"Os 'campos de concentração polacos' são uma mentira sobre Auschwitz"
No âmbito do centenário da Independência da Polónia, o Notícias Ao Minuto esteve à conversa com o embaixador da Polónia em Portugal, Jacek Kisielewski. Uma conversa que foi para lá desta celebração e que permitiu abordar temas como a polémica reforma judicial do país ou a aplicação da lei do Holocausto, que entra esta quinta-feira em vigor.
© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto
Mundo Jacek Kisielewski
O centenário da Independência da Polónia, que se comemora este ano, deu o mote para que a Embaixada da Polónia em Portugal abrisse as suas portas ao Notícias ao Minuto.
O embaixador da Polónia, que está em Portugal desde 2016, ainda não domina a língua portuguesa, o que não o impediu de se esforçar para responder às nossas perguntas. Desde a polémica lei do Holocausto, aprovada no início deste ano e que entra hoje em vigor, até à reforma judicial que levou a Comissão Europeia a ativar, de forma inédita, o artigo 7.º do Tratado Europeu, Jacek Kisielewski respondeu a tudo.
Para o embaixador da Polónia em Portugal, o país está a ser alvo de críticas pelas medidas que tem tomado apenas porque as pessoas não conhecem de forma detalhada essas mesmas medidas, situação que está a ser resolvida junto da Comissão Europeia.
Considerando que o governo do seu país pretende melhorar as relações externas, o embaixador nega que a Polónia esteja a querer aliar-se à Rússia e diz, convicto, que o lugar da Polónia é na União Europeia.
Está em Portugal desde 2016. Como está a decorrer a sua estadia no nosso país?
Cheguei em setembro de 2016. Está a correr muito bem. Para mim, é uma oportunidade única de conhecer mais o país onde a cultura lusófona se desenvolveu.
E como é que se tem estabelecido a relação entre Portugal e a Polónia?
O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal é muito amigável, temos uma boa cooperação. O ministro Augusto Santos Silva visitou a Polónia em maio do ano passado e temos também planos importantes para que se realizem mais visitas este ano. Tudo se desenvolve bem.
Comemora-se, este ano, o centenário da independência da Polónia. De que forma é que esta data é, ainda hoje, uma data importante para o vosso país?
Em 1795, a Polónia perdeu a independência e enfrentou a repartição do país entre três países vizinhos. A falta de independência demorou 123 anos e o dia em que conseguimos readquiri-la foi um dia muito importante. A nossa história, a do Estado polaco, é mais de milenar mas como perdemos a independência foi crucial readquirir a independência em 1918.
A Polónia voltou a ser a mesma depois do período de dependência?
O período de dependência entre os três países foi um período de separação das três partes da nação. A nação polaca desenvolveu-se na altura sem contacto direto entre as partes. Todas as partes mantinham a língua natal, a tradição polaca, mas estavam separadas. No momento de reunir as três partes foi um grande desafio criar um organismo novamente único.
Essa dificuldade em serem novamente um país unido sente-se, ainda, nos dias de hoje? De que forma?
Já passaram 100 anos da recuperação da independência. É muito tempo para as diferenças desaparecerem. Por outro lado, somos um país grande, com mais de 38 milhões de habitantes. Num país deste tamanho é natural que existam diferenças regionais, uma variedade de tradições e expressões culturais que têm um papel muito maior do que os efeitos do isolamento vivido no tempo das partições.
De que forma pretendem assinalar esta data?
A Polónia preparou-se bem para esta comemoração. Aqui, em Portugal, já preparámos algumas exposições, sendo que já inaugurámos as primeiras, e preparámos um festival de filme polaco - ‘100 anos da cinematografia polaca’ - que vamos apresentar aqui em Lisboa. Estamos a preparar um grande concerto para o Centro Cultural de Belém para o mês de novembro, entre outras iniciativas.
Assinalou-se também recentemente o Dia em Memória das Vítimas do Holocausto. Que significado tem esta data para a Polónia?
Até à II Guerra Mundial, vivia na Polónia quase metade dos judeus de todo o mundo. Infelizmente, após a invasão da Alemanha, a ocupante nazi alemã criou vários campos de extermínio e grande parte dos judeus da Polónia perderam a vida. Apesar da responsabilidade ser da ocupante nazi alemã, estes judeus eram cidadãos polacos pelo que sempre comemorámos esta data que simboliza também a grande contribuição que eles tiveram para a cultura e tradição polacas.
Não podemos falar de campos de concentração polacos porque a responsabilidade, a responsabilidade total, é alemã, da Alemanha naziO presidente polaco, Andrzej Duda, aprovou este mês a Lei do Holocausto [que entra hoje em vigor], que impede que qualquer pessoa se refira a esses campos de extermínio, como campos de concentração polacos. Qual o objetivo desta medida?
Quando falamos neste assunto, ocorre-me infelizmente as expressões erradas usadas na imprensa, nos media, que falam sobre os campos de concentração polacos. Se uma pessoa não entender esta expressão como uma forma de referência, apenas, a um lugar, mas sim para atribuir responsabilidade, então a expressão está errada. Assim, para que seja correto, não podemos falar de campos de concentração polacos porque a responsabilidade, a responsabilidade total, é alemã, da Alemanha nazi. Para eliminar estas expressões erradas colocámos na nossa lei um mecanismo de prevenção contra estas expressões.
De que forma é que pretendem aplicar esta medida, ou seja, de que forma conseguirão definir quem é que utiliza o termo de forma errada e como tencionam castigá-lo?
Primeiro, queremos chamar a atenção de todo o mundo para estas expressões inapropriadas, porque muitas vezes os media parecem fazer uma avaliação à responsabilidade ou co-responsabilidade dos polacos no Holocausto. Nós, como todas as outras nações, tivemos pessoas envolvidas, ou seja, tivemos alguns elementos responsáveis pelas atrocidades, mas estes foram apenas alguns casos e não a regra. Por isso, não podemos generalizar estes casos criminosos como se fosse a responsabilidade de uma nação inteira.
Há quem diga que estão a tentar eliminar uma parte da história do país e do mundo, não admitindo que houve polacos a participar no genocídio dos judeus. É de facto uma parte da história que vos envergonha e que querem esconder?
Não. Esta lei que agora introduzimos na Polónia dá liberdade total para que se faça uma pesquisa histórica sobre os casos [de polacos a participar nos genocídios] que ocorreram no nosso país. Com esta lei, continuamos a dar liberdade total para a pesquisa histórica e para a expressão artística, deixando que estes casos estejam totalmente abertos à livre consulta.
Israel tem sido um dos principais países indignados com esta medida. A relação entre os dois países pode sair fragilizada?
Na lei de Israel temos também mecanismos para proteger a memória da nação contra a mentira do Holocausto. Os ‘campos de concentração polacos’, do nosso ponto de vista, são uma mentira sobre Auschwitz, sobre os campos de concentração. Na nossa opinião também temos o direito de proteger a memória da nação contra um tipo de manipulação.
Mas Israel acusa-vos de estarem a tentar apagar parte da história do país e do mundo.
Eu acho que as pessoas que criticam esta lei não analisaram a lei de forma detalhada. Nós garantimos a liberdade total de pesquisa da história e da expressão artística, como os livros e a ficção literária, por exemplo. Existe liberdade para isso. Quem quiser estudar a história, inclusive a responsabilidade das pessoas do nosso país no Holocausto pode fazê-lo em liberdade.
As autoridades de Israel e a diáspora judaica reagiram de uma forma muito emocional, sem conhecer os pormenores da lei que foi aprovadaEntão porquê tanta polémica em torno desta medida?
As autoridades de Israel e a diáspora judaica reagiram de uma forma muito emocional, sem conhecer os pormenores da lei que foi aprovada. Os primeiros-ministros da Polónia e de Israel acordaram estabelecer uma comissão bilateral cuja missão seria esclarecer todas as dúvidas relacionadas com as relações polaco-judaicas. Já é conhecida a composição da parte polaca da comissão. O diálogo é a melhor forma de nivelação de tensões.
Jacek Kisielewski está em Portugal, como embaixador, desde setembro de 2016© Blas Manuel / Notícias Ao Minuto
A Polónia tem vivido, também, um período político conturbado, tendo mudado recentemente de primeiro-ministro.
O mandato do nosso governo é um mandato de quatro anos e após os dois primeiros anos, o partido que está no poder e que tem a maioria no parlamento, o partido Lei e Justiça, tomou a decisão de modificar a composição do governo. É uma coisa natural e que se faz noutros países também. A mudança do ponto de vista pessoal não foi muito grande porque o ex-vice-primeiro-ministro é agora o primeiro-ministro e a ex-primeira-ministra é agora a 'vice'. Eles só mudaram de posições e, claro, que houve também uma mudança de visão política.
Mateusz Morawiecki é uma pessoa com maior experiência nas relações internacionais, está mais presente em Bruxelas e tem melhor contacto com outros políticos internacionais. Também no momento de mudar a composição do governo tivemos em consideração o posto de ministro dos Negócios Estrangeiros uma vez que Jacek Czaputowicz apresenta também uma postura diferente, está mais à vontade com os contactos dos políticos em diversos países, de um lado Bruxelas e de outro Berlim.
Então podemos considerar que estas mudanças estiveram apenas relacionadas com as relações externas do país?
Podemos dizer que sim, mas também está em causa um elemento económico porque Mateusz Morawiecki é um economista com grande experiência e sucessos do ponto de vista de orçamento do país. Com a mudança observámos não só maior abertura nas relações estrangeiras mas também uma visão um pouco diferente da economia.
É difícil para mim ver grandes semelhanças políticas entre a Polónia e a Rússia. De todo. Nós negamos essa semelhançaMartin Schulz chegou a afirmar que caso a ex-primeira ministra Beata Szydło se mantivesse no cargo poderíamos vir a assistir a uma "putinização" da Polónia. Que comentário lhe merece esta afirmação, concorda?
Não. É difícil para mim ver grandes semelhanças políticas entre a Polónia e a Rússia. De todo. Nós negamos essa semelhança. Por outro lado, como a Federação Russa é nossa vizinha e gostamos de ter boas relações com todos os nossos sete vizinhos, estamos muito interessados numa boa cooperação com estes países. Não falamos sobre semelhanças políticas mas sobre a vontade de manter boas relações. São coisas diferentes.
Mas esta proximidade pode afetar as boas relações da Polónia com os restantes países da Europa?
Não posso concordar com isso, porque as boas relações com a Federação Russa são uma vontade nossa, sendo que , na verdade, essas relações não estão assim tão boas.
Perante estas acusações, a ex-primeira ministra dizia que a Polónia estava a ser castigada injustamente e que a se “democracia porta bem na Polónia". É assim mesmo ou assistimos a um país que está a tornar-se mais autoritário?
Quando o partido Lei e Justiça ganhou as eleições em outubro de 2015, e ganhou com a maioria absoluta no parlamento, o que significa que não precisa de outro partido para governar, o partido declarou, durante a campanha eleitoral, que iria começar algumas reformas políticas. Uma delas era a reforma do sistema judicial do país. Na opinião do partido Lei e Justiça e da maioria parlamentar da Polónia, as alterações que introduzimos não nos colocam fora das regras democráticas representadas por exemplo na lei dos outros países da União Europeia.
Se compararmos a nossa nova lei com a lei de outros países membros da UE, na opinião do nosso governo, estamos enquadrados com as regras aceitáveis nos países democratas. Pode acontecer que os organismos internacionais, a Comissão Europeia por exemplo, tenha alguma dúvida, mas para isso temos um mecanismo de diálogo, para de um lado explicar o que nós fizemos, quais foram as modificações da nossa lei e, por outro lado, explicar qual é a dúvida da Comissão Europeia e estabelecermos um diálogo que corre muito bem neste momento. Tivemos há duas semanas um bom comentário do vice-presidente da comissão europeia, Frans Timmermens, sobre este diálogo e estamos, acho eu, no meio de uma discussão que vai trazer frutos.
A Polónia é um dos países com a taxa de natalidade mais baixa da UE. É um dos objetivos deste governo inverter essa situação?
Sim. Uma das medidas do Lei e Justiça durante a campanha eleitoral foi a criação do programa 500+, que significa 500 PLN por mês, isto é mais ou menos 120 euros, por cada criança a partir do segundo filho. Ou seja, a partir do segundo filho, o casal ganha este valor por mês com o objetivo de melhorar a situação das famílias com mais crianças e para motivá-las a ter mais crianças.
Lançaram até uma campanha que correu o mundo e onde incentivavam os polacos a procriar como coelhinhos. Já estão a ter resultados?
[Risos] Não, ainda não temos mais ‘coelhos’.
Voltando à reforma judicial de que falava, a que mudanças se assiste no país após essa reforma?
Precisamos de mais tempo para ver as diferenças. Mas a crítica do Lei e Justiça, do governo e também de uma boa parte da sociedade tinha a ver com a transparência das regras antes da reforma. Precisamos de mais tempo para ver a que ponto vamos chegar.
Mas o que é que esta reforma significa na prática para a Polónia?
O que foi mais criticado na Polónia foi a falta de transparência no momento de escolher os juízes para os processos jurídicos, a organização dos tribunais e o prazo de procedimento demasiado longo. Em alguns casos, recebemos queixas do tribunal de Estrasburgo sobre o prazo demasiado prolongado dos procedimentos jurídicos na Polónia. Então, o governo gostaria de reduzir o prazo médio e fazer os procedimentos mais transparentes.
Porque é que esta reforma está a ser tão criticada pela União Europeia?
Entrarmos em detalhes sem falar sobre a lei é difícil de explicar. É impossível explicar só por algumas palavras quais são as mudanças e o que é criticado.
É isso que estão, agora, a tentar fazer junto da União Europeia? A explicar melhor essa mudança?
Sim. O nosso governo está a explicar, sobretudo, quais foram os motivos e quais são os mecanismos a aplicar na nova lei. No caso de dúvidas, o primeiro passo é saber e conhecer em detalhe toda a nova lei. O segundo passo, analisar. E o terceiro, apresentar uma opinião sobre isso. Mas o primeiro é conhecer. O nosso governo está a tentar dar à Comissão Europeia esta explicação.
Pode considerar-se que com esta reforma o poder político passará a ter mais influência na justiça do país?
Acho que é aqui que reside a maior diferença entre a posição do governo polaco e da Comissão Europeia. Na opinião do governo polaco, são os mecanismos que nós aplicámos que melhoram o funcionamento dos tribunais, mas na opinião da Comissão Europeia estes são os mecanismos que vão garantir uma maior dependência dos tribunais do governo. Estamos a discutir o assunto para explicar que esta crítica não é justificada.
A nossa impressão é que a aplicação do artigo 7.º foi uma decisão política sem análise detalhada da nossa lei.
Com esta reforma, a Comissão Europeia fez algo inédito, que foi ativar o artigo 7.º do Tratado Europeu. Como é que encara esta medida?
A opinião do nosso governo é que o artigo 7.º foi aplicado como um tipo de atividade política da Comissão Europeia e nós gostaríamos mais de ver a Comissão Europeia como uma instituição executiva e não política. Nós preferimos deixar os assuntos da construção da lei, no caso dos tribunais, à responsabilidade e competência dos governos e não da Comissão, para que o assunto tenha uma avaliação jurídica e não política. A nossa impressão é que a aplicação deste artigo foi uma decisão política sem análise detalhada da nossa lei.
Mas não teme o impacto que a ativação deste artigo pode ter para a Polónia?
Como já disse, após a mudança do governo entrámos numa etapa de consulta e de diálogo entre o nosso país e a Comissão Europeia e o motivo deste diálogo é esclarecer a situação. Espero que após esclarecer o que o nosso parlamento fez a Comissão Europeia vai entender quais foram os motivos.
Rejeitamos as quotas obrigatórias o que não significa que não ajudamos os refugiados
A antiga primeira-ministra foi contra a imposição de quotas de refugiados no país, opinião partilhada por vários polacos. É uma ideia em que se revê?
A Polónia não aceitou as quotas obrigatórias para o acolhimento de refugiados mas isso não significa que estejamos desvinculados da situação dos refugiados. A nossa proposta é diferente. Na nossa opinião, é preciso cuidar dos refugiados fora da fronteira externa da UE, nos países de trânsito. Na Jordânia cuidámos de mais de 10 mil famílias, dos custos de alojamento, dos custos médicos e da educação. A nossa opinião é que este é um mecanismo mais eficiente do ponto de vista da segurança dentro da UE e é mais razoável e mais barato. É a nossa posição. Rejeitamos as quotas obrigatórias o que não significa que não ajudamos os refugiados.
Mas houve manifestações recentes em que vários polacos pediram de volta uma “Polónia branca”. Isto não pode gerar conflitos internos no país?
Mais um caso de generalização injusta. A marcha de que deve estar a falar é a Marcha de Independência, a 11 de novembro, em Varsóvia. A participação nesta marcha foi de 60 mil pessoas e uma instituição que fica fora do governo, a Amnesty International Poland, analisou todos os cartazes que os participantes tinham. Eu analisei toda a longa lista dos cartazes escritos e na minha opinião, apenas cinco deles foram xenófobos ou racistas. Claro que eles foram lá mas era uma pequena e muito estreita margem. É injusto generalizar isso para as 60 mil pessoas que participaram.
Deveria ser aplicada a essas pessoas, mesmo que poucas, um castigo semelhante àquele que querem impor com a Lei do Holocausto?
Automaticamente, após o evento, o sistema judicial da Polónia iniciou os procedimentos contra eles.
Não há uma única dúvida de que o nosso futuro seja na União Europeia Em jeito de conclusão, e por tudo o que foi dito, podemos então depreender que o objetivo da Polónia não é afastar-se da Europa, apesar de todos estas tensões a que se tem assistido?
Com certeza que não. A sociedade polaca, pelo menos 83%, apoia a União Europeia. Este é um dos melhores resultados entre os países, nações na Europa. Não há uma única dúvida de que o nosso futuro seja na União Europeia.
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