"Quem tem medo que pendure a toga e dedique-se à pesca"
O advogado António Garcia Pereira é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Garcia Pereira
Durante mais de 40 anos, militou no PCTP/MRPP, um partido revolucionário português. O seu rosto confundia-se, muitas vezes, com o do próprio partido. Em 2015, na ressaca das eleições legislativas, António Garcia Pereira surpreendeu tudo e todos e demitiu-se do partido. As acusações que lhe foram foram feitas no Luta Popular, nomeadamente por Arnaldo Matos, foram arrasadoras. Dois anos depois, quebrou o silêncio e explicou os motivos que precipitaram a sua saída do partido.
"O Luta Popular foi transformado não num campo de luta ideológica mas num campo de insultos e infâmias permanentes", faz sobressair em entrevista ao Notícias ao Minuto.
Critica o funcionamento da justiça em Portugal, que, diz, "funciona a duas velocidades". Falando de casos como a acusação do Ministério Público ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, o polémico caso do acórdão do juíz Neto Moura, que desculpabiliza a violência doméstica citando a Bíblia, ou a acusação à esquadra da PSP de Alfragide, tece duras críticas ao estado da justiça no nosso país.
António Garcia Pereira invoca ainda os seus antepassados para explicar a sua ideologia revolucionária e recorda os dias do combate à ditadura.
Levámos algum tempo até conseguirmos marcar esta entrevista. É difícil conciliar a sua vida profissional?
Tem a sua dificuldade, porque faço uma advocacia de barra, de processos a correr em tribunal, sobretudo na área do direito do trabalho, e essa advocacia é muito intensa, com muitos prazos, diligências e julgamentos. A justiça do trabalho, sobretudo na zona de Lisboa, está a importar mal a velocidade. Não para que se produzam decisões corretas e justas, mas sim para que se aviem os processos. Isso conduz a uma lógica de correria permanente. Depois, é uma atividade que não é planeada, porque estamos dependentes das marcações feitas pelos tribunais, das notificações que apareçam. Mas representa uma experiência de gestão de tempo e capacidade de resposta que é muito útil para outras áreas da vida.
A morosidade dos processos é um dos grandes problemas da justiça em Portugal?
Diria que em algumas áreas, sim, nomeadamente naquelas em que o Estado ou figuras públicas figuram como réus. É um escândalo, mas, por exemplo, no tribunal administrativo de Lisboa chegamos a ter decisões proferidas dez anos depois.
É preciso dizer que temos uma justiça a duas velocidades. Esta lentidão faz-se sentir nos tribunais administrativos, nos tribunais do comércio. Em contrapartida, há outras áreas do direito, nomeadamente na justiça criminal, são lentas nuns processos e muito rápidas noutros. Para condenar o sem-abrigo que furtou uma lata de polvo num supermercado porque está com fome, aí a justiça é muito célere. Quando chega a outro tipo de processos é muito lenta. A justiça deve ser tão rápida quanto possível, não pode ser instantânea, deve-se fazer nos tribunais e não nos ecrãs da televisão ou nos títulos dos jornais, e tem o seu tempo para que as provas sejam produzidas, sujeitas ao contraditório. Gosto de uma justiça rápida, não de uma acelerada, muito menos celerada.
Temos uma justiça penal que não merece a confiança de qualquer um de nós
Um dos casos que está a marcar a justiça é o facto de, pela primeira vez, termos um ex-primeiro-ministro acusado de corrupção pelo Ministério Público. Este é um exemplo de como a justiça está a funcionar?
Declaração prévia de interesses: não tenho a menor simpatia, pessoal ou política, pelo engenheiro José Sócrates, que aliás considero um dos piores primeiros-ministros que tivemos desde o 25 de Abril para cá. Dito isto, considero aquele processo uma verdadeira vergonha. Por questões gerais, que dizem respeito a todo o processo crime. É absolutamente inaceitável que uma pessoa possa estar presa preventivamente durante um ano sem saber daquilo que a acusam. Segundo, as violações cirúrgicas do segredo de justiça, que visam criar uma opinião pública fora dos tribunais e, deixemo-nos de subterfúgios, dentro dos próprios tribunais e de forma favorável às teses da acusação. É completamente ilegítimo que se falar um indivíduo possa ir para casa, em prisão domiciliária ou com uma caução, e se não falar, embora não haja receio de fuga ou da continuação da atividade criminosa, fica preso. Este processo tem isto tudo e outra coisa: não se discutem as coisas a não ser que elas não cheguem a um ponto extremo. O nosso país tem um grande défice de capacidade de discussão crítica.
A justiça deve ser feita nos tribunais, deve-se investigar primeiro e prender depois, as provas devem estar sujeitas ao contraditório, e se se fizer uma prova convincente, o indivíduo deve ser condenado de acordo com a moldura penal que se revelar adequada. É assim que o processo penal deve ser, e não aquilo que tem sido entre nós, um espetáculo de violação de todos os princípios. Portanto, não acho que seja um processo que esteja a funcionar, mas, pelo contrário, temos uma justiça penal que não merece a confiança de qualquer um de nós.
Depois, há o princípio do juiz natural, ou seja, um processo entra num tribunal e é distribuído para o juiz que calhar em sorteio. Em Portugal, tivemos um juiz, durante anos a fio, que é o doutor Carlos Alexandre, que era escolhido pelo Ministério Público desde que o processo fosse qualificado como de grande complexidade. Mesmo quando passaram a existir dois juízes, pergunto-lhe quantos casos conhece em que o juiz de instrução não seja o doutor Carlos Alexandre. Isto é uma distorção completa daquilo que deveriam ser os princípios de uma justiça num Estado que se diz direito democrático.
Relativamente a esse acórdão do Tribunal da Relação do Porto, não deixando de me indignar, devo dizer que não me espantaComo vê o facto de o juiz Carlos Alexandre intervir em público e manifestar-se sobre o caso de José Sócrates?
Só o Conselho Superior da Magistratura é que fingiu não ver que quando um juiz se queixa das suas alegadas dificuldades económicas e faz referência a um amigo pródigo, quando tem entre mãos um processo em que uma das coisas discutidas é exatamente essa, que ele está, obviamente, a fazer uma referência, tão jocosa quanto crítica, a uma situação de um processo que tem entre mãos. Isto viola completamente os deveres de reserva e de imparcialidade.
Nunca se discutiu a sério, exatamente porque não se discute com base nos princípios neste país, como é que o povo controla o órgão de soberania tribunais. Os outros órgãos de soberania – Presidente da República, Assembleia da República e por via deste Governo – têm uma legitimidade democrática eletiva, estão sujeitas à crítica, têm um rosto. Quando se chega aos tribunais, não só não têm essa legitimação democrática eletiva, como normalmente não têm rosto. Só muito recentemente, designadamente com o caso do juiz desembargador Neto Moura, é que se começou a dar nome aos autores dos textos. Relativamente a esse acórdão do Tribunal da Relação do Porto, não deixando de me indignar, devo dizer que não me espanta. Aquele tipo de preconceitos ideológicos está presente, ao contrário do que se está a fazer crer neste momento, em muitos dos nossos julgadores, designadamente na área do trabalho.
O que pode ser feito para exercer pressão de forma a que justiça seja mais escrutinada, tenha um rosto?
Passa por uma série de coisas. As audiências têm de ser públicas para que o povo possa fiscalizar o modo como funciona esse órgão de soberania. As decisões têm de ser fundamentadas, os recursos devem ser julgados por um conjunto de juízes, três pelo menos, para permitir troca de impressões. A atividade de um órgão de soberania não eletivo deveria ser fiscalizada por um conselho de cidadãos, não de profissionais do mesmo ofício.
Estas coisas nunca foram discutidas a tempo, apesar de terem sido levantadas, porque quando são levantadas, quem suscita questões é imediatamente acusado de estar feito com ou estar a defender os que são objeto de um procedimento criminal. Temos, neste momento, um processo penal montado nas nossas costas, em que há uma entidade, o Ministério Público, que faz, quer para acusar quer arquivar, aquilo que bem entende, sem uma fiscalização efetiva do que faz ou deixa de fazer.
O facto de o Ministério Público ter rompido com a posição corporativa de cobrir a versão da polícia e ter querido investigar o que se passou é um passo importanteConsidera que depois do debate levantado com o acórdão do juiz Neto Moura o escrutínio será maior?
O peso da inércia e dos interesses instalados é muito forte. Conheço bem a situação, fui membro do Conselho geral da Ordem dos Advogados quando o doutor [António] Pires de Lima foi bastonário, presidi à Comissão de Direitos Humanos na Ordem, e devo dizer que a pressão que é feita, imediatamente, para com quem aparece com pontos de vista críticos é muito grande. Mas como costumo dizer, quem tem medo que pendure a toga e dedique-se à pesca. Se há profissão em que não podem estar pessoas com medo de erguer a voz para atacar e criticar aquilo que consideram que está errado são os advogados. E eu, por mim, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que isto seja um pretexto para discutir o que são hoje os tribunais.
É impressionante que do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em 1989, que procurou justificar uma pena relativamente branda aplicada a dois violadores de duas cidadãs nórdicas que “têm um comportamento mais liberal do que as nativas” e que estavam a pedir boleia em plena coutada do macho ibérico, até este acórdão que reproduz o mesmo tipo de conceções ultramontanas, reacionárias, machistas, completamente atentatórias dos mais básicos princípios constitucionais, decorreram 28 anos. No entanto, parece que em certos setores da justiça está tudo na mesma.
Um outro caso sem precedentes em Portugal foi a acusação do Ministério Público à esquadra da PSP de Alfragide por violência motivada por ódio racial contra jovens da Cova da Moura. Quebrou-se um tabu?
Quebrou-se uma prática. Desde sempre, e eu visitei várias vezes o bairro, ouviram-se denúncias deste tipo, como também pela circunstância de, após os acontecimentos, os mesmos polícias que tinham cometido aqueles ilícitos se passearem pelo bairro e se dirigirem, inclusivamente, às próprias pessoas que tinham maltratado, ora em tom jocoso ora em tom intimidatório. A história desse episódio, em que jovens vão procurar saber o que se passou com um deles, alguns ligados à Associação Moinho da Juventude, com um trabalho muito meritório desenvolvido naquela comunidade, e acabam barbaramente espancados e acusados de tentativa de assalto da esquadra, é paradigmática de até onde conduzem os estatutos de impunidade.
De facto, [a acusação do Ministério Público] é um marco, porque é um grande número de pessoas, os diretamente envolvidos nos factos e os que colaboram na adulteração da versão apresentada. Evidentemente que agora tem de ser feita a prova, e é num julgamento que se há de decidir. Mas, o facto de o Ministério Público ter rompido com a posição corporativa de cobrir a versão da polícia e ter querido investigar o que se passou é um passo importante.
Se senti falta daquilo por que passei e que levou à necessidade de eu apresentar a minha demissão numa organização em que militei durante mais de 40 anos? NãoFalemos agora da sua vida política. Saiu do PCTP/MRPP há dois anos. Sente falta da vida política partidária?
Se senti falta daquilo por que passei e que levou à necessidade de eu apresentar a minha demissão numa organização em que militei durante mais de 40 anos? Não. Muitas vezes as realidades impõem-se e o que temos de fazer é continuar a batalhar. Na política, devemos defender as ideias e princípios que consideramos corretos e devemos ter a perspetiva das formigas quando se deparam com um curso de água e têm de passar para o outro lado. Aliam-se umas às outras, entretanto vem um fluxo mais forte e leva umas quantas, mas elas sabem que um dia vão passar para o outro lado da margem.
Por que motivo só quebrou o silêncio relativamente à sua saída do partido este ano?
Foi quando entendi que era adequado e quando me senti em condições de o fazer. Entendi que tinha passado tempo suficiente para que não se atribuísse a essa minha iniciativa qualquer reação de calor de momento, e foi quando eu próprio senti que tinha o mínimo de frieza de ânimo para conseguir organizar ideias, relembrar factos e repor a verdade. Acho que nenhum dirigente político, mais ainda um dirigente político revolucionário, pode atuar com base na deturpação da verdade dos factos. Foi sempre isso que aprendi, e que me fez aproximar do MRPP nos anos 70, e senti que tinha uma obrigação para com as pessoas que me conheciam, mais até para as pessoas que apoiavam e votavam no PCTP/MRPP. Quanto ao resto, a história nos julgará a todos.
O órgão central do MRPP foi transformado não num campo de luta ideológica mas num campo de insultos e infâmias permanentes
Militou no partido durante cerca de 40 anos. O que levou a essa saída abrupta?
A partir das eleições de 2015, aquilo que deveria ser uma atividade de discussão política e ideológica profunda foi substituída por um ataque pessoal, permanente e sistemático, recorrendo aos meios mais ínvios e menos elevados que se possa imaginar, com o único propósito de obter não uma discussão de ideias mas sim a destruição política, profissional e pessoal de alguém. Quando o Luta Popular, o órgão central do partido, foi transformado não num campo de luta ideológica mas num campo de insultos e infâmias permanentes, quando toda e qualquer voz dissonante foi impedida de se exprimir, evidentemente não havia condições nenhumas para continuar e tomei a atitude que, em consciência, considerei a mais adequada.
No Luta Popular é referido um “grupelho” liderado por si. A que é que Arnaldo de Matos se reporta?
Na parte que me toca, posso dizer que não integro nem nunca integrei nenhum grupo. Isso, simplesmente, corresponde a mais uma das falsidades e a uma tentativa de criar a imagem de um inimigo que é preciso abater.
Por várias vezes, mencionou Arnaldo de Matos como um mentor. O que levou ao final da vossa amizade?
É uma coisa que o próprio terá de explicar um dia. Eu tinha uma relação muito próxima e muita antiga [com Arnaldo de Matos], reconhecida pelo próprio, que passava não apenas pelo ponto de vista político, como pelo ponto de vista pessoal e de amizade. Ambos nos apoiámos um ao outro em momentos críticos das nossas vidas. A circunstância de tudo isto provir precisamente de uma pessoa com a qual havia esse relacionamento ainda tornou mais difícil eu ter uma reação. Sempre concebi a política, e foi isso que aprendi no MRPP, como a expressão mais elevada da cultura. Uma coisa é uma grande firmeza na defesa dos pontos de vista, e outra completamente diferente é a simples chicana e ataque pessoal visando achincalhar e ofender na sua honra pessoal, social, familiar e profissional o antagonista. Isso foi para mim um grande choque.
Sempre aprendi que quando se atira lama, quem fica enlameado é quem a atira. É esse o estado de espírito que me moveComo lida com os insultos que lê no Luta Popular?
Sabe, o meu avô Pestana Júnior foi um dirigente da ala esquerda do Partido Republicano, jacobino, o penúltimo ministro da Finanças do tempo da Primeira República. Depois da instauração da ditadura, lutou contra ela, foi preso, esteve deportado, designadamente em Cabo Verde. Tenho um tio que foi um dos intervenientes do assalto ao quartel de Beja, na noite de [31 de dezembro de] 1961 para [1 de janeiro de] 1962, que esteve preso mais de cinco anos nas prisões do fascismo. Fui visitá-lo à prisão do Aljube cerca de um mês e meio depois. [O tio] Tinha acabado de ser sujeito à tortura do sono, vinha completamente desfigurado e eu não o reconheci. Só pela voz é que percebi que era ele. Como o vi naquele estado, tinha eu nove anos, comecei a choramingar e a minha mãe agarrou-me no braço, apontou para o PIDE, e disse “meu filho, em frente desta gente não se chora”.
Portanto, com estes exemplos familiares, sempre aprendi que quando se atira lama, quem fica enlameado é quem a atira. É esse o estado de espírito que me move.
O assassinato de José António Ribeiro Santos pela PIDE fez-me querer trabalhar organizadamente e de uma forma mais estruturada pela libertação do povo português Os seus ideais foram moldados pela sua família revolucionária?
Começaram por ser, indiscutivelmente. Um miúdo que aos nove anos vai visitar o tio à cadeia do Aljube, em pleno fascismo, e assiste, pelos relatos da sua mãe, aos que foram as sessões do caso de Beja, que assistiu aos relatos feitos pelo meu avô, pela minha avó, pela minha mãe, pelo meu tio, e que mal entrou no liceu começou a deparar-se e a conhecer a realidade do que era o regime político… isso moldou-me muito.
Depois, a minha entrada na faculdade representa um salto qualitativo. É nessa altura que conheço o José António Ribeiro Santos. Sou um jovem que aterra com 16 anos na faculdade e deparo-me com duas correntes de opinião ao nível do movimento associativo, uma posição, e hoje podemos dizê-lo, dirigida pelo PCP, com uma visão muito corporativa dos estudantes, que negava qualquer ligação da luta dos estudantes à luta geral do povo português, com uma posição muito defensiva e temerosa face à repressão, e por outro uma tomada de posição que procurava ligar a luta dos estudantes ao povo português, que pregava que onde há repressão há resistência, com uma visão política mais avançada e muito mais firme. É aí que me começo a aproximar dos ideais que viriam a ser os do MRPP, que é fundado mais tarde. E depois há o momento do assassinato de José António Ribeiro Santos pela PIDE, a 12 de outubro de 1972, que me faz querer trabalhar organizadamente e de uma forma mais estruturada pela libertação do povo português.
O que recorda desses tempos politicamente conturbados?
É o tempo seguinte ao Maio de 1968 em França. É o início das grandes manifestações contra a Guerra do Vietname. A minha primeira participação é precisamente numa manifestação contra a Guerra do Vietname, ao pé do [Instituto Superior] Técnico, que é violentamente atacada e reprimida pela polícia de choque. É também a própria definição de dois tipos de posição relativamente ao nível do movimento comunista internacional e a afirmação da necessidade da revolução como meio de derrubar uma sociedade baseada na exploração e na opressão. É um tempo de grande ativismo, cívico, social e político, em que se começa a questionar tudo. Direito é uma faculdade muito assente num ensino escolástico e medieval, e começa-se a questionar o próprio conteúdo do ensino e dos métodos.
Nos anos de 1970, pela primeira vez, numa manifestação contra a Guerra Colonial, realizada 21 de fevereiro de 1973, na Praça do Chile [em Lisboa], os PIDEs e legionários levaram resposta. A primeira vaga que ataca a manifestação é surpreendida e em vez de dar levou. A afirmação desta ideia de que era possível derrubar um regime que parecia omnipotente e omnipresente é um período muito fervilhante, em que tudo está em causa, tudo se discute. São tempos de um grande ativismo, de uma grande generosidade e de uma grande firmeza no combate à repressão.
Todo esse processo levou ao 25 de Abril.
Sim, o regime nunca mais recuperou. Pagou caro esse crime [o assassinato de Ribeiro Santos]. No dia anterior ao funeral, a cidade e Lisboa e a academia foram viradas do avesso, por pequenos grupos que traziam comunicados a apelar a que as pessoas comparecessem no funeral. Apesar de todas as ameaças do regime, do arsenal repressivo que estava no largo, das investidas feitas pela polícia de choque, compareceram dezenas de milhares de pessoas.
Eu morava na casa dos meus pais, na Avenida de Roma, e fui apanhar o autocarro 27. Ao sábado, normalmente, este não levava praticamente ninguém. E nesse sábado [dia do funeral de Ribeiro Santos], foi enchendo, foi enchendo, foi enchendo… eu não conhecia ninguém, e tenho ideia de que ninguém naquele autocarro se conhecia, no entanto todos sabíamos ao que íamos. Saímos todos na mesma paragem e fomos todos para o mesmo sítio. O regime nunca mais recuperou disto, e o nível de consciencialização, de luta contra a Guerra Colonial, de luta pelo derrube do fascismo, acabou mesmo por derrubar o regime fascista.
O regime feudal teve de ser apeado pela força, e com a sociedade capitalista acontece exatamente a mesma coisaDepois do 25 de Abril, o que correu mal na democracia portuguesa?
O que correu mal foi o facto de se ter criado a ilusão de que é possível construir uma sociedade diferente pela simples modificação dos titulares dos órgãos que existiam, deixando intacto o aparelho de Estado burguês. A grande maioria do povo português queria, de facto, construir uma sociedade nova e tomar o destino nas suas próprias mãos. O movimento de ocupação das casas e a criação de comissão de moradores são exemplos. Constituíram os seus próprios órgãos representativos, adotaram métodos verdadeiramente democráticos, plenários, constituição de organismos representativos dos trabalhadores… todo esse movimento revolucionário é depois desviado dos seus objetivos com a criação da ilusão, feita pelos partidos reformistas, que se colocam à frente desse movimento, de que era possível a construção de uma sociedade nova sem demolir pela raiz os alicerces do Estado capitalista.
O resultado disso foi a recuperação completa do sistema capitalista, sob uma nova forma. Não uma ditadura feroz e sanguinária como foi antes do 25 de Abril, mas deixando cair alguns anéis e preservando completamente os dedos. A experiência histórica que temos é exatamente a oposta. A burguesia, para chegar ao poder, não foi pedir por favor aos senhores feudais que fizessem o grande obséquio de se retirarem do poder. Não, pelo contrário, o regime feudal teve de ser apeado pela força, e com a sociedade capitalista acontece exatamente a mesma coisa. O semear das ilusões pagou-se caro, o sistema capitalista recuperou, adaptou-se e chegámos ao ponto onde estamos hoje.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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