"A Direita só vai regressar ao governo se tiver um projeto aspiracional"
Francisco Mendes da Silva é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
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Política F. Mendes da Silva
Advogado, deputado por um mês e uma das figuras do 'Sem Moderação', Francisco Mendes da Silva falou com o Notícias ao Minuto sobre a política e sobre a vida.
Pouco adepto da ‘geringonça’, Francisco Mendes da Silva reconhece-lhe o facto de ter trazido algo de novo à política portuguesa, algo que dá também ao CDS uma "oportunidade histórica" para crescer.
Para tal, porém, há quem à Direita tenha ainda de reconhecer esta "nova normalidade". Porque há quem "ainda não tenha saído do quadro mental do resgate" da troika.
Já mais para o final da entrevista, Francisco Mendes da Silva explica-nos que há quem lhe pergunte como é que é do CDS quando é tão alternativo noutras coisas, como a música.
Conta-nos, a esse propósito, que em tempos de Cavaco Silva, nos anos 90, também à Direita havia vozes de oposição, que ganhava força nas páginas de um semanário que "era quase como o punk-rock da política", O Independente.
Assunção Cristas diz estar pronta para ser primeira-ministra. Acredita nessa possibilidade?
Se tivéssemos de fazer uma aposta, ninguém que quisesse ganhar poderia dizer com certeza que o CDS terá um resultado que permita liderar um governo. Nós sabemos as condições de partida de cada partido. Mas um membro, e ainda mais um líder, de um partido que queira ser governo, tem necessariamente de dizer que está preparado para tal. E o CDS não é um partido fora do sistema. Nos últimos 15 anos esteve metade desse tempo no governo. Mas há aqui outra nuance para este tema. É que a solução governativa que temos, a geringonça, que é de certa maneira artificial porque é uma coligação meramente negativa, a verdade é que é legítima. E muda tudo. A partir do momento em que se percebe que o costume constitucional de que forma governo quem tem mais votos não existe...
A 'velha' questão do voto útil é anulada?
Pode ser. Quando se fala de voto útil fala-se de várias coisas. Há o voto útil, por exemplo, das pessoas que à última hora preferem votar PSD em vez de CDS porque o PSD pode ganhar as eleições. Esse é um voto tático. Mas também há pessoas que geralmente são de Direita e que votam no PSD porque é o partido maior. É um voto por habituação. Aquilo que já se percebeu é que isso agora passa a ser irrelevante. O que interessa não é quem chega à frente mas quem consegue formar uma maioria. E isso gerou uma oportunidade histórica que o CDS não pode deixar de aproveitar.
Há um risco evidente de o CDS ser visto como uma 'muleta' permanente do PSD, que é algo para o qual não quero contribuir de todoO CDS esteve no poder acompanhando o PSD. Há o risco de um certo eleitorado tomá-lo como apenas um parceiro do PSD?
Há um risco evidente de o CDS ser visto como uma 'muleta' permanente do PSD, que é algo para o qual não quero contribuir de todo. Mas há uma coisa inelutável: no espectro político-partidário português, o PSD é o partido que está mais próximo, ideologicamente, do CDS. Isto mesmo que muita gente no PSD tenha medo de dizer que é de Direita, o que é uma coisa verdadeiramente patética, porque uma pessoa fala com as pessoas do PSD, conhece o eleitorado do PSD, e as pessoas são estruturalmente de Direita. É por isso que é óbvio que para o CDS não é igual uma coligação com o PS ou com o PSD.
Mas o CDS poderia vir a ser parceiro de um governo PS num eventual fim de ciclo da ‘geringonça’?
Coloca-se muito essa questão e eu costumo responder da seguinte forma: se o PS precisar de um partido à Direita para formar uma coligação, falhando a 'geringonça', porque é que não pergunta sempre ao PSD primeiro? É o partido que está mais próximo do PS.
Este PSD de Passos Coelho não se radicalizou um pouco, afastando-se do PS?
O que se radicalizou foi a realidade. O PS do final dos anos de Sócrates que começou com os PEC de austeridade, com o aumento de impostos e cortes, não foi um PS que se radicalizou? Não. Foi o PS que estava no poder naquele momento histórico. Aliás, não me parece que haja hoje uma diferença fundamental de políticas entre o PSD e o PS. Uma coisa é estarmos a falar das diferenças, durante os anos da troika, entre a prática que havia do governo de então e o discurso do PS e da Esquerda em geral.
Como assim?
Nós sabemos com que plataforma o PS e a Esquerda foram para eleições: a austeridade tem de ser revertida, imediatamente e em força. Houve quem dissesse que teria de se abdicar de uma de três coisas: de cumprir as metas do défice, de descer a dívida ou de crescimento económico. O que se provou foi que era possível manter estas três coisas juntas. Não houve cá nenhum corte de dívida ou renegociação, e o défice não só continuou a descer como desceu mais do que o Governo se comprometera com a Comissão Europeia. Ao ponto de o PS fazer disso o alfa e o ómega da sua governação e espalhar cartazes sobre 'o défice mais baixo da democracia portuguesa'. Logo este PS, que inclusivamente para chegar a esse défice ativou um nível de cativações nunca antes visto.
Este Governo tem feito opções distintas do anterior e a Direita caiu nessa esparrela
Em novembro, partindo de uma citação de António Costa ("a ilusão de que é possível tudo para todos já não existe"), assinou um artigo que falava no fim do fim da austeridade. Vê, apesar de tudo, diferenças entre estas 'austeridades'?
É óbvio que, dentro do espírito da austeridade, isto é, o espírito de quem percebe que apesar de a troika ter saído de Portugal os nossos desequilíbrios não desapareceram, é sempre possível fazer políticas diferentes, mesmo dentro da mais pequena das amplitudes políticas. Este Governo tem feito opções distintas do anterior e a Direita caiu nessa esparrela: estamos sempre a comparar o que este Governo está a fazer com o que o outro fez cumprindo um memorando de entendimento de resgate internacional. Quando aquilo que devemos comparar é o que este Governo está a fazer com o que os partidos da Direita prometeram fazer no pós-troika.
O que a coligação PSD/CDS prometia era próximo do que o que o PS acabou por fazer no poder?
A recuperação de rendimentos já lá estava, por exemplo. Era mais lenta mas não o era por pirraça ou por ideologia, era mais lenta na exata medida em que não fosse necessário aprovar medidas de contrapartida como este Governo acabou por ter de aprovar, como com o aumento da tributação indireta. Sinceramente não há uma grande diferença entre aquilo que o PS acabou por fazer, aproximando-se do que era uma política que antes dizia que era radical, daquilo que por exemplo o PSD podia estar a fazer no Governo.
Acho que faltou ao anterior governo uma nota de esperança para as pessoas perceberem que o Governo não estava a fazer aquilo por gostoSempre defendeu que a austeridade dos tempos da troika era uma necessidade. Aquele famoso 'ir além da troika' de Passos Coelho condicionou o discurso à Direita?
A interpretação que se fez disso, acho que sim. Isso significou uma coisa na cabeça das pessoas. O país estava sob resgate, as condições eram muito difíceis, mas acho que faltou ao anterior governo uma nota de esperança para as pessoas perceberem que o Governo não estava a fazer aquilo por gosto. As pessoas sentiram que o governo de então poderia estar a encarar os anos da troika como oportunidade de implementação de um programa. Acho que a liderança do governo não teve cuidado em afastar essa ideia. E também foi um bocado por causa disso que houve tensões na coligação, como na crise da TSU em 2012.
Na altura, a medida não foi unânime dentro do próprio executivo.
O CDS não gostou porque sentiu que era uma medida simbólica que teria um efeito terrível. O que tínhamos era uma medida de austeridade que baixava o esforço aos patrões e o pedia aos trabalhadores. Isto era politicamente ruinoso. Nem estou a dizer que não fosse economicamente bem sucedido – a verdade é que nunca foi tentado. Mas fazer de cobaia já era mau o suficiente. E depois teria efeitos políticos de tal maneira perversos que sempre achei que anulariam qualquer efeito positivo que a medida pudesse ter.
A Direita só vai regressar ao Governo se tiver um projeto aspiracional. A Direita tem de sair do quadro mental do resgate
Com a saída de Passos Coelho o PSD vai a eleições. Tem preferência por algum dos candidatos?
Nenhuma. Como dirigente do CDS nem me cabe dizer, mas posso dizer que a Direita só vai regressar ao Governo se tiver um projeto aspiracional. A Direita tem de sair do quadro mental do resgate. Os portugueses têm de perceber que a Direita governou daquela maneira por causa do resgate. O grande problema do discurso sobre défices, e de que vem aí o diabo, é que de cada vez que a Direita fala disso, mesmo que muitas vezes com razão, está sempre a atirar [o discurso] para 2011, 2012, 2013, …A Direita tem de falar para a frente.
E como é que pode fazer isso?
Tem de perceber que há uma nova normalidade e que, com todas as dificuldades que o país ainda atravessa, nessa nova normalidade há felizmente um regresso do PS à perceção de que o país tem problemas. O PS, que parecia imoderado orçamentalmente, voltou à moderação, e o tema agora já não é se vem o diabo ou não. É o que nós, com os bens escassos que o país tem, vamos fazer em prol das pessoas, é a relação que queremos entre cidadãos e Estado, como dar aspiração aos mais novos. E eu não vejo no PSD nenhum dos candidatos a falar disto e tenho dúvidas de que, por estarem tão enraizados no passado do PSD, tenham alguma coisa a dizer de substantivo quanto a isto.
Há também aqui uma oportunidade para o CDS conquistar eleitorado ao PSD.
Sim. E recomendo que se leiam os discursos de Paulo Portas de quando saiu, não que eu queira estar a puxar a cassete atrás mas porque mostrou que o CDS percebeu a nova circunstância política: a de que o voto deixou de ter donos. Não há nenhuma razão tática para que as pessoas devam dar um voto a um partido quando acreditam mais nas ideias de outro. Isso faz com que o CDS tenha campo aberto. Mas isso implica que o CDS tem de deixar de ser o partido de nichos. Percebo que no passado o CDS tinha o PSD sempre a abalroá-lo como partido maior daquela área política. Para se diferenciar, tinha de ser ilustrativo. Tinha de ser o partido dos contribuintes, ou dos reformados. Não se desviava da sua ideologia mas tinha de a ilustrar e, por isso, parecia de nichos. O CDS tem de ser um partido claramente de centro-direita, abrangente. Outra coisa a ter em conta é que tem de perceber o eleitorado mais central, que pode oscilar. Esse é um eleitorado que tende a valorizar a renovação.
Surpreendeu-o a durabilidade da 'geringonça'?
Não.
Houve quem vaticinasse que seria projeto para um ano.
Se há coisa que a Direita devia ter, e de que normalmente se orgulha em ter, é uma noção mais acertada do que a Esquerda sobre a condição humana. A 'geringonça' surgiu de uma necessidade política do PS e de uma coligação negativa, para impedir a direita de continuar a governar. Há uma coligação de ódios, e isso normalmente é mais forte do que uma coligação positiva. A 'geringonça' é uma coligação parlamentar para algumas medidas de recuperação de rendimentos que foram cumpridas praticamente logo. Não há ali nenhuma articulação política.
Em 2019 podemos imaginar uma nova versão da 'geringonça' nos moldes atuais ou as coisas terão de ser diferentes à Esquerda?
Isso é lá com eles. O que eu acho é que é difícil. Não acho que seja possível um entendimento positivo entre o PS do líder do Eurogrupo [Mário Centeno] e o Bloco de Esquerda e o PCP. O que não quer dizer que não seja possível uma 'geringonça', porque se for necessária para impedir a Direita de regressar ao poder, provavelmente o PCP e o Bloco vão para o mesmo. O incentivo para uma coligação negativa é sempre mais forte do que para uma coligação positiva. O problema é que podemos ter aqui anos e anos de um país adiado, de reformas que é necessário fazer e não são feitas, porque são impossíveis numa coligação à Esquerda e são impossíveis ao Centro porque o PS, tendo em conta o apoio parlamentar que tem, não pode fazer reformas com a Direita.
Centeno presidente do Eurogrupo? O PS fez um spin como se tivesse vencido os Jogos Sem Fronteiras. Foi patéticoFez referência a Mário Centeno. Como vê o impacto desta eleição para o Eurogrupo?
O PS fez um spin como se tivesse vencido os Jogos Sem Fronteiras, como disse o Daniel Oliveira. Tentou fazer uma celebração patriótica de algo que não tem o significado que lhe quiseram fazer. Foi patético. Mas quem anda no meio político sabe que parte do PS e a sua Esquerda tinham muito receio disto. Não porque a eleição fosse prender o Governo ainda mais à ortodoxia financeira e económica da União Europeia, mas porque ia revelar que o PS não está de fora desse quadro da ortodoxia europeia. E basta ver a diferença no discurso de celebração e as notícias da imprensa internacional.
Mas não haveria aqui uma mensagem que a Europa quereria passar? Estou a pensar que Jeroen Dijsselbloem era próximo do discurso de Wolfgang Schauble enquanto Centeno pode representar uma espécie de ‘caso de sucesso’ alternativo na Europa.
Sim, claro. Mas, para a Alemanha, o caso de sucesso não é o ter havido ‘uma política diferente da nossa’ a ter sucesso. É antes ‘a nossa política teve sucesso com um socialista a implementá-la’. Esta é que é a narrativa.
Portanto a escolha de Centeno é também um recolher dos louros por parte da tal ortodoxia europeia.
Claro. E não sou só eu que o digo, muita gente à Esquerda diz isto. Por isso é que acho que houve uma grande ambiguidade e até artificialidade na celebração do PS. Não houve obviamente celebração por parte do Bloco e do PCP. Mas, dito isto, também é muito interessante para a Direita. A Direita tem de perceber que a única estratégia disponível é regressar à normalidade.
O discurso de que as políticas de Centeno eram risco de ‘desgraça’ também teve o seu fim com isto?
Começou a ter o fim logo no início quando Centeno começou a aplicar uma política orçamental bastante diferente da do discurso do PS de quando foi a eleições e quando percebemos que o PCP e o Bloco foram ‘encostados às cordas’ na negociação dos fundamentos da política orçamental. Não há cá nenhuma redução de dívida, não há cá nenhum renascimento das metas do défice, não há cá nada disso. Logo por aí a Direita devia ter percebido que não faz sentido o discurso do diabo. Não só porque se o diabo viesse não era porque o PS estivesse a ter uma política substancialmente diferente da Direita; e até porque não interessa a ninguém na Europa que haja outro caso como o da Grécia ou de Portugal.
E o que é que mudou na Europa? Questões como o Brexit mudaram uma certa ortodoxia no discurso?
Mas o que é que mudou na ortodoxia?
Estou a pensar que a Europa se viu também perante um avanço do populismo em vários países e perante a saída de rutura de um membro comunitário, que podiam trazer receios à própria ideia de um projeto europeu.
Acho que houve uma confluência de fatores. Para já houve um momento seminal de recuperação da crise, com a decisão do BCE, com Mario Draghi a dizer que estava pronto para comprar a dívida que fosse necessária. Isso foi muito importante para Portugal. Depois houve obviamente a perceção internacional de que, quer o anterior o governo, quer este, têm como política cumprir aquilo com que nos comprometemos com a Europa.
Recuperação beneficia de uma coisa que raramente é dita. É que depois da austeridade há a fadiga de austeridadeDar essa garantia foi uma das primeiras preocupações do PS ao assumir o Governo.
Claro que sim. Essa confiança é importante. Depois é preciso perceber que a Europa começou a crescer, e o nosso crescimento beneficia com isso. Mesmo que a Europa não esteja com crescimentos extraordinários, há uma sensação nítida, que os números atestam, de que batemos no fundo e estamos a recuperar. A recuperação é lenta mas existe. E depois essa recuperação beneficia de uma coisa que não sei se está suficientemente estudada, e que raramente é dita. É que depois da austeridade há a fadiga de austeridade.
Falamos do quê?
O primeiro grande problema dos momentos de crise é a perceção de que está instalada uma crise. Nessas alturas há uma retração e um medo grande. O investimento cai a pique, a economia cai a pique, todos os indicadores caem a pique. Depois há sempre um momento em que há fadiga dessa austeridade e da própria crise. Há como que uma aceitação do novo normal e as pessoas, a partir daí, começam a investir lentamente. Aquela ideia da espiral recessiva, que nunca mais iria parar, acabou. Chegou a um certo momento em que não havia mais a ganhar com isso e a Europa começou a investir. Não interessa à Europa continuar a manter as feridas abertas, é preciso mostrar que os casos foram de sucesso, mesmo que não tenham em alguns aspetos tido o sucesso que se queria.
Um caso que tem marcado a atualidade é o da Raríssimas. Houve a saída de um secretário de Estado. É um caso que pode ter impacto no próprio Governo?
O caso ainda vai a meio, mas o que acho extraordinário é que, cada vez que uma situação de alegada promiscuidade que envolve políticos acontece à Direita, o discurso da Esquerda é que isso é um problema intrínseco da Direita. Sempre que uma coisa destas acontece à Esquerda, a Esquerda tem duas táticas.
Raríssimas: Quando o PS começou a perceber que não era possível atirar culpas para a Direita, há a tática de chutar para a atmosferaRefere-se a que táticas?
Uma delas é tentar culpar a Direita, veja-se a cartilha dos comentadores de Esquerda, o que se tentou fazer foi inclusivamente dizer que era um problema do anterior governo, que retirou a obrigatoriedade das IPSS terem ROC [Revisor Oficial de Conta]. Num assunto em que temos envolvido o atual ministro da Segurança Social, o ex-secretário de Estado da Saúde, uma deputada do PS, em que nas notícias que vieram a público se mostra como na instituição havia quem sentisse que era importante o regresso do PS ao poder, e o problema é uma decisão do anterior Governo? Não é.
Quando o PS começou a perceber que não era possível atirar culpas para a Direita, há a tática de chutar para a atmosfera, que é falar de tudo o que é lateral: os limites do jornalismo, as relações entre as IPSS e o Estado, o financiamento das IPSS, etc, etc. E é aqui que quero chegar: as minhas duas grandes preocupações são manter a instituição a funcionar, que apesar de tudo tem um trabalho hiper-meritório, e que este caso não desvalorize a necessidade das IPSS. Para abafar a questão política imediata está a fazer-se um discurso de deslegitimização ideológica do terceiro setor, com pessoas a começarem esta conversa com o discurso de que as IPSS se substituem ao Estado.
Eu percebo que as pessoas em Lisboa e no Porto não tenham bem a noção disto, mas em grande parte do interior do país não foram as IPSS que se substituíram ao Estado. Não foi o Estado que recuou. As IPSS fazem trabalho onde o Estado nunca chegou ou onde tem dificuldade em chegar. Eu não estou disponível para um debate ‘anti-IPSS’.
Mas não há o risco de um caso individual afetar a imagem da gestão que é feita nas IPSS?
Claro que há, e é precisamente por isso que sei que é o caso individual que tem que ser visto. Fazendo um parênteses: sou totalmente a favor da investigação jornalística e de as sociedades estarem preparadas mesmo para alguns exageros do jornalismo, porque é assim a liberdade numa sociedade livre. Mas não estou disponível para achar que uma peça jornalística é uma sentença judicial. É preciso averiguar o que se passou para retirar as conclusões exatas. Não é olhar para isto, dizer que há aqui um perigo, e começar a falar genericamente sobre o terceiro setor. Aí é que retiramos conclusões que levam de arrasto todas as IPSS. E eu estou convencido de que a maior parte não terá um problema como os que esta tinha.
E como vê a relação de Marcelo Rebelo de Sousa com o Governo? O discurso após os incêndios de outubro que antecede a demissão da ministra mudaram irremediavelmente as coisas?
Julgo que sim. Não no sentido de achar que antes de isso o Presidente da República era um indefetível do Governo e que depois disso passou a sê-lo da oposição. Não é isso. Mas há ali um momento do discurso a que acho que na altura não se deu a devida importância: Marcelo é um constitucionalista experimentado e a dada altura, quando já se sabia da moção de censura do CDS, Marcelo diz que o Estado falhou e diz uma coisa que não é constitucionalmente muito exata, que a Assembleia da República é que sabia se tinha de continuar a dar apoio a este Governo.
É óbvio que depois da revisão constitucional de 82 o Governo só depende da Assembleia, não responde politicamente perante o Presidente. Mas isso é um princípio formal, complementado com uma relação que há de confiança entre Governo e o Presidente. O Presidente pode demitir o Governo, pode dissolver a Assembleia da República, inclusivamente por achar que o Governo não funciona. Foi o que supostamente Jorge Sampaio fez [no tempo de Santana Lopes].
Sabendo que Marcelo é constitucionalista experimentado, e que o Presidente quer sempre ter essa relação de confiança e os governos querem beneficiar dessa confiança, ainda para mais este Governo (qual é o governo que não quer beneficiar da confiança do Presidente mais popular de todos os tempos?), porque é que Marcelo disse isto? Entendi isso como um 'a minha confiança está de certa forma ferida'.
Esquerda tentou colar ao Presidente a caricatura mítica de Marcelo como um intriguista palaciano. Acho que lhes correu pessimamente
Houve quem apontasse a Marcelo estar a ser um ator político.
Isso foi uma tática que a Esquerda fez e que acho que lhes correu pessimamente, que foi tentar colar ao Presidente a caricatura mítica de Marcelo como um intriguista palaciano. Até pode ser plausível. Mas foi o pior momento de todos para lhe fazerem isso. Uma coisa era Marcelo ter feito algo polémico, que divida as pessoas. Outra coisa foi ter feito aquilo que a esmagadora maioria dos portugueses achava que devia ter feito. Aliás o PS plantou no Público a notícia – e quando estou a dizer isto, sei que plantou, [são] fontes do próprio PS – a dizer que Marcelo já sabia que a ministra ia ser demitida.
Mas independentemente de ser ou não no dia em que foi, na altura não era já previsível a demissão?
Não sei. Mas a questão é a seguinte: António Costa disse a Marcelo que a ministra ia ser demitida antes ou depois do que disse na noite dos incêndios, quando respondeu que a demissão era "infantil"? É que a minha interpretação é essa mesma: Costa terá dito a Marcelo que a ministra ia sair, mas provavelmente até disse na sequência [da tragédia] de Pedrógão Grande, ou no início de setembro. Mas quando se viu sob pressão com os incêndios de 15 de outubro resolveu fazer aquela figura ao dizer que não era a coisa mais adulta. Acho que por isso é que Marcelo sentiu necessidade de basicamente demitir a ministra em direto.
Nas últimas autárquicas foi o primeiro centrista a defender que o CDS devia demarcar-se da candidatura de André Ventura após as polémicas declarações do candidato. Em Loures o PSD teve quase 22% dos votos, ganhou mais um vereador e Ventura disse até que o PSD devia "pôr os olhos" nos resultados obtidos. Que lições retirou das autárquicas em Loures?
Deixe-me primeiro explicar que na altura fiz um post no Facebook em que não conseguia medir [o alcance]. Foi bastante surpreendente. Fiz o post 'a quente'.
Se bem me lembro, e parafraseando, terminava com algo como 'se for desta maneira, mais vale uma derrota'’.
Foi interpretado assim mas não disse exatamente isso. Ou então disse algo assim [risos] mas não interessa.
[a publicação em causa terminava com a seguinte frase: “(…) Se perder, tudo bem: que nem mais um dia o meu partido fique associado a tão lamentável personagem”].
O mais importante sobre essa matéria escrevi depois num artigo no Jornal de Negócios em que explico o seguinte: eu conheço o discurso de André Ventura sobre vários assuntos. Eu não sei se ele é racista, se é xenófobo, se o que é que é. Não consigo medir isso. O problema, e foi o que senti na altura e daí achar que o CDS não devia estar ligado a este tipo de candidatura, é que é um político que não está cá para resolver os problemas das pessoas. Está cá para acicatar os ânimos para ganhar votos.
A questão é se nós queremos os pirómanos a guardar o barril de pólvora. E André Ventura é um dos pirómanosJá conhecia algumas das ideias de Ventura?
Eu amiúde contacto com os artigos e opiniões, políticas e não só, do dr. André Ventura. Há um artigo que ele escreveu na sequência de ataques de terrorismo islâmico em que diz que a única solução para salvar a Europa do terrorismo era reduzir drasticamente a presença de muçulmanos na Europa. Não explica como. Eu pergunto: como é que isto se faz em sociedades democráticas? Com deportações em massa? Se é que, enfim, desejamos isso. Acha que ele está preocupado em pensar nisso? Esse é que é o problema: é o típico político populista.
No caso dos ciganos foi a mesma coisa. Houve quem me criticasse por achar que não havia problema. Eu nunca disse que não há um problema. A questão não é saber se é um barril de pólvora. A questão é se nós queremos os pirómanos a guardar o barril de pólvora. E o dr. André Ventura é um dos pirómanos. Basta ver que, cada vez que lhe punham um microfone para dar soluções para o problema dos ciganos (e eu acho que há um problema de integração, mas na nossa sociedade os problemas de integração têm de ser resolvidos de acordo com os nossos valores), ele defendia transformar a polícia municipal num exército, para obrigar os ciganos a ‘comportarem-se’. O dr. André Ventura é um reputado professor de Direito Penal. Ele sabe que a polícia municipal não tem legalmente poderes para atuar como se fosse um exército, mesmo que estivesse a referir-se a exército em termos metafóricos. Depois disse que, para receberem subsídios, deviam ter de frequentar cursos de civilidade. E porque é que os não ciganos não teriam de cumprir o mesmo? Seria um caso claro de discriminação. Acha que isto é alguém que quer resolver os problemas?
A sua posição valeu-lhe algumas críticas.
Fui criticado por pessoas que me diziam ‘tem de ir a Loures’. Eu conheço comunidades ciganas. A parte mais caricata é que a dada altura o dr. Ventura retorquiu, não me citava a mim mas era a responder às várias pessoas que o criticaram, dizendo que eram membros da elite. O que é extraordinário porque o dr. André Ventura é professor de Direito Penal numa das faculdades de Direito mais importantes, é comentador na televisão por cabo mais vista, escreve no jornal mais lido em Portugal, sobre vários assuntos, do futebol à política, tudo, é conselheiro nacional do partido com maior representação no Parlamento. E quer-se vender como político anti-sistema. É só para rir.
Da esquerda para a direita na imagem. Francisco Mendes da Silva, João Galamba e Daniel Oliveira no 'Sem Moderação' © Global Imagens
O Francisco integra o 'Sem Moderação' com o José Eduardo Martins, o Daniel Oliveira e o João Galamba. Para lá de ideologias, são os quatro figuras assertivas, habituadas a dar opinião. Já houve alguma vez em que tivessem sentido falta de um moderador externo?
Não. O João e o Daniel não gostam nada que eu diga isto, mas aquilo funciona porque não há moderador. E a minha conclusão é sempre a de que o liberalismo e a autorregulação funcionam [risos].
Também já houve picardias.
Temos de vez em quando as nossas picardias mas já estamos ali há quatro anos e tal e nunca nos chateámos. E há várias razões. Temos alguma cumplicidade noutros temas, como a música. E há ali um sentimento de que nós não podemos pisar a linha porque não há nenhuma pessoa acima das partes que possa colocar o travão. Portanto todos nós pomos o próprio travão. E depois não é um programa de militantes de partidos. Estão ali pessoas ligadas a partidos, a pessoa que está mais ativa politicamente é o João, que é deputado e dirigente do PS, eu também sou dirigente do CDS mas não estou na linha da frente, o Daniel já foi de vários partidos, mas representamo-nos a nós próprios. Ninguém está ali com a necessidade de ter de sair por cima sempre.
E se calhar estou a ser vaidoso – perdoem-me mas, enfim, às vezes não consigo evitar [risos] –, mas acho que o programa também resulta porque não nos limitamos à espuma do dia e conseguimos, a partir dos debates da atualidade, fazer o debate mais geral. E quem costuma acompanhar o programa vê que muitas vezes até conseguimos encontrar algum chão comum em certas matérias.
É advogado e tem esta relação com a política. De onde vêm estas duas paixões?
É bastante natural e bastante antiga. Queria ser advogado desde que me lembro, e pela melhor razão de todas: porque queria ser como o meu pai, que é advogado, em Viseu.
Quando estava a despertar para o rock, para a música independente, o lado político que O Independente representava era quase como o punk-rock da políticaE a política?
A política também surge muito cedo, não por qualquer tipo de influência familiar, que até venho de uma família que tradicionalmente votava PS, uma família típica de classe média onde o PS está muito enquistado. Não tive nenhum impulso, a não ser o facto de, quando tinha 9 anos, o meu pai ter feito parte de uma lista à assembleia municipal de Viseu pelo CDS.
Foi numa altura em que o candidato era o então presidente de câmara, o eng. Engrácia Carrilho, o pai do ex-ministro Manuel Maria Carrilho (e sim, Carrilho vem de uma família CDS). Graça Carrilho era uma pessoa muito querida em Viseu e o meu pai foi, como independente, e na altura foi o primeiro contacto que tive com o CDS. Quando aderi ao CDS mais tarde não estava virgem quanto a isso. Mas o que me desperta para a política é ser daquela geração d’O Independente. Eu gostava muito com 10, 11, 12 anos, e repare que O Independente começa a circular em minha casa não por ser uma casa de Direita mas por um certo anti-cavaquismo.
No outro dia uma pessoa perguntava-me: 'Como é que tu, pá, que és uma pessoa tão alternativa noutras coisas, como na música, depois és do CDS'. É preciso perceber que nos anos 90, quando eu estava a despertar para o rock, para a música independente, o lado político que O Independente representava era quase como o punk-rock da política. Sou atraído para o Miguel Esteves Cardoso, para o Paulo Portas, para o Vasco Pulido Valente e tantos outros no mesmo período, e se calhar pela mesma razão de querer ser diferente do meio onde cresci, onde toda a gente votava ou PS ou PSD. E quando percebo que há uma ligação entre Portas e o CDS e já tinha alguns amigos na Juventude Popular, aderi cà Juventude Popular.
Que idade tinha?
Tinha 15 anos.
Pensava em ser político?
Nunca fiz um caminho de querer ser político até porque sempre quis ser advogado. E hoje sinto isso: quero fazer política, tendo vida fora da política. Porque [rindo-se] quero poder dizer as coisas que me apetecerem sobre o dr. André Ventura, e ter essa liberdade.
É também uma questão de independência.
Sim.
Foi convidado por Paulo Portas para integrar as listas de deputados.
Quando o Paulo Portas me fez o convite foi um momento difícil de gestão de emoções, familiar, de trabalho, que ia deixar o escritório. Mas era uma coisa que ia fazer com muita vontade, gostava muito de ser deputado. Tentei...
Acabou por ser pouco tempo.
Foi cerca de um mês que fui deputado mas foi um mês brutalmente atarefado.
A área do Direito costuma ter bastante representatividade na área política (muitos deputados e dirigentes são formados em Direito) . Mas muitas vezes também é criticada pelo tipo de relações que se criam.
Falta transparência e clareza. E ao contrário do mito que existe não são as grandes sociedades de advogados que são o problema. Cada vez que se fala disto dão-se exemplos de como as grandes sociedades de advogados trabalharam para o Estado nisto ou naquilo. Mas porque é que se dão esses exemplos? Porque está tudo publicado. O problema são aqueles advogados que lá andam na Assembleia da República, nos corredores do Governo, nas assessorias, que ninguém controla. Aí é que há a verdadeira promiscuidade. Não estou a dizer que não possa existir nas chamadas grandes sociedades de advogados. Mas por regra trabalham para instituições públicas de forma totalmente transparente.
Costuma queixar-se de que o liberalismo tem poucos adeptos em Portugal.
Às vezes tem muitos adeptos, só que são falsos.
As gerações novas novas do partido afastam-no de uma certa imagem mais conservadora do catolicismo que se associa ao CDS?
O CDS é bastante católico e até acho que há uma nova geração da JP, com pessoas bem preparadas, que é bastante mais tradicionalista do que a minha geração (que é, grosso modo, a do João Almeida, do Adolfo Mesquita Nunes, da Cecília Meireles), que éramos, e não gosto muito de usar o termo desta maneira, mais liberais. Ou pelo menos éramos mais abertos…
Às tais questões dos costumes?
Hmm, sim, se bem que misturamos muita coisa nisso. Não acho, por exemplo, que a questão do aborto seja de costumes. Mas nas relações emocionais sou muito liberal. O CDS é bastante populado por pessoas cristãs, e bem, que o CDS pode retirar bastante proveito desses valores. A questão é de saber para onde esses valores nos orientam. Acho que há pessoas que não percebem os ensinamentos que o cristianismo dá para o mundo atual e continuam a achar que vivemos há 100 anos.
Nesse aspeto o Francisco representa um outro lado do CDS?
Eu também sou cristão e não sou representativo de nada. A questão para mim nunca foi se o CDS deve ser mais liberal ou conservador ou democrata-cristão, é saber se a vocação do CDS, que é de ser um partido de largo espectro no centro-direita português, e foi sempre isso que o CDS quis ser, deve dar ou não liberdade para que as pessoas sejam diferentes da maioria nestes temas.
Dou sempre este exemplo: o partido conservador britânico tem conservador no nome e foi o partido que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em Inglaterra. E há um discurso do David Cameron nessa altura em que ele diz: 'Nós somos a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, não apesar de sermos conservadores, mas porque somos conservadores'. Ou seja, ele fez uma interpretação dos princípios conservadores, do comprometimento, da família, etc, e aplicou-os à luz da realidade atual.
Alarga o conceito?
Mais do que isso: aplica o conceito. Como é que olhamos para casais do mesmo sexo hoje em dia? É da mesma maneira que olhavam os nossos avós? Um conservador não é um reacionário. Não é obrigar a Igreja a reconhecer. É o Estado poder ou não reconhecer. E há ou não espaço no CDS para estas pessoas? Não há uma cartilha de dez pontos que uma pessoa tenha de cumprir para votar no CDS. Há muitas pessoas que se definem politicamente por serem liberais economicamente, como pequenos empreendedores ou profissionais liberais. O CDS deve afastar essas pessoas porque são perfeitamente relaxadas sobre quem dorme com quem? O CDS tem de viver angustiado com isto? É que assim também me podia chatear porque há quem seja mais estadista do que eu. A Direita tradicional é formada por tradições que são compatibilizáveis mas que têm de ter válvulas de escape para se poderem exprimir, porque senão o partido não representa ninguém. Se eu quiser um partido de pessoas que pensam exatamente como eu, sou o único militante.
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