"A Rádio hoje está num ciclo descendente, precisa de levar um encontrão"
Com uma carreira de mais de 45 anos ao serviço da Rádio, António Macedo é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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País Vozes
António Macedo é a personificação de voz incontornável. Afinal, a voz é o seu instrumento de trabalho há mais de 45 anos, emprestando-a, ainda, todos os dias às manhãs da Antena 1.
Homem de histórias, que admite não conseguir ficar quieto, e um dos mais antigos locutores em atividade falou com o Notícias ao Minuto nos estúdios da Rádio pública, onde fez um balanço sobre a sua longa carreira, falou sobre as suas manhãs madrugadoras, do dia a dia, e deixou-nos espreitar para o futuro que preconiza.
Comunicador de corpo e alma, não teme a reforma, mas afirma-se desiludido pelo estado da Rádio em Portugal.
Hoje o mundo é a televisão, aliás já nem sequer é muito, já nem sequer é a internet, é uma mistura, é uma salada muito grande. Antigamente não, o mundo era a Rádio, estava na RádioFaz Rádio há mais de 45 anos, como é que deu os primeiros passos? Era um sonho que já tinha?
Não. Foi através de um amigo, comecei a fazer umas coisas para a Rádio Universidade e o principio foi todo um bocado 'atamancado', queria muito fazer isto mas ao mesmo tempo estava a estudar e tinha outras atividades. Punha música por aqui e por ali, estudava tudo ao mesmo tempo e, portanto, foi um bocado confuso, mas foi sempre uma ambição. Queria falar na Rádio. Falar na Rádio era uma coisa que mesmo já na adolescência ainda era um sonho. Sou de uma geração em que no princípio da minha vida ainda não havia televisão, as pessoas reuniam-se à volta da Rádio, era uma festa e por isso foi uma coisa que sempre me fascinou. Aquele tipo de comunicação, a forma como entravam na casa e na vida das pessoas e aquilo que a Rádio contava... Hoje o mundo é a televisão, aliás já nem sequer é muito, já nem sequer é a internet, é uma mistura, é uma salada muito grande. Antigamente não, o mundo era a Rádio, estava na Rádio.
E depois gostava muito de todos os desportos em geral, mas de futebol e hóquei em patins em particular, e gostava de ouvir os relatos. Eu próprio fazia relatos, inventava relatos quando era miúdo, com uma enceradora da Electrolux que a minha mãe tinha, virava-a ao contrário e usava a pega como um microfone.
E quem é que ganhava nesses jogos?
Sempre o Sporting e a Seleção Portuguesa. No hóquei em patins, era a Seleção. No futebol era sempre o Sporting e com grandes resultados.
Mas essa sua entrada na Rádio Universidade começou também com um jogo de futebol.
Sim, chovia desalmadamente, era setembro e íamos jogar para a Alameda D. Afonso Henriques. Como não podíamos jogar, um tipo que era nosso vizinho, meu amigo, e que trabalhava na Rádio Universidade, tinha por alcunha 'Spot', disse para irmos todos para a Rádio, que ficava na Rua D. Estefânia - era ali perto. Na altura, meio na brincadeira, meio a sério, passei a fazer umas 'perninhas' para a Rádio.
Para mim foi muito relevante, mas absolutamente irrelevante. O que é que quero dizer com isto. Foi irrelevante para mim, mas muito relevante para dar os primeiros passos. Serviu para me mostrar que de facto tinha capacidade para poder fazer daquilo profissão
Mas a Rádio na altura funcionava de forma diferente de hoje em dia.
Sim, era o amigo do amigo que conhecia alguém que fazia Rádio. Na altura havia os históricos de sempre da Emissora Nacional, do Rádio Clube Português, da Renascença e depois havia um bando de miúdos, no melhor sentido da expressão, que gravitavam à volta daquilo, que tinham uns discos, umas ideias e que iam fazendo algumas coisas.
Lembra-se do seu primeiro rádio?
Sim, o primeiro era um móvel com pickup, com portas de correr, gira-discos e um rádio, com duas colunas incorporadas. Era um móvel de madeira que datava de final dos Anos 50 e era o precursor do que viria a ser conhecido como estilo americano. A marca era NordMende, ainda me lembro.
Foi nessas reuniões familiares, enquanto criança, que começou a perceber que talvez pudesse ser um caminho?
Foi nessa altura que comecei a perceber que aquilo era uma coisa que eu próprio gostava de fazer. De deixar de estar do lado de cá e passar a estar dentro daquela caixa a dizer coisas às pessoas.
E hoje em dia quantos rádios tem?
Neste momento, em casa, sem ser na garagem, devo ter à volta de uns 30. Fui sempre comprando, foram-me oferecendo. Há muito tempo que não compro, mas tenho muitos rádios, a maior parte deles a funcionar e há sempre um a trabalhar em qualquer divisão da casa. Televisor praticamente não o ligo. Só para ver a bola.
A Rádio está num ciclo outra vez descendente. E um dia destes vai acontecer uma coisa qualquerEm 1988 fez parte do arranque da TSF, como foram esses tempos?
Esses estão entre os melhores tempos da minha vida profissional. Depois de muito que passei e que vivi, realmente foram tempos que não se repetem, com gente que não volta a repetir-se. Até pode acontecer uma coisa idêntica, mas será certamente diferente. Aqueles miúdos foram absolutamente marcantes, não apenas a experiência, o sobressalto que aquilo gerou, foi um encontrão em tudo o que se fazia. A rádio estava um bocado como está hoje, funciona por ciclos, mais do que qualquer outro órgão de comunicação social, e agora está num ciclo outra vez descendente. E um dia destes vai acontecer uma coisa qualquer, na altura foi a TSF, foi o Rangel. O Emídio Arnaldo Freitas Rangel, com muita gente amiga dele e muitas ideias, mas ele era o cérebro, o executor, era tudo. A união do Rangel com o Francisco Sena Santos e o conjunto de 41 ou 42 'meliantes' é que transformaram a rádio, a minha vida e a de centenas de pessoas.
Há um antes da TSF e um depois da TSF, nada voltou a ser igual.
Viajando ao presente. Como é uma manhã de rádio na Antena 1?
A manhã da Antena 1 destina-se a ser útil, em todos os sentidos. Não apenas ajudar as pessoas a sair de casa, como a andar de carro, é o prime-time da rádio. Ir contando às pessoas aquilo que se está a passar em Portugal e no mundo.
Entretê-las com bom gosto, inteligência, argúcia, bom humor, enfim, com qualidade e com a maior diversidade possível. O que é complicado, porque às tantas a diversidade pode transformar-se - o que não é o caso na Antena 1 - numa esquizofrenia, porque podemos cair em extremos. Tem de haver muito bom senso e equilíbrio.
Como é que se chega a esse equilíbrio?
Pensando muito e pensando bem. O ouvinte é uma entidade demasiadamente abstrata que não deve ser considerada quando pensamos em fazer uma programação, é redutor estar a pensar no ouvinte.
Tem de se reduzir o mais possível, alargando o mais possível, é nesse equilíbrio que a coisa pode funcionar, sem deitar fora, sem escorraçar os públicos que estão nas extremidadesEntão em quem se pensa?
Em nós próprios e na forma como isso se pode refletir no ouvinte, e o ouvinte é só um. Os ouvintes são distribuídos por públicos diversos e tentar alcançar esses públicos todos, a juventude e os velhos, os pobres e os ricos, os informados e os indiferentes e tentar reunir isso no mesmo bolo dá em esquizofrenia. Portanto, tem de se reduzir o mais possível, alargando o mais possível, é nesse equilíbrio que a coisa pode funcionar, sem deitar fora, sem escorraçar os públicos que estão nas extremidades.
No fundo, é não cair na esquizofrenia e em função disso, tentar tanto quanto possível, programar a antena de forma a tocar esses públicos diferenciados nos momentos em que nos parece que têm mais apetite para ouvir Rádio. Há aqui uma troca: satisfazer os públicos e ter da parte deles, a parte gratificante de se manterem fiéis.
Sente que há outro tipo de obrigações por ser uma Rádio pública?
Isso é uma coisa que me passa completamente ao lado. Acho que o termo serviço público tem de ser usado, mas prefiro o termo 'serviço ao público'. Sempre foi uma coisa que fez parte do que pensava. Acho é que há o direito do comunicador e do jornalista de terem liberdade de expressão. Mas há um direito que se sobrepõe a esse, que é o de o público ser informado, sem restrições algumas. E esse principio é o princípio do serviço ao público que sempre tentei praticar e exercer, mesmo não sendo na Rádio de serviço público, que é também uma rádio de serviço ao público.
Acordar cedo e cedo erguer dá mesmo saúde..? A que horas chega à rádio?
Chego por volta das 6h00 à rádio e acordo um pouco antes das 4h30. Faço de manhã em casa exatamente como se me levantasse como uma pessoa normal. Tomo o pequeno-almoço sentado, tomo banho de pé [risos]. Leio os jornais, com a internet vejo logo as primeiras páginas, mensagens, emails, porque há coisas que chegam durante a madrugada que são precisas para a manhã. Consulto tudo, fico como se estivesse noutro tempo, com o Diário de Notícias ou o Século abertos à minha frente, com a Rádio ligada, sempre com a Rádio ligada.
Tenho uma primeira intervenção às 6h30, que no fundo é para informar o que se vai passar nas quatro horas seguintes e depois às 7h00 'ataco' a emissão.
Quando quero escrever uma coisa a sério, escrevo à mão e sendo assim tem de ser com caneta de tinta permanenteTem alguns rituais? Coisas que não deixa de fazer antes de entrar em estúdio?
Vou ao 'estúdio 30' [expressão que usa para quando vai fumar], bebo café, converso com o editor, sobre a emissão e sobre outras coisas, futebol. E tenho outros, por exemplo, tenho sempre uma caneta de tinta permanente, gosto de canetas e quando digo canetas não são esferográficas, são canetas, é diferente.
E escrevo muito durante a manhã, tiro muitas notas, chego a gastar 20/30 folhas durante uma emissão.
Quando quero escrever uma coisa a sério, escrevo à mão e sendo assim tem de ser com caneta de tinta permanente. Para mim é tão importante escrever a previsão do estado do tempo ou notas, lançamentos sobre o que vou falar ou com quem for falar e isso tem de ser com tinta permanente.
Quando fico sem tinta não é a mesma coisa, socorro-me de uma esferográfica, mas acho que há uma ligeireza, não me sinto tão seguro.
Eu não falo para os ouvintes, os ouvintes lá estão, mas falo para O ouvinte. Basta falar para uma pessoa.Como é que se prepara uma emissão da manhã?
Tenho uma ideia do que se vai passar na manhã e por isso falo com o editor, para estar de posse para qualquer eventualidade. Mas a emissão da manhã tem mais a ver com todos os conteúdos que a manhã incorpora.
Todas as manhãs penso numa pessoa e faço a emissão toda a pensar nessa pessoa e a fazer a emissão para essa pessoa. E a pessoa existe, está ali comigo à minha frente. E se falo para ela, então tenho a certeza que estou a falar para toda a gente. Eu não falo para os ouvintes, os ouvintes lá estão, mas falo para O ouvinte. Basta falar para uma pessoa.
Vou sempre saber tudo o que tenho de manhã, saber o conteúdo das rubricas e encontrar um fio condutor que me conduza durante toda a emissão. Eu sei tudo da emissão - muitas vezes não sei - tudo o que tenho na mão é o melhor do mundo e é isso que tenho de dizer.
Ainda fica nervoso antes de entrar no ar?
Muito, todas as manhãs. 'Pego-me' comigo próprio, enervo-me, deixo de ver o sistema operativo, deixo de ver o ecrã, tiro os óculos, tremo, uns dias de uma forma, outros de outra, mas todos os dias há qualquer coisa. E quero estar assim, no dia em que eu não estiver assim as coisas vão mal. E às vezes não estou. Se não estiver assim não estou concentrado. Mesmo se tiver uma coisa com meia hora no ar, tenho de estar sempre atento, sempre “com a panela ao lume”, isto é idêntico a cozinhar, a fazer um prato.
Sou um imediatista, sou um executor. As ideias na Rádio podem surgir num segundo Tem um lugar para si na redação do terceiro andar, mas prepara sempre as emissões dentro do estúdio, porquê?
Porque é aqui que as coisas acontecem. É aqui, não é em mais lado nenhum. Mesmo quando tive responsabilidades de gabinete, o gabinete era com vista para o estúdio. É onde me sinto bem e é onde as coisas acontecem. Sou um imediatista, sou um executor. As ideias na Rádio podem surgir num segundo, a meio de uma emissão, podem surgir de repente e isso pode alterar consideravelmente o que estávamos a planear inicialmente. Acontece e é bom que aconteça.
Noutros tempos em que se fazia muito mais diretos e em que trabalhávamos com discos de 35 rotações e em que tínhamos de pôr a agulha em cima da faixa. Mas nesse tempo chegava a tirar um disco que estava alinhado a 15 segundos de estar no ar, e por outro, mesmo tendo de procurar a faixa, porque me tinha ocorrido outra coisa qualquer.
Gosto de ter tudo sempre em ebulição, hoje em dia é mais difícil fazer isso, especialmente num programa da manhã da Antena 1, porque o programa não é meu, sou o porta-voz da direção de programas que o criou. Na prática é executado por mim, mas é o resultado de um conjunto de ideias muito vastas, até o podia assinar, mas na verdade não é meu.
A Rádio hoje para o bem e para o mal está muito padronizada. Funciona num fluxo permanente Diziam que o vídeo matou a estrela da Rádio ('Video killed the radio star'). Sente que ao longo dos anos isso tem acontecido ou a Rádio ainda tem muito para dar?
Não acho que tenha acontecido. Acho é que a Rádio teve estrelas, mas hoje em dia a ideia de estrela da Rádio acabou. A exigência dos públicos em relação à Rádio passou a ser outra. A Rádio hoje para o bem e para o mal está muito padronizada e portanto aquela pessoa que estava na rádio e que assinava um programa, já não existe. Hoje em dia a Rádio funciona num fluxo permanente e isso implicou que as estrelas vissem o seu papel atenuado, que o público dê menos importância a quem lhe está a dizer as coisas e mais ao que está a ser dito.
Mas ainda é uma estrela da Rádio?
Eu ainda sou de um tempo de ligação, como tenho muitos anos disto e muito tempo no horário da manhã, sou reconhecido felizmente por ser da rádio. Quando sou interpelado é raramente por qualquer outra razão, por aparecer na televisão, nada disso, é por ser da rádio. As pessoas falam comigo com uma educação absolutamente gratificante, é nesses momentos que sinto que o trabalho que faço na rádio é importante. Agora, para que isto se possa, ainda hoje, passar foi necessário pertencer a uma geração que foi testemunha e protagonista dessa transição de um tipo de rádio para o outro e porque a rádio é muito demorada a fazer públicos, também é mais duradoura do que a televisão, a que se conheçam as pessoas.
Há muito tempo que a Rádio não é notícia e a Rádio precisava, neste momento, de ‘levar um encontrão’ Qual é o estado da Rádio hoje em dia?
Neste momento acho que está parada em termos de evolução. Não há nada novo, há muito tempo que não há um sobressalto. Há muito tempo que a Rádio não é notícia e a Rádio precisava, neste momento, de ‘levar um encontrão’, mas isso vai acontecer. Não sei quem é que o vai protagonizar, pode ser aqui na Antena 1, na Antena 3 ou numa Rádio qualquer, mas vai acontecer alguma coisa, porque faz parte da natureza da própria Rádio entrar nestes ciclos.
Neste momento o que sinto é que estamos parados, estamos em cima do que foi feito, adormecidos. A rádio, embora se mexa todos os dias e haja sempre gente nova a entrar, ainda não há nada que marque mesmo. Pode haver minutos marcantes, mas o padrão neste momento é um padrão acinzentado, obviamente com diferenças de estação para estação, mas no fundo, todo muito igual, principalmente nas rádios generalistas. A Antena 1, posso dizê-lo com alguma segurança e também com alguma arrogância, deve ser a menos padronizada de todas. As outras estão a fazer uma marcação muito intensa umas para as outras, por causa de audiências entre outras coisas, e estão quase todas a falar a mesma língua e do mesmo.
A Rádio não perdeu o público, por isso se vier o encontrão, vai crescer outra vez como cresceu nos anos 60, 70, 80 e 90.
Oiço Rádio como ouvia antes de trabalhar na Rádio. Só um disparate ou uma coisa muito bem feita é que me faz reagir profissionalmenteAo longo deste anos todos a magia da Rádio não se perde?
Isso continua a ser um dos segredos. O facto de eu viver no interior da Rádio, não levou a magia. Por acaso a sua pergunta é porreira, porque agora vou dizer em voz alta uma coisa que nunca tinha verbalizado. Eu oiço Rádio como ouvia antes de trabalhar na Rádio. Só um disparate ou uma coisa muito bem feita é que me faz reagir profissionalmente. Mas de resto funciona para mim exatamente como sempre funcionou. Há pessoas que trabalham na Rádio, noutras estações, que não conheço e que não sei como são e reajo exatamente da mesma maneira que reagia antes de fazer Rádio. Imagino-as como imaginava um Artur Agostinho antes de o conhecer ou o Carlos Cruz antes de o conhecer. Crio uma imagem na minha cabeça. No essencial, oiço como ouvia antes, penso se está a ser útil, se estou a gostar.
Está sempre rodeado de Rádio e de música no trabalho. Quando sai desse ambiente ainda quer ouvir alguma coisa?
Tenho um aparelho que me ofereceram [um iPhone], que de vez em quando me lembro que também faz chamadas. Mas que está sempre com auscultadores e ando sempre a ouvir música. Neste momento tenho aqui cerca de 2.500 canções de todos os géneros musicais e também posso ouvir Rádio quando quero.
E também costuma ler? Consegue arranjar tempo com uma rotina mais difícil em termos de horário?
Nem que seja meia hora por dia, tiro sempre um bocado. Agora estou a ler o livro do Kalaf Epalanga, o primeiro romance dele ‘Também os brancos sabem dançar’. Ando sempre com o livro que estou a ler. Como ando de transportes, porque não ando de carro, tenho carro mas enervei-me há uns anos e passei a andar de transportes. Estou a gostar do livro, estou a aprender muito sobre música africana, sobre kuduro, coisas que não fazia ideia e que estou a aprender. Enquanto romance é uma peça estranha, tal como ele explica é um romance musical, mas não era isto que estava à espera. Mas está bem escrito e é muito interessante como fonte de informação, já tirei notas e notas sobre nomes que nunca tinha ouvido falar. Fez com que me interessasse mais sobre este tipo de música e com que perdesse alguns preconceitos sobre a música negra que não conhecia. E quero ir saber mais.
Com uma carreira longa como a que tem, o que é que ainda falta fazer?
Falta-me, e que já não vou fazer, acompanhar uma Volta a Portugal em bicicleta, que gostava muito de fazer e nunca aconteceu. Falta-me fazer outra vez um programa meu de Rádio que me satisfaça, gostava de voltar a fazer, acho que ainda conseguia. Falta-me fazer uma grande entrevista ao Manuel Alegre, que é para mim um símbolo da luta pela democracia e pela liberdade. É um símbolo que valorizo tanto como valorizo o hino nacional e a bandeira, ou a palavra ‘pátria’.
O meu primeiro gesto voluntariamente antifascista, ou antiregime, foi comprar o ‘O Canto e as Armas’, do Manuel Alegre, por baixo do balcão da Havaneza, na Figueira da Foz. Creio que me custou 14 escudos e 50 centavos. Acho que é um homem de uma firmeza incrível, é uma pessoa íntegra e que tem aquele traço do povo transmontano, que pode ostentar essa integridade e essa dignidade com altivez e que não é uma manifestação de superioridade. É uma manifestação de personalidade rija, forte, e nesse sentido marcante. Gosto muito disso.
Qual a entrevista ou entrevistas que durante a sua longa carreira mais gostou de fazer?
É muito difícil dizer, muito mesmo. Tive algumas que fiz que me comoveram um bocado. Tive uma com o Zé Afonso [Zeca Afonso] que foi no principio, quando lhe foi diagnosticada a doença [esclerose lateral amiotrófica] que o acabou por vitimar cinco ou seis anos depois. E nessa entrevista há um principio de testamento, ele começa a fazer contagem decrescente, a fazer um balanço. Havia algumas esperanças de ele ser tratado na Roménia, mas em princípio sabia-se que era incurável. Eu ouvindo hoje a esta distância, percebo que faz um balanço, que diz o que lhe falta fazer, o que ainda vai fazer.
Alguma outra de que se lembre?
Tenho tantas outras.. Há cerca de dez anos entrevistei a Madalena Iglésias, ali no estúdio 12 da Antena 1 e foi um prazer. Acho que correu muito bem, falámos de tudo, tudo direitinho e passado algum tempo encontrámo-nos no lançamento de um livro e o Eládio Clímaco que lhe diz “Eu tinha razão, vês o que te dizia” e depois ela então confessou-me que tinha ido dar a entrevista a medo porque muita gente lhe tinha dito que eu era um tremendo de um comunista tramado, que lhe ia fazer a vida negra durante a entrevista e que ainda acabava por me agredir. E ela veio na expetativa de vir discutir comigo, então depois ficou muito surpreendida pela positiva. Gostei muito, é uma mulher de peso, é uma mulher de armas, que fez a sua vida em tempos muito complicados.
As suas ideologias políticas assumidas alguma outra vez lhe trouxeram problemas?
Sim, mas é o lado para o qual durmo melhor. Trouxe problemas pessoais, profissionais, mas nada que valorize. Valorizei na altura dos acontecimentos, hoje desvalorizo completamente, à hora da morte não devo desvalorizar nada, pelo contrário. Mas são coisas que estão guardadas e em que não penso.
A reforma não me assusta nada e quero reformar-me, mas acho que sou incapaz de me reformar
Depois destes anos todos no ativo, a reforma é uma hipótese que o assusta? Como encara a ideia da reforma?
O que lhe vou dizer é contraditório e paradoxal. A reforma não me assusta nada e quero reformar-me, mas acho que sou incapaz de me reformar. Não me consigo imaginar a estar mais de um mês a viver sem isto. Mas eventualmente vou ter de parar. Fiz 67 anos. Pode parecer que não, mas sou um velho sexagenário, deixei de ter nome. Se for atropelado e fizerem notícia disso, deixei de ter identidade.
Agora, reformar-me-ei formalmente, mas não vou parar. Devo fazer rádio na internet, criar um podcast, mudar de meio.
Como seria esse projeto? Seria sobre quê?
A minha primeira ideia é impraticável. Seria uma Rádio sempre em direto, sempre de microfone aberto, sem paragem. Com música sempre em direto, quem aparecesse com uma viola, tocava e cantava, publicidade em direto, toda a informação em direto. E claro não podia ser só eu, tinha de ter uma equipa organizada. A rádio tinha de ter um modelo. Começar com quatro horas, passar para seis ou para oito e depois ir fazendo crescer o modelo à medida das horas até chegar às vinte e quatro. Eu via-me a fazer uma coisa destas, pelo menos no primeiro mês. Mas isto é de doidos!
Como vê esta nova geração que escolhe fazer Rádio? Vê neles um pouco de si?
Há uma coisa que eu aprecio particularmente e que me toca, que é a malta que vem para a Rádio pela Rádio e não como um trampolim. Querem-se exprimir neste meio, querem trabalhar neste meio e não noutro. E há muita gente, muito mais do que eu pensaria que fosse possível, apesar de a Rádio hoje ser um meio desconsiderado - infelizmente, é o parente pobre, ainda ou outra vez - e acho isso notável.
E depois há gente, nos últimos oito nove anos, francamente habilidosa, talentosa, trabalhadora, esforçada que apareceu aqui na Antena 1 ou na Antena 3. Apareceu gente muito boa mesmo e que pode, perfeitamente, ser protagonista da grande reviravolta de que falava, do sobressalto que é preciso. Hoje a preparação é muito melhor do que antigamente, não há comparação possível.
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