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"A pior coisa do mundo é que aconteça alguma coisa a um filho teu"

Carme Chaparro, um dos rostos mais conhecidos dos noticiários espanhóis, vê o seu primeiro romance a ser lançado em Portugal. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, contou como começou a escrever a história do desaparecimento de um menino, mas falou também sobre o jornalismo e a igualdade de género.

"A pior coisa do mundo é que aconteça alguma coisa a um filho teu"
Notícias ao Minuto

29/03/18 por Anabela de Sousa Dantas

Cultura Carme Chaparro

Em apenas trinta segundos a sua vida pode transformar-se num pesadelo. Está a premissa para ‘Não Sou um Monstro’, o primeiro livro da jornalista espanhola Carme Chaparro. O romance, vencedor do Prémio Primavera 2017, conta a história do desaparecimento de um menino sob dois pontos de vista diferentes, o de uma jornalista e o de uma investigadora da polícia.

Escrito de forma incisiva, a história versa em grande parte o mundo do jornalismo e da sua relação com a investigação policial, mas o seu principal rasto é o medo e a perda, existindo uma grande proximidade com a carga emocional das personagens.

Carme Chaparro, de 45 anos, tem quase três décadas de experiência no jornalismo, estando há 20 à frente das câmaras na apresentação de noticiários, na Telecinco, Noticias Cuatro e no grupo Mediaset. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, falou sobre a sua ligação à escrita e a como se assistiram a enormes transformações na profissão, nos últimos anos.

Chaparro é, também, uma importante voz em questões sociais, particularmente no que respeita ao papel da mulher na sociedade. Colunista em revistas como Yo Dona, GQ e Mujer Hoy, a autora foi recentemente galardoada com Prémio Feminismo PSOE, pelo seus trabalhos em prol da igualdade de género. A jornalista acredita que o homem e a mulher não são iguais, mas devem ter as mesmas oportunidades, abordando, também, sobre os desafios que ainda existem nesta matéria.

Quando surgiu a ideia que começou este livro?

Não me ocorreu uma ideia que começou ‘Não Sou Um Monstro’, ocorreu-me uma ideia que o terminou. [risos] A primeira coisa que escrevi foram os dois últimos capítulos porque me ocorreu, um dia, ao sair do noticiário… Tínhamos acabado de falar do desaparecimento de um menino e, felizmente, esse caso acabou bem mas eu pensei ‘e se tivesse acabado mal e se fosse por culpa de uma pessoa capaz de fazer isto?’. Cheguei a casa, escrevi, e são os dois últimos capítulos do livro. Pensei logo que isto não era um conto, era algo mais. Comecei e, sabendo onde queria chegar, sabendo quem era o vilão, fui construindo uma história de muitas personagens, de muitos labirintos que vão despistar o leitor, até chegar a esse final surpreendente.

A Carme é jornalista, com certeza tem contacto diário com uma imensidão de histórias. Porquê este tema em específico, do desaparecimento de uma criança?

Porque das piores coisas do mundo que te podem acontecer, como ser humano, é que aconteça alguma coisa a um filho teu. Mais do que se te acontecer alguma coisa a ti. E, acontecendo alguma coisa a um filho, que não se saiba o quê, onde está, se está bem, se está mal, se está com frio, se está a chorar - se está vivo ou se está morto. Então, construir este final levou-me inevitavelmente a construir uma história sobre crianças desaparecidas. Não é um livro mórbido, em que se leiam coisas que acontecem a crianças, atenção, mas, sim, um livro em se lê o que sofrem todos os adultos que estão a procurar as suas crianças, na esperança de as encontrar vivas.

As crianças do livro têm quatro anos porque quando escrevi a história a minha filha mais velha tinha quatro anos. (…) Foi tão difícil que a meio do livro tive de parar duas semanas

A Carme é mãe. Há com certeza uma ligação muito próxima a este tipo de história…

De facto, eu queria criar uma imagem emocionalmente honesta e não a poderia fazer se não acreditasse na história. Converti-me nas minhas personagens, tinha de acreditar nelas para que o leitor acreditasse também. E tinha de sofrer para que o leitor sofresse. As crianças do livro têm quatro anos porque quando eu escrevi a história a minha filha mais velha tinha quatro anos. Para mim, foi a maneira mais emocional de me aproximar dessa história. A verdade é que foi tão difícil que a meio do livro tive de parar duas semanas. Uma amiga minha, que é atriz, disse: ‘não te preocupes que é o que acontece aos atores quando preparamos uma personagem que é muito intensa, descansa duas semanas, esquece o livro e depois voltas’. Efetivamente, descansei duas semanas, regressei e a verdade é que os leitores que não sabiam disto disseram que se notava uma mudança de ritmo brutal entre a primeira parte a segunda parte do livro. Como se o tivesse escrito em alturas diferentes. E, realmente, foram duas semanas de pausa que, mentalmente, me criou dois cenários diferentes.

Notícias ao Minuto'Não Sou um Monstro' vendeu 80 mil exemplares em Espanha © Grupo Planeta

Escrever uma história assim é muito diferente de ler as notícias. É uma tarefa emocional distinta…

Claro, queria ir ao outro extremo. Os espanhóis estão habituados a ver-me a apresentar notícias, desde há 20 anos. E sei que me veem como uma pessoa muito próxima, que apresenta as notícias de uma forma próxima aos espetadores. Mas não posso usar determinadas palavras, nem exagerar as notícias. Então pensei, ‘bem, estão habituados a ver-me assim, agora vou ao outro extremo, vou escrever com o estômago, com o fígado, vou fazer com que se te encolha o coração’. É um livro com um ritmo muito acelerado, de investigação, mas também muito intenso a nível emocional.

Há muito da minha profissão de jornalista aqui, como algumas notícias que fui dando ao longo dos anos

O livro é contado da perspetiva de uma jornalista e de uma investigadora da polícia. Quanto é que se traduziu para a história da sua profissão e da relação que mantém com as autoridades?

Muito, muito. Toda a trama que se passa numa redação foi fácil de escrever, porque é o que faço todos os dias. A relação entre jornalistas e polícia também foi fácil de escrever porque é a relação que nós, jornalistas, temos com muitos agentes. Houve coisas mais complicadas que eu não sabia e tive de investigar, porque tudo o que está aqui escrito é verdade. Mas, sim, há muito da minha profissão de jornalista aqui, como algumas notícias que fui dando ao longo dos anos. A história do início, por exemplo, da mãe no carro com os filhos, é uma história verdadeira. A forma de escrever também vem muito da minha profissão, frases curtas, muito contundentes.

Não é tanto um estilo literário, é a sua profissão.

A maneira como escrevo sobre a realidade acabou por transcorrer para a ficção. Por exemplo, a descrição das personagens: para mim não é tão importante a descrição de uma pessoa como aquilo que ela me faz sentir. Vou-me lembrar, com certeza, que você é morena e tem o cabelo comprido, etc. Mas aquilo de que mais me recordarei sobre si, talvez, é a forma como me olha, a forma como me sorri, que me faz sentir confortável. Se eu descrevo uma personagem, aquilo vai significar algo diferente para os leitores, ao invés disso, escrevo como se sente essa personagem e como faz sentir os que a rodeiam. Cada um vai imaginar à sua maneira como é, mas vai significar o mesmo para os leitores.

Temos acesso imediato a demasiada informação, que não somos capazes de processar e talvez não sejamos capazes de distinguir o que é notícia e o que é 'fake news'

O jornalismo mudou muito, nos anos recentes, principalmente por estar a passar do papel para a internet. Que avaliação faz, dada a sua experiência?

Acho que é uma das profissões que mais mudou e de forma mais rápida. Quando comecei quase não havia telemóveis, tinha de se ir a uma cabine telefónica para telefonar. Apresento noticiários há 20 anos mas sou jornalista há 27, creio. Já tenho 45 anos, sou uma senhora maior de idade [risos]. E não havia telemóveis, nem computadores portáteis, quase nem computadores de todo. Agora temos tudo de imediato. Agora há uma pessoa que pega no telemóvel e grava imagens de um avião a cair do céu, ou seja, temos acesso imediato e isso também é mau. Temos acesso imediato a demasiada informação, que não somos capazes de processar e talvez não sejamos capazes de distinguir o que é notícia e o que é ‘fake news’.

Os jornalistas são mais importantes para a sociedade agora do que nunca. Temos de atuar como uma barreira de contenção entre essa onda, essa avalanche de informação, e o leitor. O nosso trabalho é, entre tudo o que está a acontecer no mundo, [decidir que] aquilo que deve ser destacado é isto, porque é que é isto e também de onde viemos e para onde vamos.

O jornalismo sempre representou o único poder que poderia por em causa todos os outros, o 5.º poder, mas agora tem-se desprestigiado, principalmente porque tudo se mistura um pouco.

Claro. No livro há várias sequências em que um político pega no telefone e… pronto. O cidadão tende a pensar que é o político que tenta interferir nas notícias. Mas isso vê-se. Uma pessoa que tem uma ideia política vai ler a publicação que está de acordo com ele. É como se você fosse adepta do Barcelona, não vai ler um jornal que é do Real Madrid. Aqui em Portugal é mais Porto – Benfica, não é? [risos]. Se você for do Benfica, não vai ler um jornal associado ao Porto. A política é isso. O grande problema não se vê, é o poder económico. É o poder dos anunciantes que compram espaços publicitários e que se tiram essa publicidade podem fazer com que uma publicação [sofra dificuldades]…

Por isso é tão importante o surgimento, não sei se aqui em Portugal é igual, de meios digitais que são patrocinados por ‘sócios’, como uma espécie de ‘crowdfunding’. Ainda esta semana se falou de um em Espanha, que se financia graças a 25 mil sócios que vão pagando as suas quotas, e é um meio digital. Isso, sim, é o 5.º poder porque é um poder que não tem de apresentar contas a ninguém mais do que aos seus leitores. É livre para publicar o que quiser, publicar a verdade.

O seu livro vai ser transformado num filme. Era algo que ambicionava?

Fiquei muito feliz porque, ao trabalhar em televisão, sempre escrevi a pensar em imagens. Primeiro imagino uma sequência na minha cabeça e depois tento escrever. O facto de que isto se vai tornar realidade e de que aquilo que imaginei na minha cabeça vai para um ecrã de cinema… é maravilhoso. Estou com muita vontade de ver.

E sobre o novo livro, já podemos saber alguma coisa?

Já está acabado [risos]. Estive a revê-lo, vai ser lançado em Espanha em junho, se tudo correr conforme planeado. É a segunda parte, começa seis meses depois [do primeiro livro].

Com as mesmas personagens?

Sim, e há mais. Há um vazio de seis meses, desde o choque final desta primeira história até ao começo da seguinte. Mas tudo acontece nesses seis meses e depois vamos preencher os espaços de tudo o que aconteceu. O primeiro livro era sobre monstros, o seguinte é sobre ódio. Que efeito tem o ódio? Porque temos todos um pouquinho do ódio a alguém. Em algum momento do dia, temos sempre um mau pensamento que nos escapa, não podemos controlar. Onde nos pode levar esse ódio é a premissa da segunda parte da novela.

Em Espanha este 8 de Março foi um dia maravilhoso. (…) iamos chegando, viamo-nos e abraçavamo-nos a chorar

A Carme foi galardoada com o Prémio Feminismo PSOE. Acredita que as coisas estão a mudar para as mulheres no trabalho e na sociedade, em geral?

Ainda há muito por fazer. Mas, repare, em Espanha este 8 de Março foi um dia maravilhoso. Parámos todas as jornalistas, praticamente uns 90 e muito por cento das jornalistas. Incluindo, as grandes apresentadoras dos espaços da manhã, as apresentadoras de noticiários. Parámos, não trabalhámos. E isso tem um impacto… Juntámo-nos todas numa praça no centro de Madrid, às 11h30, para ler um manifesto das mulheres jornalistas. E iamos chegando, viamo-nos, porque, bom, nunca se sabe quem vai aderir, e abraçavamo-nos a chorar. Foi uma felicidade sentir que finalmente, finalmente perdíamos a vergonha, finalmente perdíamos o medo e finalmente estávamos todas juntas na luta. Não para ser iguais aos homens, porque não somos iguais aos homens, mas para querer ter as mesmas oportunidades.

No jornalismo há muitas mulheres, em Portugal creio que é igual, mas em postos médios, chegando às direções, não. Os grandes diretores do jornalismo, os que tomam decisões editoriais, os que gerem os grandes meios e as televisões, continuam a ser homens. Aí falta alguma coisa, mas é fundamental que nos ajudemos umas às outras.

O despertar para esta situação poderá ter sido importado, de certa forma, pelo fenómeno 'Me Too'…

É muito importante que percamos a vergonha e o medo. E que pensemos que isto que nos andaram a vender… ‘cuidado, as chefes mulheres são más’ ou ‘que más que são as mulheres, se estão três a falar é de uma quarta, que está a ser criticada’. Todo este discurso que foi sendo passado, para nos dividir, afinal é mentira, é mentira. E eu vejo-o com amigas minhas, com jornalistas, com mulheres de outras profissões, Começamos a perder o medo. (...) A ter redes entre nós, a ajudarmo-nos umas às outras. Não há nada mais maravilhoso do que ter amigas a sério, em que quase podes confiar a vida. E isso é fantástico e roubaram-nos disso, em parte das nossas vidas, com essa crença de que as mulheres são más e atacam-se umas às outras.

Isto é uma metáfora para todas as bagagens que as mulheres carregam, que nos impedem de correr à mesma velocidade que os homens: os saltos, as saias, os filhos, as compras, os horários

Assim como esse, há outros estereótipos, como o das mulheres como cuidadoras, que as impede de ter filhos e aspirar a altos cargos. O que faz falta, na sua visão, fazer para uma mulher poder ser mãe e ao mesmo tempo profissional de primeiro nível?

Que os homens sejam pais. E há cada vez mais. Há só duas coisas que os homens não podem fazer: engravidar e amamentar. O resto podem fazer igual às mulheres. Eles são pais ao mesmo nível que nós somos mães. Então, a partir do momento em isso se concretize, a partir do momento em que ninguém diga ‘o meu marido ajuda-me em casa’… Isto é errado, o marido não ajuda em casa, a casa é dos dois, os filhos são dos dois. Dizer que ajuda pressupõe que é a mulher que o faz e que ele é muito boa pessoa por ajudar, errado. Isto tem de mudar, é fundamental.

Repare, eu saio do trabalho, de saia e de saltos e corro para ir buscar as minhas filhas à escola, quando posso. Estaciono onde posso e mato-me para ir pelas ruas, a correr, trazê-las… Por outro lado, vejo os homens, tranquilos, com o seu sapato raso e calças. Isto é uma metáfora para todas as bagagens que as mulheres carregam, que nos impedem de correr à mesma velocidade que os homens: os saltos, as saias, os filhos, as compras, os horários, as visitas aos pediatras, a doenças das crianças.

Enquanto se perpetuar esta cultura de ‘decisão da cerveja’ nada vai mudar

E os horários, isso tem de mudar, por favor, as reuniões não têm de durar quatro horas. Hoje, por exemplo, fui almoçar a um restaurante aqui, e eram só reuniões de homens de negócios. Eu e a minha colega éramos a únicas mulheres e o resto tudo gravatas, a comer à grande. Mas porque é que se tem de perder duas horas num almoço quanto há tanta coisa para fazer na minha vida? Não, eu como em 10, 15 minutos no escritório e depois fazemos uma reunião e, se for preciso, tomamos um café.

Enquanto continuar esta cultura, que em Espanha chamamos a ‘decisão da cerveja’... Ou seja, a mulher sai do trabalho vai para casa cuidar dos filhos, o marido vai beber uma cerveja com os colegas e muda tudo o que estava planeado para essa noite. Enquanto se perpetuar esta cultura de ‘decisão da cerveja’ nada vai mudar.

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