. E sou capaz de fazer viagens longas para ir comer qualquer coisa. Gosto muito de comer, e continuo a dizer que não há nenhum cozinheiro que seja bom cozinheiro se não gostar de comer. Temos de gostar de comer, porque temos de ficar com os paladares gravados na memória para depois conseguirmos desenvolver outros pratos mais à frente.
Em relação à gastronomia internacional, tem alguma favorita?
A minha favorita há-de ser sempre - tanto a gastronomia como o país - Itália. Eles no fundo é que começaram isto tudo. Os franceses falam muito, falam muito, mas esquecem-se que foi quando Catarina de Medicis casou com um rei francês e levou os cozinheiros dela para a corte francesa que a cozinha francesa começou a desenvolver. Respeito muito a cozinha francesa, eles já há mais de 100 anos para cá que têm feito um trabalho brutal e são muito bons. Detesto-os porque são uns chauvinistas, só o que é deles é que é bom, só os queijos deles é que são bons, … Agora, adoro França, adora a comida deles, mas não gosto tanto como da italiana porque em algumas coisas é um bocadinho carregada a manteiga – eu sou muito mais virado para o azeite, mesmo a cozinhar. Respeito o trabalho que eles fazem, mas Itália é Itália. Há três anos fui a Florença – porque trabalhei em Itália também – e fiquei hipnotizado. Está ali tudo o que andámos a aprender na escola, está no meio da História.
Chefes de cozinha nem deviam existir, porque muitas vezes temos um bom produto e vamos estragar aquiloTeve algum prato que lhe custasse mais a conseguir fazer?
Eu tenho pratos que já vêm de há muitos anos, que foram sendo aperfeiçoados e depois bloqueei ali e as pessoas adoram. Gosto de trabalhar tudo. Apesar de sempre ter sido mais virado para as carnes do que para o peixe, até porque sou transmontano, ultimamente estou-me a afeiçoar mais ao peixe e ao marisco, mas gosto de trabalhar tudo. A minha cozinha sempre foi produto. A primeira coisa com que me preocupo é em arranjar um bom produto, a partir daí está mais de meio caminho andado. Aliás, os chefes de cozinha nem deviam existir, porque muitas vezes nós temos um bom produto e vamos estragar aquilo. Eles matam-me por dizer isto. Um bom robalo selvagem, daqueles que até nos faz água na boca só de olhar para ele ainda cru, aquilo é só sal grosso e grelhar. Podemos inventar um pouco com o corte ou a apresentação, mas é só sal grosso e grelhar. Muitas vezes, quando o produto é excelente, nós só temos de nos preocupar em não estragar, é só isso.
Conseguia viver sem cozinhar?
Conseguia, sei lá, uma semana, mas depois morria. Adoro cozinhar, mesmo. Relaxa-me, tal como passar a ferro. Às vezes acordo às quatro da manhã e vou passar a ferro.
Acha que Portugal está a passar bem a sua gastronomia lá para fora?
O nosso marketing internacional, portanto, levarmos aquilo que nós temos cá dentro lá para fora, sempre foi um defeito muito grande. Eu penso que as coisas têm melhorado muito nestes últimos quatro anos, acho é que há um descontrolo total. Acho que há uma desorganização, porque nós a nível nacional – tanto no Porto como em Lisboa – tivemos um aumento brutal do turismo, muito derivado a não termos ataques terroristas cá, ao calor e por termos um país magnífico. Acho que se começarmos a deixar para trás um bocado daquilo que é típico português e que nos está no sangue, que é a inveja, e nos começarmos a unir, funcionará.
O Governo tem um papel muito importante em relação a isto, porque tem de ser o organismo que tem de fazer a paz entre toda a gente ou com que toda a gente faça as pazes. Nós temos coisas muito boas, em todo o país, e nos sabemos disso. O problema é que sabemos disso, mas não conseguimos saltar daqui para fora. Nós não estávamos preparados para este grande fluxo de turismo, em todos os aspetos. Lembro-me que em Lisboa ainda há dois anos não havia um tuk tuk e agora parecem formigas, não há legislação para aquilo, depois os taxistas chateiam-se, etc. Isto foi de tal forma avassalador, que estamos agora a tentar ‘tapar buracos’, como sempre.
No fundo, acho que tem de haver uma organização e uma responsabilização muito grande por parte de quem manda, em reunir quem de direito e organizar. Nem que fosse copiado de algum país que tenha uma grande organização a nível gastronómico, como a França, por exemplo. É claro que ‘Roma e Pavia não se fizeram num dia’, mas temos de nos organizar. Não há regras. Tem de haver uma responsabilização muito maior a todos os níveis, primeiro por quem manda lá em cima e depois por aí abaixo, para que consigamos ter efetivamente um país e uma gastronomia que consiga passar lá para fora, que seja verdadeira e que nos represente em montes de coisas lá fora a que nunca fomos. Estamos a começar agora a ir, ainda a medo, mas não podemos ter medo. Quando temos a noção perfeita e a segurança do que fazemos e do que somos – afinal, temos mais de 900 anos – não podemos ter medo.
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