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"Na vida, devemos ter sempre um olho na estrada e outro no retrovisor"

O jornalista Mário Augusto é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Na vida, devemos ter sempre um olho na estrada e outro no retrovisor"
Notícias ao Minuto

28/11/17 por Inês André de Figueiredo

Cultura Mário Augusto

Com mais de 30 anos de carreira, Mário Augusto é um nome incontornável no jornalismo cultural português, em particular na área do cinema, tendo entrevistado mais de duas mil estrelas desta área, entre elas nomes que não esquece como os de Woody Allen, Meryl Streep, Dustin Hoffman ou Al Pacino. 

Agora, no âmbito do lançamento do seu livro 'Caderno Diário da Memória', Mário Augusto abriu a sua memória e contou ao Notícias ao Minuto parte da sua história, da sua carreira, e até um pouco da vida pessoal, mais precisamente do caminho que a filha Rita, com paralisia cerebral, tem trilhado, sendo uma bandeira das pessoas com a mesma condição em Portugal e um exemplo a seguir.

Tendo em conta a sua ligação forte ao cinema, a conversa não podia ignorar o caso de Weinstein, que tem tido um efeito de bola de neve no que toca às denúncias de assédio sexual em Hollywood e não só.

Nesta conversa connosco, o jornalista recordou algumas das entrevistas que realizou, umas estranhas e outras engraçadas, histórias que fazem parte da sua história, da pessoa que tantas vezes entrou e continua a  entrar em casa dos portugueses. 

Depois da 'Sebenta do Tempo', o que o levou a escrever o 'Caderno Diário da Memória'?

A 'Sebenta do Tempo' foi um desafio que me foi lançado pela Bertrand há um ano e meio. Na altura hesitei um bocadinho, primeiro porque o Markl tinha feito a caderneta de cromos e sou amigo do Markl. Baralha-me sempre aquela ideia do 'olha, está a aproveitar-se de um conceito que foi bem explorado por outros'. Tive uma troca de conversas com ele e ele disse 'é giro, faz, ainda por cima é da geração anterior'. Quando vi os livros dele percebi que tinha ali basicamente as crónicas da rádio, e comecei a colecionar as histórias e a construir a narrativa daquilo e resultou na 'Sebenta do Tempo', sem qualquer intenção de dar continuidade, supostamente era para ser um livro único.

Só que, em janeiro, a Bertrand, na avaliação do projeto, e porque eu tinha deixado algumas histórias de fora que não couberam, perguntaram-me 'por que razão não continuar?'. Como tinha umas histórias soltas, andei a pensar como poderia recomeçar o tema, comecei a juntá-las, tinha um endereço de email para onde os leitores foram mandando coisas curiosas. Juntei aquilo tudo, fiz o puzzle e em março ou abril tinha mais ou menos uma estrutura de conceito para o 'Caderno Diário'.

Tenho uma 'panca' que é não conseguir fazer nada sem ter nome dado, um conceito. A primeira coisa de todas foi pensar no nome. 'É Sebenta II? Não, não faz sentido'. Depois de várias abordagens e discussões ficou o 'Caderno Diário da Memória' antes de ter qualquer tipo de conteúdos escritos ou abordagem. No meu tempo, um caderno era o estágio seguinte à sebenta, ou seja, a sebenta era para as anotações e o caderno para passar a limpo.

Depois de ver o livro fisicamente, as expectativas voltaram a ser superadas?

Nunca temos essa noção no momento de ver o livro porque como me envolvo muito com a parte gráfica e com a recolha de imagens, no fundo, quando se tem o livro em papel, é só o prazer de ter em papel e cheirar a tinta, porque o processo criativo já vem de trás. Como não faço só escrita, fui acompanhando o processo todo.

Notícias ao MinutoCaderno Diário da Memória, Mário Augusto© DR

Estamos a viver tempos em que há falta de memória? É preciso este tipo de iniciativas?

Acho que este tipo de iniciativas e sempre teve lugar, o passado sempre despertou muita curiosidade. Primeiro, porque estamos a refletir sobre a vida das pessoas em determinadas fases da sua existência. Mais do que nunca, acho que faz algum sentido e percebe-se o êxito ou impacto que possa ter junto das pessoas, porque hoje vive-se muito mais rápido, vivemos com muito mais intensidade do que eu vivia quando era criança ou jovem. Já para nem falar dos meus pais e dos meus avós.

Aliás, costumo dizer que os meus pais viveram de forma igual aos meus avós, mas eu já vivi de forma diferente dos meus pais e os meus filhos estão a viver de forma muito diferente de mim. Da minha forma de viver para os meus filhos e para os meus pais mudou radicalmente e isso faz com que tenhamos um prazer maior a descobrir coisas do passado.

O passar dos anos tira-nos a visão objetiva, mas dá-nos a clarividência de análise do passado e do futuro Como é que se cativa os jovens para essa necessidade de olhar para o passado?

Não é preciso muito, é só saber tocar-lhes no ponto fraco, explicar-lhes determinadas situações. Há uma música do Cat Stevens que se chama 'Father and Son' que explica isso muito bem. A experiência de vida dá-nos algumas clarividências, o passar dos anos tira-nos a visão objetiva, mas dá-nos a clarividência de análise do passado e do futuro. Costumo dizer que é conhecendo bem o passado que conseguimos perspetivar melhor o futuro.

E consegue passar esse ensinamento para os seus filhos?

Tento, não é fácil porque 'santos da casa nunca fazem milagres'. Mas é engraçado. Ainda no outro dia estava numa discussão de pai e filho com o meu filho mais novo, que tem 15 anos, por causa da escola e de algum desleixo, e eu disse 'eu já vi isto', esta discussão já a tive do outro lado, com o meu pai, ou até com o meu filho mais velho.

Tudo é cíclico?

Tudo é cíclico, com novas personagens, com mais adereços, com mais cor, com menos cor, com mais histórias paralelas ou não. Ao fazermos o percurso da existência, da vida, do corre-corre, devemos estar sempre a olhar com um olho na estrada e outro no retrovisor, porque é o retrovisor que nos dá o caminho feito. Calculamos que, se a estrada até aqui foi em linha reta, daqui a para a frente também parece reta, deve ser mais ou menos igual do que a que eu fiz.

Mas não é?

Nem sempre é, às vezes apanha-se umas surpresas, umas curvas e contracurvas.

Há um relacionamento de falsa intimidade que a televisão tem

O nome Mário Augusto é incontornável no jornalismo cultural português. Tem consciência deste facto?

Não, de todo. Tenho alguma percepção, não posso dar uma de falso modesto. Tenho noção do que fiz ao longo da vida e tenho noção disso há muito tempo, mas com as coisas mais simples. Por exemplo, lembro-me perfeitamente que das primeiras vez em que senti o peso da televisão e da profissão foi há muitos anos, quando uma senhora que estava com o marido lhe disse 'olha, está ali o 'Márinho'. Comecei muito jovem nos programas infantis, nessa altura já era jovem e pai de filhos e a senhora dizia o nosso 'Márinho'. Há um relacionamento de falsa intimidade que a televisão tem.

Ou, então, quando estava na SIC e vem um colega que hoje é uma estrela de televisão, era estagiário na altura, e quando cheguei lá - eu sou muito brincalhão - ele estava sentado na minha secretária. Disse-lhe 'jovem, desandar, sai daí porque esse lugar não é teu'. E apresentei-me, disse 'sou o Mário Augusto, e ele respondeu 'eu sei, quando era miúdo via-te na televisão'. Ou seja, não tenho essa noção mas tenho a noção de que ando nisto há muitos anos, mas também não me levo muito a sério.

Sente que desbravou um caminho para o jornalismo de cinema em Portugal que não existia até então?

Nunca fiz nada premeditado na vida. Se me dissessem quando tinha 24 anos que 'nos próximos 30 vais andar a fazer televisão, vais estar a conversar com o Woody Allen, a Meryl Streep, a falar com este e com aquele. Eu diria 'ok, fixe, fantástico, esta cartomante está louca'.

Agora, como nunca me preocupei em desenhar muito o meu futuro, vivi sempre muito das emoções do momento, dos prazeres, também nunca deixei de querer fazer coisas. Ainda hoje, aos 54 anos, estou sempre com mil e um projetos na cabeça.

Durante muitos anos foi uma cara conhecida da SIC e depois acaba por regressar à RTP. Como foi essa transição?

No outro dia estava a refletir sobre a minha vida profissional e ela faz-se por ciclos de oito ou nove anos, é uma coisa curiosa. Antes de ir para a SIC estive oito anos na RTP, depois tive 16/17 anos na SIC e estou há oito anos na RTP, ou seja, estou a ficar assustado: um dia destes posso ter de estar a mudar qualquer coisa [risos].

Eu saí da RTP, podia estar confortável na RTP mas na altura não estava, era colaborador e estava prestes a entrar para o quadro, e aparece a SIC. Os amigos que estavam para ir fundar a SIC, além de serem meus amigos, e pessoas com que me relacionava bem, transmitiram um enorme entusiasmo e fomos todos.

Não houve qualquer espécie de arrependimento?

Não, de todo. Nunca me arrependo. Como não faço as coisas muito premeditadas, não me arrependo. 

A emoção fala mais alto que a razão?

A emoção e a paixão, faço as coisas por prazer de as fazer, mesmo aquelas que faço inconscientemente.

Custa-me ver a SIC como está hoje, mas guardo as melhores memórias do projeto que ajudei a fazer no início No regresso à RTP ficou alguma coisa mal resolvida?

Não porque a minha SIC tinha ficado muito lá atrás. A minha SIC era a SIC do Emídio Rangel, a SIC de uma certa loucura saudável que se viveu naqueles primeiros 10 anos, em que toda a gente tinha muita vontade de fazer, de fazer diferente, o entusiasmo quase infantil em fazer a televisão daquela altura. Depois, as coisas foram mudando e quando me surgiu a oportunidade de ir para a RTP por causa de alguns projetos, nomeadamente o projeto Academia RTP, era uma altura em que apresentei esse conceito, gostaram da ideia e disseram 'isso é muito giro, vamos montar uma operação destas cá'.

Lá está a emoção, eu tinha na RTP uma relação de 'Sebenta do Tempo', foi lá que aprendi, que comecei, que vivi tempos fantásticos do meu arranque profissional e tinha esse prazer ali à flor da pele. Ainda hoje tenho pela RTP uma gratidão e uma relação de pai e filho em conflito permanente. 'A RTP podia ser melhor, é melhor, é assim-assim', no entanto custa-me ver a SIC como está hoje, mas não tenho nada a ver com aquele projeto, guardo as melhores memórias do projeto que ajudei a fazer no início da SIC.

Quando são daqueles atores ou atrizes de aviário, muito jovens, têm 50 mil agentes à voltaÉ conhecido por ter entrevistado milhares de estrelas de cinema. Qual a história mais engraçada que recorda?

Não há assim histórias muito exuberantes porque aquilo, se quisermos ser muito rigorosos, é pouco jornalismo e muita televisão. Por exemplo, agora com estas crises todas com os autores e com muitas confusões, é recorrente chegarmos às entrevistas e sermos confrontados com declarações que temos de assinar em como não contamos nada da vida pessoal, como não perguntamos nada sobre os filhos, as namoradas ou a crise do mundo.

Tive a sorte, quando comecei, em 1987, de aquilo ainda ser um bocadinho a brincar. Fazia aquilo com esse lado entusiasmado, sem controlo de tempo tão apertado, chegávamos lá e ficávamos um bocadinho na conversa com os atores. Agora, o que é que eles têm? Quando são bons, são boas pessoas, são bons na conversa e têm histórias para contar. Quando são daqueles atores ou atrizes de aviário, muito jovens, têm 50 mil agentes à volta.

Não há essência?

Não há essência e eles não se mostram, agora quando são muito bons e têm histórias para contar, estão-se borrifando e contam o que lhes apetece. É assim com Meryl Streep, com Dustin Hoffman, Al Pacino. Mas há uma em particular que me toca, porque esse homem já morreu há uns anos anos largos, que foi o Jack Lemmon, que deu das entrevistas mais bonitas que alguma vez fiz. Ultrapassou o tempo e disse coisas notáveis, há 20 anos, que hoje são atuais. Uma vez perguntei-lhe 'como é que se sentia sendo o galã dos anos 50, como é que se vivia em Hollywood nessa altura?' e ele disse 'isso de rótulos esqueça, é muito jovem e nunca ligue muito a isso porque por cada abraço que lhe dão e dizem que é bestial e o melhor do mundo, é insubstituível, à volta devem estar 30 que não lhe dizem nada e querem é dar-lhe um tiro'.

E a verdade é essa. O que é que me interessa que me digam que gostam muito de mim e que sou especial quando há outros que não dizem nada e que quando eu apareço na televisão desligam, só porque sim, porque não gostam da cor dos olhos, do tique, do falar em inglês.O Steven Seagal é o mais antipático de todos os atores que alguma vez encontrei E a situação mais estranha?

A mais estranha foi com o Steven Seagal, que é o mais antipático de todos que alguma vez encontrei - eles têm de ser simpáticos, são pagos para isso. O homem deu-me uma entrevista daquelas do mais aborrecido que pode haver com 'sim, não, não sei, pois'. Já por ser quem é, que não tem nada de especial para contar, foi uma entrevista muito aborrecida.

Mais estranha e que não tenha acontecido comigo, lembro-me de uma do Kurt Russell. Estávamos em Londres - os jornalistas que fazem isto há anos conhecem-se quase todos -, à espera da nossa vez. De repente, começámos a ouvir berros, o jornalista a sair disparado e muito chateado, os assistentes do ator a tentar pedir satisfações. O jornalista era daqueles provocadores dos canais mais radicais e foi para lá fazer considerações sobre o rabo da mulher do ator, ele passou-se e queria bater-lhe.

Há alguma entrevista que tenha ficado como a mais especial?

Talvez essa do Jack Lemmon. Há uma muito curiosa também, com o Dustin Hoffman, no auge da SIC, e em que andávamos todos a tentar fazer coisas diferentes e animadas, em que eu, no final da entrevista lhe pedi para dizer 'Eu sou o Dustin Hoffman e vou estar no Jornal da Noite'. E estive cinco minutos a tentar explicar-lhe como se dizia 'da noite' [risos].

Há alguns em que é giro ver a evolução. Por exemplo, entrevistei o Leonardo Di Caprio quando ele tinha 16 anos e na última vez já era um rapazito grande, o que é engraçado. Há outros que entrevistei e supostamente iriam ser umas estrelas e desapareceram completamente.

Quem é que ainda está por entrevistar?

Há alguns que nunca entrevistei. O Clint Eastwood, por exemplo, gostava de entrevistar mas não é fácil. Já estive perto dele, pareceu-me ser uma pessoa muito serena e reservada. Mas, pela experiência que eu tenho, como já é um velhote, é capaz de ser um bom contador de histórias se simpatizar no momento da conversa.

Hoje, o cinema americano está numa fase de muita parra e pouca uvaDepois de tantos anos de ligação, o mundo do cinema continua a encantar?

Continua a encantar o mundo do cinema, não os filmes. Hoje, o cinema americano está numa fase de muita parra e pouca uva, muitas histórias, explosões. Raramente um filme americano me surpreende.

Qual foi o último filme que o surpreendeu?

Gosto muito de cinema inglês, de boas histórias. Em vez de escolher um filme, gosto essencialmente que tenha uma história consistente, que agarre de início, quase nos leve pela mão e chegamos ao fim e 'ahn'. Aqueles que ao fim de cinco minutos já percebemos como vão acabar, só falta saber se tem mais efeitos ou menos efeitos, já perdem a graça toda.

Gosto de boas histórias. Não gosto de filmes de terror, não tenho paciência para ser assustado, gosto de bons dramas, boas comédias, os franceses têm comédias notáveis, os ingleses quando se esforçam também. Neste momento, a fronteira entre a produção americana e a inglesa é muito pequena. E gosto de cinema independente com uma boa trama, uma boa história.

Acho que é uma falsa resposta quem diz que tem um filme da sua vida. É mentira

Consegue escolher o filme da sua vida?

Acho que é uma falsa resposta quem diz que tem um filme da sua vida, porque é mentira, acho que ninguém tem um filme da sua vida. Acho que se pode ter uma mão cheia de filmes que acompanham para a vida e que são referências especiais na memória. Não há um filme, pelo menos eu acho que não. Porquê? Porque o filme não é só o ato de ver o filme, é o contexto, o dia, a disposição, a pessoa com quem vemos, sozinho ou acompanhado, a discussão que o filme pode gerar e, nesse sentido, tenho uma mão cheia de filmes que me acompanham para a vida, que revejo de vez em quando, que gosto de procurar coisas que não tenha visto da última vez que o tenho visionado.

E tenho outros filmes que me acompanham na vida e que tenho medo de rever para não estragar a magia que guardo da altura em que os vi. É preferível não rever, porque acho que no dia em que rever vou estragar um bocadinho da magia. 

Caso Weinstein é uma bola de neve que está a enrolar outros e acho que acaba por ser patético, estúpidoHollywood tem estado debaixo de fogo pela divulgação do caso Weinstein. Como olha para esta situação?

Só quem conhece bem a sociedade americana é que entende bem estas situações, devido à moralidade americana. Eu acho que Weinstein é um cretino, uma pessoa que sempre explorou o estatuto e o poder que tinha para se aproveitar das jovens de que se foi aproveitando. Falta saber todas as outras de quem se aproveitou e não vieram a público. Também há algum aproveitamento de algumas delas agora, para terem notoriedade e para ter os seus cinco minutos de fama.

É uma bola de neve que está a enrolar outros e acho que acaba por ser patético, estúpido. Acho incrível que, no caso de Kevin Spacey, vão regravar as cenas em que ele entrava porque não querem estrear o filme com o ator. Ele tem de ser julgado se alguma coisa fez, mas não misturem as coisas. Ok, não lhe deem mais trabalho, mas aquele filme está feito.

Para quem anda no cinema, há muito tempo que se falava em surdina de algumas histórias de Kevin Spacey, nomeadamente a sua homossexualidade, com que ninguém tem nada a ver. Agora, pedofilia mete confusão. Na história de Dustin Hoffman, acho que é um aproveitamento e exagero estarmos a falar de uma coisa que foi um assédio brincalhão em vez de sexual.

Acabou por se generalizar?

Os americanos têm essas coisas, são exagerados e estas histórias não são de agora, são muito antigas. É uma sociedade que olha vive muito do 'olha para o que eu digo, não para o que eu faço'.

Notícias ao MinutoMário Augusto© Global Imagens

Já tem uma carreira de mais de 30 anos e é público que a sua filha quer seguir os seus passos. Alimenta esse sonho?

Não, de todo. A comunicação social está numa fase de expansão, à procura de um caminho diferente e, por outro lado, de excesso de gente disponível para o trabalho. É tudo muito diferente do meu tempo, porque éramos poucos e entusiasmados, hoje são muitos e formados. Aprendíamos fazendo, no meu tempo não havia escolas de jornalismo. Aprendi fazendo, nomeadamente nos centros de formação dos sítios por onde passei, como o da RTP e da Antena 1, onde também trabalhava.

Agora, acho que não tenho direito de restringir o futuro dos meus filhos. O mais velho não tem nada a ver com a aérea e até se afasta um bocadinho. A Rita gosta muito do universo da televisão, gosta muito de escrever.

Nem tudo tem de ser perfeito para atingir a perfeição e minha filha Rita é um exemplo fantástico disso

Alguma vez se viu obrigado a 'travar' um sonho pelo facto de a sua filha ter paralisia cerebral?

Não, porque acho que ela ainda está na fase de perseguir os sonhos todos, porque vai conseguir fazer tudo o que quiser dentro das limitações dela. A Rita ensinou-nos uma coisa como pais, a mim e à Paula, a minha mulher, que é nem tudo tem de ser perfeito para atingir a perfeição e a Rita é um exemplo fantástico disso.

A Rita vai fazer 18 anos, é uma jovem muito bem resolvida, muito tranquila com as suas limitações físicas.

A sociedade está preparada para apoiar pessoas com esta condição?

Não, de todo. A sociedade é demasiado cruel para com a diferença. Nós vivemos hoje numa sociedade muito padronizada e regulada por regras coletivas. E isso vê-se muito nas colegas da Rita, que têm a idade dela e olham para ela como uma miúda que não caminha. Não pensam que ela, em termos intelectuais, é tão boa ou muito melhor do que elas porque foi obrigada a crescer muito mais rápido desde a infância, lidou sempre com mais adultos. Acho que lhe deve provocar alguma mágoa, mas também é um processo de aprendizagem na vida que, se calhar, quem perde são os que não convivem com ela, não é ela que perde por não conviver com eles.

Que obstáculos é que a Rita tem de ultrapassar ainda hoje?

A indiferença, acho que esse é o obstáculo mais difícil para alguém que lida com a paralisia cerebral, a forma desconhecida como as pessoas lidam com essas particularidades e a atitude de coitadinho em relação a alguém que é diferente deve ser a coisa que mais magoa a Rita. A nós, como pais, entristece-nos.

Como é que acompanha o dia a dia da sua filha? Há uma preocupação diferente em relação aos outros filhos?

Naturalmente. Primeiro porque somos mais conscientes em relação às dificuldades, enquanto ela diz 'eu quero fazer assim e vou fazer', temos de dizer 'Rita, calma, vais fazer mas por onde vais, se tens escadas tens de ir pela rampa, e se não há rampa?'. Estou a fazer uma comparação. Mas, essencialmente, tentámos fazer dela uma pessoa perfeitamente igual às outras, mesmo quando ela se vai abaixo, que vai muitas vezes, como nós.

Uma coisa engraçada é que as pessoas que sofrem de paralisia cerebral, neste país, beneficiaram muito com a Rita, pelo facto de eu ter assumido publicamente. Ser um gajo da televisão, que fala com as estrelas, que aparece a sorrir e que tem um problema, que não é um problema, mas que para a sociedade é um problema, ajudou a que muitas outras pessoas pudessem libertar-se do silêncio do problema delas. Acho que a Rita acabou por ser uma bandeira da paralisia cerebral e também sai beneficiada com isso, porque tem uma perceção de que há sempre alguém pior do que ela e a sofrer mais do que ela.

Mas é verdade que, como jovem adolescente que é, não pode ir à discoteca com as amigas porque elas não a convidam, mas há-de ir, um dia. Não pode ir aqui ou acolá porque vêm as férias, as amigas vão com os amigos e namorados e ninguém se lembra de convidar a Rita. Ela não pode ir sozinha, sem mais nem menos. Há sempre a necessidade de ter algum apoio, mas é uma coisa com a qual vai aprendendo a lidar.

Como é que foi quando ela começou a escrever, pedia a sua opinião?

Não, o processo de escrita da Rita tem uma coisa muito engraçada, muito particular e ela escreve isso num texto do livro dela. Às vezes dou umas voltas com ela para conversar, e quando ela tinha 14 anos fomos dar um giro e ela disse-me: 'olha, a minha professora de português diz que eu escrevo umas redações muito chatas e longas'. Eu respondi-lhe 'se calhar não, oh Rita, então mas porquê?'. Ela argumentou da maneira dela e eu disse-lhe para que, quando chegasse a casa, escrevesse o texto que ela quisesse, eu corrigia e se estivesse bom eu publicava na minha página de Facebook.

Ela escreveu um texto brutal sobre o passeio e sobre a superação física e desbloqueio de escrita. O texto é singelo e muito bonito. Eu não disse nada mas fiquei completamente surpreendido pela simplicidade e dimensão humana que refletia. Escrevi um texto de introdução que se chamava 'Caminhada', a introduzir o texto dela e pus no Facebook. Expliquei o contexto, as pessoas começaram a reagir, aquilo teve um impacto muito grande, ela ficou entusiasmada e começou a escrever por método. Ela é muito organizada, precisa de ser, começou a escrever e usei alguma injeção de estímulo. Disse-lhe para continuar a escrever e que criávamos uma página só para ela, abrimos um concurso para o nome da página. Foi uma bola de neve, foram as pessoas que escolheram o nome da página - Os Olhos da Rita -, que começaram a responder, a interagir com ela e hoje tem 30 mil seguidores que reagem de uma forma muito gira.

Olhando para o futuro, onde se vê a médio prazo?

Há coisas que eu gostava de fazer e ainda não fiz, mas vou fazer, só não faço porque não tenho tido tempo.

Não tenho muitos sonhos. Vivo o sonho imediato, estou sempre com o sonho presenteTem muitos sonhos por realizar?

Não, não porque não tenho muitos sonhos. Vivo o sonho imediato, estou sempre com o sonho presente. Vou ter de realizar uma curta-metragem que escrevi há uns anos, e que ando a adiar. Gosto muito de estar a escrever histórias, de investigar por curiosidade. Nos próximos dois ou três anos tenho livros para publicar em permanência, haja tempo.

Não há nada que lhe falte realmente fazer?

Não, sou uma pessoa muito confortada. Sempre tive muito mais do que imaginei para mim, estou tranquilo em relação ao que faço, à maneira como faço e como vou fazendo. Acho que há coisas que se calhar gostava de experimentar mas já não vou experimentar, há coisas que imagino e não as concretizo porque no percurso vou mudando de opinião e vou descobrindo prazeres novos nesses caminhos, acho que isso é o maior prazer.

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