"Os líderes mundiais já falaram, agora é a nossa vez"
Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, é um dos entrevistados de hoje do Vozes ao Minuto.
© Amnistia Internacional Portugal
Mundo Pedro Neto
Esta quinta-feira, foi divulgado o relatório anual da Amnistia Internacional, referente a 2017. Ano em que Donald Trump tomou posse como presidente dos Estados Unidos e declarou que cidadãos de diversos países, pelo facto de serem muçulmanos, não são bem-vindos no país. Ano também em que os rohingya foram perseguidos em Myanmar. Ano em que muitos outros problemas de anos anteriores, como a perseguição a defensores dos Direitos Humanos ou a inação dos líderes mundiais relativamente aos refugiados, se mantém e, mais do que isso, se agravaram.
No relatório, a Amnistia Internacional diz que verificou violações de Direitos Humanos em 159 países, sendo alguns dos mais graves a China, a França, a Líbia, Myanmar, Estados Unidos, Síria ou Iémen. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, Pedro Neto, denuncia o "discurso de ódio" e a "demonização" do Outro. No entanto, realça que a mobilização da sociedade civil é cada vez maior.
"Agora é a nossa vez", remata. É o tempo de "as pessoas fazerem ouvir a sua voz e de dizerem com clareza aos seus líderes que por este caminho não podemos ir".
Quais são as principais conclusões que a Amnistia Internacional retira deste relatório?
A nível global, começo por destacar um aspeto positivo: registámos que as pessoas se estão a mobilizar. Em 2017, as pessoas mobilizaram-se pelos Direitos Humanos, mobilizaram-se para exigir liberdade, igualdade e dignidade, mobilizaram-se para exigir liberdade de expressão, num contexto em que muitos líderes mundiais estão a ser promotores de um espaço cada vez mais pequeno para os Direitos Humanos. Isto porque há uma continuidade de uma retórica que demoniza outras pessoas e que as considera menos humanas. Vimos isso nos Estados Unidos, com o caso de Donald Trump, vemos isso nas Filipinas, na Hungria. No entanto, as pessoas respondem e combatem, pacificamente, essa narrativa e esse discurso, exigindo direitos para todos.
Trump entrou em funções em 2017 e pouquíssimos dias depois estavam pessoas a manifestarem-se na rua, contrariando os comentários racistas, xenófobos e misóginos. Mesmo quando ele quis banir refugiados muçulmanos, as pessoas mobilizaram-se e foram para os aeroportos para acolher estas pessoas. E também em África, com as eleições na Gâmbia, numa mudança de liderança que aconteceu de forma pacífica, com as pessoas a fazerem campanha na rua e a manifestarem-se de forma ordeira, o que não imaginaríamos há uns anos.
Antes de abordarmos alguns desses casos em particular, gostava que começássemos pelo caso português. Quais são os principais problemas identificados no nosso país?
O direito à habitação está posto em causa. Um outro é a discriminação étnica e racial, que também está ligada ao primeiro assunto. São os grupos mais vulneráveis, vítimas dessa discriminação, que sofrem mais no seu estado de vida, nomeadamente na falta de acesso a direitos económicos, sociais e culturais. Documentámos alguns desalojamentos forçados e temos dúvidas de que a lei esteja a ser cumprida e que as recomendações das Nações Unidas no que diz respeito à habitação estejam a ser cumpridas. Há pessoas que vivem em habitações muito precárias e que são desalojadas para soluções e alternativas muito piores, e isto não promove um standard mínimo de qualidade de vida. Esta questão da habitação regista-se onde há mais pressão demográfica, nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, mas destacamos a região de Lisboa, nomeadamente os municípios da Amadora, de Loures e de Torres Vedras.
Além disso, o problema da habitação tem escalado para outras realidades económicas, digamos assim. Já não é um problema que afeta apenas os mais pobres de entre os pobres, é um problema que afeta também pessoas que trabalham, que têm uma vida de trabalho, que têm dificuldade em encontrar uma habitação condigna. Isso reflete-se quer no mercado de arrendamento, quer no mercado de compra e venda de imobiliário, principalmente nestas pessoas.
Dou-lhe um exemplo de um caso de uma pessoa aposentada, descendente de africanos, que trabalhou toda a vida na construção civil, e hoje vive da sua reforma, dos descontos que fez, uma reforma que não dá, sequer, para pagar um quarto, neste momento, em Lisboa. Se uma pessoa é desalojada de uma habitação, não consegue arranjar uma alternativa por si só. Se não encontrarmos alternativas condignas, estamos a agravar o problema.
Um dos exemplos desses desalojamentos é a situação vivida no Bairro 6 de Maio, na Amadora. Que medidas devem ser tomadas pelo poder político de forma a que estas pessoas tenham uma alternativa?
Estamos a tentar perceber de quem é a responsabilidade, se é local, ou seja municipal, ou estatal, por via da legislação. Pelo que percebemos, são oferecidas alternativas, a pessoa procura uma casa e é-lhe paga uma renda durante alguns meses. O problema é que resolve no imediato, mas o problema subsiste no médio e longo prazo. São propostas insuficientes porque o espírito geral, quer das Declaração Universal dos Direitos Humanos, quer das convenções para os direitos económicos, sociais e culturais, quer das recomendações do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, é que os governos proporcionem às pessoas um standard mínimo de dignidade de vida, em crescendo. O que está a acontecer é o contrário. O próprio Estado está a contribuir para que esta esteja a diminuir.
Descendentes de africanos e comunidades ciganas, ao serem discriminados, têm dificuldade de acesso às mesmas oportunidades que outras pessoasNo relatório é referido que os mais prejudicados são os membros das comunidades afrodescendentes e de etnia cigana. Podemos falar na existência de racismo institucional?
Não quero considerar que seja intencional ou direto em termos institucionais. Quero separar o trigo do joio. Haverá pessoas, profissionais que trabalham para o Estado e que o representam, que podem ter motivações erradas. O racismo institucional, em termos propositados... não quero acreditar que exista, mas depois ele existe. Existe também de forma indireta, porque os descendentes de africanos e as comunidades ciganas, ao serem discriminados, têm dificuldade de acesso às mesmas oportunidades que outras pessoas. Para estas pessoas saírem da pobreza, é muito mais difícil do que, porventura, para outras. Isto faz com que perdure uma questão de discriminação. Estas pessoas, sendo pobres, mais facilmente continuam a viver na pobreza e esse peso é ainda superior e não as deixa subir na escala do desenvolvimento pessoal e familiar para saírem da pobreza. Acredito que é mais por aí: uma discriminação por consequência do que, quero acreditar, havendo uma discriminação propositada e institucional.
Outros dos problemas em Portugal prende-se com o acolhimento de refugiados, uma vez que o nosso país está longe de cumprir as quotas de acolhimento estabelecidas com a União Europeia.
É uma quota em que Portugal declarou a sua disponibilidade. Foi de livre vontade que Portugal declarou disponibilidade para receber refugiados e, claro, estamos a meio caminho.
Demoras levam a que estas pessoas, pensando que já estão protegidas e que o sofrimento está para trás, continuem no limbo e no purgatório de espera O que falta fazer?
Houve muitos problemas ao nível da recolocação. Problemas que são do foro da União Europeia mas também que são da responsabilidade de Portugal e de cada um dos Estados-membro, sendo que as responsabilidades da União Europeia são nossas, porque Portugal, como membro, tem uma palavra a dizer nas decisões que se tomam. Isto tem muito que ver com burocracia, logística e procedimentos do acolhimento dos refugiados.
A maior parte dos refugiados que são recolocados vem da Grécia e da Itália. Há ali um primeiro recenseamento, e nos países do destino, Portugal por exemplo, é feito um inquérito a todos os municípios, onde se pergunta sobre uma série de condições para o acolhimento. Mediante esse inquérito, as respostas são enviadas para a Grécia e para a Itália. Os refugiados vêm para cá e nesse sequer foi tido em conta se têm familiares noutros países, e a reunificação familiar é um direito. Aliás, nós, portugueses, quando emigramos, se tivermos família noutro país, vamos ao encontro dos nossos familiares. E depois, chegando cá, há refugiados que ficam isolados. Estando cá com familiares noutros países, é mais do que compreensível que queiram sair e ir para junto da sua família.
Por outro lado, muitos refugiados vão para sítios mais pequenos, onde a rede de apoio não é tão eficaz, onde há dificuldade de língua, de arranjar emprego. Portanto, logo aí, há uma desmotivação e uma procura de outros sítios para encontrar uma rede comunitária onde haja mais apoio. Outra razão das falhas neste acolhimento, que pode ajudar a explicar o número de pessoas recolocadas que procuram outros sítios, é a pressão que os serviços sofrem, e as burocracias que demoram muito tempo, nomeadamente a regularização da situação no Serviço Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a aprendizagem da língua e a integração no mercado de trabalho. Estas demoras levam a que estas pessoas, pensando que já estão protegidas e que o sofrimento está para trás, continuem no limbo e no purgatório de espera até que todas as situações se resolvam para que possam recomeçar a sua vida.
Já fomos, inclusivamente, acusados pelo próprio Bashar al-Assad pelo trabalho que estamos a fazerFalemos agora do panorama internacional. Uma das palavras chave que aparece no relatório é "demonização". Quem tem demonizado o outro e inflamando o discurso, sobretudo visando os mais desfavorecidos?
É o tal discurso do ódio, que os líderes utilizaram para legitimar as suas políticas e ideias, que têm um fundo de racismo e xenofobia. Nos Estados Unidos há toda aquela demonização dos mexicanos, dos refugiados, dos muçulmanos, como se fossem eles o mal da América. Depois, há o exemplo da Turquia e a diminuição do espaço para a liberdade de expressão. Ainda há poucos dias, foram jornalistas condenados a prisão perpétua, apenas por fazerem o seu trabalho. Há defensores de Direitos Humanos presos, inclusivamente o presidente da Amnistia Internacional da Turquia e a diretora executiva da Amnistia Internacional da Turquia, que esteve presa e está a aguardar julgamento. Tudo o que tem acontecido na Turquia, desde a tentativa do golpe de estado em 2016, é uma tentativa de silenciar tudo e todos os que sejam vozes independentes ou contra o governo. Erdogan e o regime têm catalogado toda a gente com uma narrativa diferente como terroristas. São logo associados a Fethullah Gülen ou até ao PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado um grupo terrorista pelos EUA e pela União Europeia], uma desculpa para serem levados à justiça e silenciados.
Nas Filipinas, continua a saga de perseguição aos mais pobres, mascarada de combate ao tráfico de droga. Na Líbia, o mau trato a refugiados. Em Myanmar, vimos a perseguição que é feita aos rohingya, porque os consideram menos humanos. Portanto, há todo um discurso que considera que há pessoas que são menos humanas de outras, o que não podemos aceitar.
No caso turco, as últimas semanas têm sido marcadas por bombardeamentos em Afrine, na Síria. Como é que a Amnistia Internacional tem acompanhado esta ofensiva?
Cito-lhe uma nota das Nações Unidas, que apresentou dez páginas em branco. Porque já não há palavras para a situação na Síria. A guerra arrasta-se há vários anos, houve uma série de antigos inimigos que se juntaram para lutar contra o Daesh, e agora que a questão está praticamente resolvida, voltaram a ser inimigos. Toda esta situação na Síria, com os países vizinhos com os seus interesses, são inaceitáveis. Aquilo que é mais alarmante é que quem mais sofre continua a ser a população, pessoas e famílias que nos batem à porta e com quem nós falhamos no acolhimento.
É inaceitável que o mundo assista, sem nada fazer. Temos documentado fortemente os crimes de guerra que têm acontecido na SíriaCentenas de pessoas têm morrido, nos últimos dias, em Ghouta, na Síria, em bombardeamentos atribuídos ao regime de Bashar al-Assad. Como se explica a inação internacional?
Precisamente. É inaceitável que o mundo assista, sem nada fazer. A Amnistia Internacional tem trabalhado incansavelmente ao longo dos últimos anos por estas questões. Temos documentado fortemente os abusos de Direitos Humanos e os crimes de guerra que têm acontecido na Síria. Já fomos, inclusivamente, acusados pelo próprio Bashar al-Assad pelo trabalho que estamos a fazer. É compreensível, porque ele é um dos abusadores dos Direitos Humanos, e por isso um dos nossos alvos. É impressionante que os países com interesses na região não separem isso, não ponham a mão na consciência, para parar com o que está a acontecer. Infelizmente, alguns que lá intervêm são também alguns dos que abusam de Direitos Humanos nos seus territórios.
É um jogo de xadrez em que quem mais sofre são as populações vulneráveis. É uma catástrofe humana, um desastre humanitárioAinda no Médio Oriente, temos o problema do Iémen. Um conflito que, muitas vezes, desaparece da agenda mediática mas que está cada vez mais grave, nomeadamente devido ao bloqueio saudita.
O Iémen é outro caso de uma guerra persistente e não tão mediática, infelizmente. É uma guerra que está a ser jogada num campo com demasiados interesses internacionais. Como disse, e bem, a Arábia Saudita intervém lá, os Estados Unidos, ao venderem armas à Arábia Saudita, intervêm diretamente e são cúmplices. Depois, há uma série de países, como o Qatar, o Irão e até a própria Rússia que interferem no conflito. É um jogo de xadrez em que quem mais sofre são as populações vulneráveis. É uma catástrofe humana, um desastre humanitário.
Os grandes produtores de armamento são os Estados Unidos e a Rússia, bem como alguns países europeus. Têm lucro com estas guerrasA venda de armas, para estas zonas em conflito, continua a aumentar. Quem são os países por trás disto e o que pode ser feito para os travar?
Há uns anos, a Amnistia Internacional fez uma campanha chamada 'Controlo de Armas', que tinha a dupla ideia do comércio de armas em larga escala e o comércio de armamento em termos pessoais. Esta questão interessa muito aos governos, e os grandes produtores de armamento, como é conhecido, são os Estados Unidos e a Rússia, bem como alguns países europeus. Têm lucro com estas guerras. Mas também há outros interesses estratégicos que não podemos olvidar.
As responsabilidades são de todos estes países e esta escalada de discurso de ódio e este ambiente, que já se considera, sem exageros, semelhante aos anos de 1930 na Europa, pré-Segunda Guerra Mundial, em que se demoniza populações e etnias inteiras, com o objetivo, também, de armar o mundo. É isso que nos preocupa e é também a hora das organizações da sociedade civil se mobilizarem e trabalharem para construírem a paz.
Os líderes políticos catalogam como terroristas aqueles que querem silenciar. É este aproveitamento que não pode existirO terrorismo é um dos grandes flagelos do nosso tempo, mas é também usado, em muitos casos, como forma de perpetuar estados de exceção. Como analisam este problema?
O terrorismo é uma realidade que tem de ser combatida, mas não a qualquer custo. Depois, colocamos em causa outros direitos e a nossa própria dignidade. Os líderes políticos catalogam como terroristas aqueles que querem silenciar. É este aproveitamento que não pode existir, porque a justiça tem o seu lugar e não pode ser através da divisão, do incitamento à violência e ao ódio.
Temos o caso de França, onde, devido aos vários atentados, o estado de emergência foi sendo prolongado.
Esse é um bom exemplo. França foi prolongando o estado de exceção e quando finalmente o acabou, fez nova legislação que o prolonga.
É a vez de o mundo e de as pessoas fazerem ouvir a sua voz e de dizerem com clareza aos seus líderes que por este caminho não podemos irÉ um risco que os países Ocidentais enfrentam? Estados de exceção que põem em causa direitos adquiridos?
Precisamente. Esse é o cerne da questão. Este discurso contra o terrorismo, contra os estrangeiros, contra os refugiados, são narrativas que querem justificar e legitimar este estado de exceção e este ambiente pré-bélico a que estamos a assistir. É um perigo real e é um perigo a que as pessoas e a sociedade civil têm de responder com mobilização. O nosso mote é que os líderes mundiais já falaram, e agora é a nossa vez. É a vez de o mundo e de as pessoas fazerem ouvir a sua voz e de dizerem com clareza aos seus líderes que por este caminho não podemos ir.
Coragem é responder à violência com paz, responder à divisão com amor e com inclusãoA Declaração Universal dos Direitos Humanos faz, este ano, 70 anos. Qual é o balanço que faz e quais os principais desafios para 2018?
Creio que é uma bonita idade, mas vivemos um momento histórico muito importante, de viragem, de mobilização, de resistência pacífica. Não se pode responder à violência com mais violência. Isso é o que muitos líderes mundiais têm feito e não tem sido solução. A coragem é responder à violência com paz, responder à divisão com amor e com inclusão.
O balanço que eu faço é o de um caminho de altos e baixos, em que o mundo, por um lado, foi tendo crises de Direitos Humanos e, por outro, foi sabendo dar respostas. Esta é também a lição que a história nos dá: sempre que há líderes que querem ir contra os Direitos Humanos, há sempre pessoas que saem do seu silêncio, e que se mobilizam e se atravessem no caminho destes líderes. Recordo-me de um Nelson Mandela, de um Gandhi, de um Martin Luther King, e de outros tantos. As mulheres que marcharam [contra Trump], o movimento Black Lives Matter, as pessoas que, individualmente, foram para os aeroportos acolher refugiados.
Hoje, vivemos desafios importantíssimos, quer em termos de direitos civis e políticos, quer nos direitos económicos, sociais e culturais. Vivemos desafios muito prementes no que diz respeito ao meio ambiente, e já vimos pessoas a se mobilizarem, como nos Estados Unidos, em Standing Rock, em Portugal, no exemplo da poluição do Rio Tejo que teve mediatismo e que continua, na resposta aos incêndios. Até há bem pouco tempo, as alterações climáticas eram um assunto do futuro, mas hoje sabemos que são do presente. As pessoas estão a mobilizar-se e a trabalhar para cuidar do nosso mundo.
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