"Cerca de 600 portugueses estiveram presos em campos de trabalho nazis"
A investigação inédita e sem precedentes em curso sobre 'Os Trabalhadores Forçados Portugueses no III Reich' foi o ponto de partida para uma conversa com o político e historiador Fernando Rosas, na qual a História teve o papel principal.
© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
País Fernando Rosas
O professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas FCSH/NOVA e investigador do Instituto de História Contemporânea, Fernando Rosas, foca-se agora no estudo do passado português na II Grande Guerra. ‘Os Trabalhadores Forçados Portugueses no III Reich’ é o projeto inédito que está a coordenar.
O historiador e uma equipa internacional de investigadores rastrearam, até ao momento, cerca de 600 portugueses vítimas da ideologia nazi e descobriram que muitos cidadãos nacionais foram enclausurados em campos de trabalhos forçados, para alimentarem a economia alemã durante a II Guerra Mundial.
Um alfaiate de alta-costura ou o filho de um cônsul em Moçambique. São apenas uma amostra dos cidadãos lusos detidos em campos de concentração durante o III Reich, apesar da aparente neutralidade de Portugal nesse conflito.
Como começou o projeto ‘Os Trabalhadores Forçados Portugueses no III Reich’? Há muito que tinha interesse em saber mais sobre os portugueses que foram ‘apanhados’ pela máquina de guerra nazi?
Formei aqui no Instituto de História Contemporânea, na FCSH, uma equipa que se propôs a investigar a situação dos portugueses que estiveram presos nos campos de concentração nazis. Há muito que me sentia intrigado por este tema, porque ao visitar campos de trabalho como Dachau, Buchenwald ou Mauthausen-Gusen, via registados nomes de portugueses que lá morreram. Porém, nunca ninguém se tinha debruçado sobre o motivo por que estas pessoas foram lá parar.
Apesar de Portugal se ter mantido neutral durante a II Grande Guerra, foi arrastado pelo conflito a nível económico, e descobrimos agora que também ao nível humano. Muitas pessoas estiveram dramaticamente envolvidas na guerra, no trabalho forçado e no trabalho escravo e por isso achamos aqui no Instituto que devíamos prestar uma homenagem a estas vítimas há tanto tempo esquecidas e ignoradas.
No inextricável saber desse júri da FCT que analisou o nosso projeto concluiu que esta investigação não valia a pena A investigação foi financiada por alguma entidade portuguesa?
Apresentámos uma candidatura para este projeto de investigação à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), há cerca de três anos, que por algum motivo achou que não tinha interesse. A FCT nomeia júris e no inextricável saber desse júri que analisou o nosso projeto concluiu que esta investigação não valia a pena.
Recorremos então à Fundação alemã EVZ (Memória, Responsabilidade e Futuro), que financia estudos sobre o trabalho forçado na Alemanha e que acolheu com muito interesse a nossa proposta, para eles algo que era totalmente até aí desconhecido – a existência de portugueses envolvidos no trabalho forçado no III Reich. Um ineditismo que sem dúvida beneficiou o nosso trabalho. Este apoio permitiu-nos abordar a questão dos campos de concentração que são uma das componentes do trabalho forçado na Alemanha nazi. A título de curiosidade a EVZ financia este tipo de trabalhos, apenas como atividade secundária, porque a atividade principal da organização é recompensar financeiramente as vítimas do trabalho forçado. Sendo uma fundação formada pelas principais empresas alemãs que exploraram e beneficiaram do trabalho forçado, ou seja, trabalho escravo. Empresas que incluem a OPEL, a BMW, a Siemens… todas as grandes companhias que provavelmente numa tentativa de redimirem um pouco a sua culpa criaram com o Estado Alemão esta fundação.
Graças a este financiamento completámos uma primeira etapa da investigação que levámos a cabo nos arquivos portugueses, espanhóis, franceses, alemães e ingleses, onde recolhemos informação que nos permitiu entender não só os vários tipos de trabalho utilizados pela Alemanha hitleriana, mas sobretudo como os portugueses foram parar a estes campos de morte.
Quem foram os portugueses presos nos campos de trabalho nazis e quais as circunstâncias que os levaram até lá?
Cerca de 600 portugueses estiveram presos em campos de trabalho forçado na Alemanha nazi. A maioria dos que foram identificados estava a viver em França para onde tinha emigrado, apesar de existirem também casos políticos. Em 1939, viviam nesse país cerca de 30.000 mil portugueses. Devido à elevada taxa de desemprego muitas dessas pessoas inscreveram-se, em postos de recrutamento oficiais, para trabalhar na Alemanha. Este trabalho era inicialmente voluntário e contratado.
Portugal não tinha qualquer tipo de acordo com a Alemanha, porém em Espanha, por exemplo, existiam muitos postos de recrutamento alemães. Ou seja, esse tipo de contratação estava a acontecer já aqui ao lado em Vigo ou em Madrid. Ora, o desemprego que existia também no nosso país fez com que muitos portugueses se deixassem seduzir pelos salários atrativos e pelas condições de trabalho acima da média na Alemanha.
A partir de 1942, tudo mudou. Entre 1939 e 1942 a Alemanha atacou a Noruega, a Dinamarca, os Países Baixos, a França, portanto criando uma frente ocidental. Em 1941, fizeram uma incursão aos Balcãs, à Grécia, à União Soviética (Operação Barba Rosa), chegando também ao Norte de África. Ou seja, em 1942, toda a população masculina capaz de ir para a guerra foi mobilizada. E os alemães, ao contrário dos norte-americanos ou dos britânicos, nunca quiseram empregar mão-de-obra feminina nas fábricas, porque consideravam que contrariava o ideal da mulher ariana. Nessa altura, surgiu então a questão ‘como vamos substituir os homens que estão na guerra?’ e o trabalho forçado tornou-se uma realidade.
Há imensas cartas de portugueses nos consulados franceses onde se podem ler coisas como 'o meu marido foi chamado e desapareceu'Inicialmente, ainda se tratou de trabalho forçado contratado, isto é, tecnicamente os ‘recrutados’ ainda recebiam um pequeno salário. Os nazis obrigavam os governos colaboracionistas dos países ocupados a enviarem trabalhadores para a Alemanha. Por exemplo, os alemães faziam pressão sobre o governo de Vichy. Primeiro, propunham que, por cada prisioneiro de guerra francês ‘devolvido’, os franceses enviassem para a Alemanha três operários especializados, a esse processo deu-se o nome de ‘relève’. Ora, qual foi a solução que o governo arranjou, para poupar os cidadãos franceses desta troca infame? Começou a enviar trabalhadores estrangeiros – logo aí muitos portugueses viram-se forçados a partir para a Alemanha.
Há imensas cartas de portugueses nos consulados franceses onde se podem ler coisas como ‘o meu marido foi chamado à gendarmerie e desapareceu’. Os homens eram convocados e depois entregues às autoridades. Não tinham qualquer hipótese. Mesmo assim, esta contratação forçada era mais benevolente com os ocidentais, do que com os operários de leste, tratados com muito mais violência. Os trabalhadores ocidentais ainda recebiam um ordenado nesta fase inicial, viviam em casas com condições habitacionais mínimas, tinham alguma liberdade de movimentos e não eram identificados com emblemas no peito que indicavam a sua condição.
Contudo, a ‘relève’ não foi suficiente e posteriormente, medidas mais extremas foram tomadas. Foi instaurado o ‘service du travail obligatoire’ (serviço de trabalho obrigatório), segundo o qual todos os homens, mulheres e estrangeiros dentro de uma certa faixa etária passaram a prestar serviço obrigatório na Alemanha, durante dois anos.
A partir de 1942, também se dá uma viragem pró-aliados na guerra. A vitória deixa de estar à vista para os alemães, com uma perspetiva de duração indeterminada, torna-se necessário manter toda a economia de guerra em andamento durante um longo período de tempo e os bombardeamentos também chegam à Alemanha. Nessa altura muitos dos trabalhadores que lá estavam voluntariamente quiseram partir, mas foram impedidos, detidos e forçados a lá trabalhar. Neste contexto, os portugueses encontraram ainda mais dificuldades em regressar porque não existia um acordo de trabalho entre a Alemanha e a República Portuguesa, ou seja, quem partia de Portugal ia para a Alemanha sem passaporte e quando queria voltar não podia porque não tinha documentos.
Os presos políticos foram as grandes vítimas. Sobretudo, os portugueses envolvidos em atividades ditas subversivasE o trabalho escravo?
Essa é outra parte da nossa investigação. Temos portugueses que partiram voluntariamente, temos outros que eram trabalhadores forçados contratados e temos esta terceira parcela – os portugueses que acabaram nos campos de concentração.
Os presos políticos foram as grandes vítimas. Sobretudo, os portugueses envolvidos em atividades ditas subversivas, como membros da Resistência francesa e alguns que vinham da Guerra Civil de Espanha (1936-1939), sendo que muitos refugiados republicanos do conflito espanhol já estavam presos em campos de internamento franceses e foram transferidos quando o exército nazi ocupou a França.
Ou seja, portugueses emigrados na França que se tinham alistado na Legião Francesa e que foram capturados e se tornaram prisioneiros de guerra, alistados em Regimentos de Marchas Voluntários estrangeiros, membros do partido comunista francês, sindicalistas, redes de resistência antinazi, presos por atividades políticas e presos associais, ou seja, os ladrões, os homossexuais… foram todos metidos no mesmo saco e internados em campos de concentração. Por vezes, famílias inteiras foram enviadas para a morte. Há que sublinhar que o propósito destes campos não era necessariamente matar estas pessoas, mas sim usá-las e obrigá-las a trabalhar em condições sobre-humanas, que inevitavelmente levavam à morte.
A maior parte dos portugueses morreu. De tuberculose, de doenças várias, de esgotamento, de espancamento, talvez alguns até mesmo executados Qual terá sido o destino da maioria?
A maior parte dos portugueses morreu. De tuberculose, de doenças várias, de esgotamento, de espancamento, talvez alguns até mesmo executados, mas alguns conseguiram sobreviver aos campos. Contudo os portugueses eram presos ocidentais. E poderiam até em algumas circunstâncias serem libertados dos campos.
Encontrou casos particulares de prisioneiros portugueses a quem isso tenha acontecido?
José Nunes Pinto, um alfaiate de alta-costura, que tinha trabalhado com Christian Dior, casado com uma francesa e que foi preso como soldado da Legião Francesa é um desses casos. Como era alfaiate começou a fazer os vestidos das mulheres dos oficiais das SS que guardavam o campo. Isso deve ter-lhe valido algum tipo de regime especial e acabou por ser libertado antes do fim da guerra. Estabeleceu-se temporariamente em Paris, mas acabou por voltar para o Porto onde abriu a primeira casa de alta-costura da cidade, na avenida da Boavista, nos anos 50.
A exposição que esteve no CCB mostrou ao público a investigação inicial que o professor e a sua equipa realizaram. Na altura da inauguração disse que esta era apenas uma "fase inicial do projeto" e que, por exemplo, ainda queria investigar os arquivos da Bélgica, de onde terão partido muitos trabalhadores. Quais são as novas linhas de investigação e temas que a equipa já está a abordar ou que pretender analisar no futuro?
Nesta segunda fase da investigação vamos tentar aprofundar um pouco mais as histórias de vida destas pessoas. Como é que foram lá parar, quem sobreviveu e quem não resistiu. Queremos também, sim, investigar o que terá acontecido aos portugueses que se encontravam nos Países Baixos, Holanda e Bélgica, durante a II Guerra. Porque, além da França esses países eram um grande foco de emigração lusa.
A ideia é analisar pontos de partida que ainda não foram abordados, recolher material dos descendentes vivos e conseguir reconstruir percursos de vida, em parte já fizemos isso, mas vale a pena continuar.
Este é um trabalho com o qual queremos prosseguir caso seja financiado. Vamos concorrer provavelmente outra vez à EVZ e veremos o que é possível.
A exposição irá ser exibida noutras cidades?
Vai estar em Loulé, onde estive há pouco tempo a dar uma palestra sobre este assunto e onde aconteceu algo curioso. Inicialmente, já tínhamos identificado nove pessoas de Loulé e arredores que estiveram presas em campos de concentração. E depois, durante essa palestra, uma pessoa no público entregou à Câmara, que nos entregou a nós, uma lista com nomes de mais 30 pessoas daquela zona que terão sido internadas num sub-campo de concentração na Holanda. Porquê Loulé? Estamos a tentar perceber o que se terá passado. Porque 30 pessoas parece indicar algum tipo de padrão. Conheciam-se? Partiram juntas com uma proposta de trabalho? Mais um motivo para continuarmos a investigação nos Países Baixos. Em que locais estiveram? De onde partiram? Alguém sobreviveu?
Em Loulé fizemos um apelo à população e aos familiares destas pessoas, e continuamos a fazer esse apelo a quem saiba de algo.
Abateu-se um silêncio completo sobre esta infâmia, porque Salazar não queria que se soubesse que havia portugueses em campos de concentraçãoPor que razão estas histórias só agora estão a vir a público e a serem partilhadas?
Abateu-se um silêncio completo sobre esta infâmia, porque o Salazar não queria que se soubesse que havia portugueses internados em campos de concentração ou que estavam a fazer trabalho forçado na Alemanha, ou que também havia portugueses a combaterem na divisão azul do Franco a favor dos alemães na frente de Leste, sim porque também os houve! Foi tudo silenciado, ao ponto de na nossa investigação só encontrarmos uma notícia que saiu no ‘Diário Popular’, em 1945, na qual foi entrevistado um desses portugueses que esteve preso num campo, entrevista essa que foi quase totalmente censurada.
Houve um francês, Émile Henry, um homem nascido em Lourenço Marques, Moçambique, que no início da guerra foi mobilizado pelo exército francês e com a invasão alemã acabou por ser capturado e enviado para o campo de Buchenwald. Lá passou as passas do Algarve e escapou à morte várias vezes quase por milagre. Contra todas as probabilidades o jovem sobreviveu – era um homem fisicamente robusto e resistente – e acabando a guerra veio para o Porto, onde o pai estava nessa altura estabelecido. E logo que chegou escreveu um livro, inclusivamente acredito que já trazia essa ideia na cabeça, porque antes de vir pediu às autoridades do campo documentos e fotografias. É a única edição portuguesa de memórias de alguém que, vivendo em Portugal, esteve detido num campo de concentração. Foi muito difícil de encontrar este livro, não estava na Biblioteca Nacional e eventualmente lá o conseguimos encontrar num alfarrabista. Sabemos que teve duas edições no Porto e que ambos os exemplares esgotaram rapidamente, acabando por ser apreendido. Émile foi chamado pela PIDE, não o prenderam mas incomodaram-no, até porque o manuscrito tinha um prefácio de uma figura literária portuense ligada à oposição ao regime. Ou seja, esse livro, esse único testemunho em português quase desapareceu, remetendo-nos para o tal silêncio total.
Estes homens, muitos deles eram emigrantes, operários fabris, mineiros, agricultores, pessoas com pouca instrução. A maioria morreu, já identificámos ao certo cerca de 30. E os que sobreviveram, grande parte ficou em França. Os que voltaram eram, lá está, pessoas simples, não tinham acesso aos jornais, aos meios intelectuais, ou seja, não tinham acesso às fontes de reprodução de notícias e o pouco que tinham foi cortado pela censura. As pessoas sentiram-se ameaçadas e não se conseguiram fazer ouvir. A sua memória não teve expressão e foi reprimida. Por isso, quando começámos a divulgar os dados que recolhemos, a reação da maioria das pessoas foi de enorme surpresa.
Propusemos a colocação de uma placa no ‘Muro das lamentações’, no campo de concentração de Mauthausen. Foi a primeira vez que o Estado português reconheceu oficialmente as vítimas nacionais do nazismo Segundo a investigação que conduziu sabe-se que muitos dos portugueses que ficaram retidos na Alemanha contactaram os consulados do nosso país e pediram socorro por cartas e telegramas. Porque é que o Estado Novo optou por não dar resposta a esses pedidos desesperados de ajuda?
Essa inação deveu-se à neutralidade assumida pelo Estado Novo. E a neutralidade tinha a ver com a noção muito aguda que Salazar tinha, aliás porque tinha vivido durante a I Guerra, de que qualquer envolvimento do regime na guerra ir-lhe-ia trazer grandes dissabores quando o conflito terminasse. E portanto manter Portugal, como ele dizia ‘de costas voltadas para o continente e de cara voltada para o oceano’ como país atlântico imperial que tivesse o menos possível que ver com a Europa, era a política de Salazar como forma de sobrevivência. Ele sabia que um país que entra numa guerra raramente permanece o mesmo no final. Aliás, a Primeira República caiu em grande parte por causa da participação portuguesa na I Guerra.
Salazar não queria que se soubesse que havia qualquer tipo de colaboração com os alemães, voluntária ou não e queria abafar toda a espécie de ligação com significado político às partes contentoras na guerra. E portanto a postura do regime foi dizer ‘não temos nada a ver com isso, somos neutrais, ajudámos os ingleses. Pouco barulho, não se fala mais no assunto’. Muito menos se fala de portugueses em campos de concentração, que ainda nos vão ‘envolver no conflito e trazer problemas’ e esta foi a versão oficial.
Para prestar homenagem a todos os portugueses vítimas do Holocausto propusemos ao Governo, com o apoio do Instituto de História Contemporânea da FCSH, a colocação de uma placa no ‘Muro das lamentações’, no campo de concentração de Mauthausen – que era um campo especialmente feito para receber latinos, estiveram lá 14 mil espanhóis – invocando o seu sacrifício e a sua memória. Com a presença do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, inaugurou-se essa placa no dia 7 de maio de 2017, data do 72.º aniversário da libertação do campo de Mauthausen. E foi a primeira vez que o Estado português reconheceu oficialmente as vítimas nacionais do nazismo.
Há a possibilidade de os dados recolhidos serem mais tarde editados em forma de livro ou até em forma de documentário televisivo?
Há muitas histórias até individuais que davam possivelmente bons argumentos para cinema ou para uma série de televisão.
Mas, para já, estamos a pensar em fazer um catálogo da exposição, no qual queremos organizar melhor este conjunto de ideias.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
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