Meteorologia

  • 23 NOVEMBER 2024
Tempo
14º
MIN 13º MÁX 22º
Vozes ao Minuto

Vozes ao Minuto

Vozes com opinião. Todos os dias.

"Todos os que são adeptos da paz e democracia têm de estar preocupados"

Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Todos os que são adeptos da paz e democracia têm de estar preocupados"
Notícias ao Minuto

12/04/18 por Pedro Bastos Reis

Mundo Boaventura S. Santos

Quando falamos em sociologia em Portugal, ou de ciências sociais no geral, Boaventura de Sousa Santos, de 77 anos, é um nome incontornável, que se confunde com o desenvolvimento da investigação nestas áreas da ciência e do conhecimento.

Voz ativa da Esquerda e com um vasto trabalho publicado sobre direitos humanos, globalização, democracia ou estudos pós-coloniais, tem acompanhado, ao longo dos anos, a realidade social e política no Brasil. Não só a acompanha para a sua investigação, como também se envolve diretamente com as comunidades, participando em vários projetos. 

Esta quinta-feira, Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, participa num ato em defesa da democracia brasileira, que terá lugar no Capitólio, em Lisboa. No evento organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e pela Fundação José Saramago, participam ainda Pilar Del Rio (presidente da Fundação José Saramago), Guilherme Boulos e Manuela D'Ávila (ambos pré-candidatos à presidência do Brasil pelo PSOL e PCdoB, respetivamente), Tarso Genro (PT), Cristina Narbona (presidente do PSOE), Pablo Iglesias (secretário-geral do Podemos), Ana Catarina Mendes (secretária-geral adjunta do PS) e Catarina Martins (coordenadora do Bloco de Esquerda).

No âmbito desta iniciativa, Boaventura de Sousa Santos concedeu uma entrevista, por telefone, ao Notícias ao Minuto, focada não só na atual situação política e social do Brasil, como sobre outros assuntos que marcam a atualidade, como a guerra da Síria, em que deixa bem clara a sua postura crítica relativamente à política externa dos Estados Unidos. Na primeira parte da entrevista, o sociólogo foca-se, essencialmente, nestas questões. Na segunda parte, que será publicada durante a manhã desta quinta-feira, outras temáticas como o confronto Esquerda/Direita no espectro político, o caso português, o colonialismo, o feminismo ou os desafios para o futuro das ciências sociais foram também abordados. 

O Brasil é uma sociedade com uma tradição colonialista muito forte, uma tradição em que o governo esteve sempre controlado pelas classes dominantes

Lula da Silva foi preso depois de um processo jurídico conduzido a uma velocidade sem precedentes, que tem levantado muitos críticas, sobretudo à Esquerda. Estamos a assistir a uma judicialização da política no Brasil?

Sem dúvida. Aliás, penso que as críticas que têm sido feitas ao sistema judicial não vêm exclusivamente da Esquerda. Vêm de todos os juristas que conhecem, minimamente, a lei e veem que, neste caso concreto, não só têm havido atropelos vários aos critérios jurídicos consagrados na constituição e nos códigos penais, como, sobretudo, a discrepância enorme entre o modo como este caso tem sido tratado pelos juízes da primeira instância e da segunda instância e os outros casos que estão ser investigados no Brasil, que comprometem praticamente toda a classe política, incluindo o atual presidente [Michel Temer]. Nesses casos, a justiça move-se com muita morosidade, se é que se move de todo, enquanto no processo do ex-presidente Lula houve uma eficácia total que visou desmoralizar todo o processo político que ocorreu nos últimos 13 anos, e cujo arquiteto foi Lula da Silva. Aí, houve uma politização do judiciário que culminou quando a prisão foi cumprida, quando ainda havia pendente um processo de habeas corpus.

É a mesma Rede Globo que teve um papel fundamental em legitimar a ditadura militar em 1964 que tem feito uma barragem total de manipulação da opinião pública contra Lula Os momentos antes de Lula se entregar às autoridades, rodeado por milhares de pessoas, demonstram um grande apoio popular ao ex-presidente. Mas há também o lado anti-Lula e anti-petista. A sociedade brasileira está completamente divida?

Pode-se perguntar como é que perante um presidente que governou durante tantos anos favorecendo a maioria da população brasileira, a mais pobre, a das periferias, subalimentada, sem universidade – os grandes beneficiados desses cerca de 40 milhões de brasileiros que deixaram de ser pobres e passaram a comer três refeições por dia como prometia o presidente –, o país está tão polarizado. Efetivamente, o Brasil é uma sociedade com uma tradição colonialista muito forte, uma tradição em que o governo esteve sempre controlado pelas classes dominantes, classes essas que têm a ver com interesses económicos profundos ligados ao capital financeiro, que dominam também os meios de comunicação social, nomeadamente a Rede Globo, que tem tido uma influência extraordinária na manipulação da opinião pública. É a mesma Rede Globo que teve um papel fundamental em legitimar a ditadura militar em 1964 que tem, neste momento, feito uma barragem total de manipulação da opinião pública contra o ex-presidente Lula, comparando-o a um criminoso vulgar que deve ser exemplarmente punido. Essa polarização tem objetivos, sendo o principal retirar das eleições o presidente Lula.

As forças que controlam a opinião pública e o processo político mobilizaram-se para obter a condenação em segunda instância e conseguiramAlém disso, temos documentos que comprovam a interferência estrangeira do departamento de justiça dos Estados Unidos neste caso, porque Lula representava, de alguma maneira, uma política económica que não era socialista nem radical, mas mais nacionalista, digamos assim, nomeadamente contra os interesses dos Estados Unidos no que respeita, fundamentalmente, às grandes reservas de petróleo no mar profundo que não estavam no mercado internacional e que agora já estão, depois do golpe institucional contra Dilma Rousseff. O que acontece é que, devido à política anterior do presidente Lula, apesar de toda a barragem mediática que cria tanto ódio, e que às vezes parece que não resulta de uma questão política mas sim de um preconceito quase racial contra um operário metalúrgico que chegou a presidente, ele continuava, nas sondagens, a ser a primeira intenção de voto da maioria dos brasileiros. Ora, isto seria tornar praticamente inútil o golpe institucional contra Dilma Rousseff, que visou pôr termo às políticas de redistribuição social e de proteção da riqueza nacional.

Se Lula voltasse ao poder, provavelmente não poderia voltar a fazer o mesmo nos seus primeiros mandatos, porque as condições económicas são outras, mas certamente iria neutralizar muitas das políticas que estão, neste momento, em curso. As forças que controlam a opinião pública e o processo político, como o congresso que é uma caricatura da sociedade brasileira e que não representa os interesses da maioria, mobilizaram-se para obter a condenação em segunda instância e conseguiram. Neste momento, eliminaram, para todos os efeitos, Lula da Silva enquanto candidato. Só que mesmo não sendo candidato, pode influenciar, de uma maneira decisiva, as eleições, porque quem ele apoiar pode causar alguns problemas às forças de Direita que organizaram o golpe institucional.

O plano da Direita é criar uma situação de emergência para que não haja eleições em 2018Se Lula não conseguir concorrer, a Esquerda brasileira pode unir-se e apresentar uma candidatura única?

Penso que isso, neste momento, não é possível. Existem duas forças de Esquerda fundamentais que continuam a disputar as eleições e não vejo que, na primeira volta, elas se possam unir. Estou certo de que haverá uma unidade na segunda volta, se algum algum candidato de Esquerda estiver presente, mas não na primeira, dada as condições políticas no Brasil. Parece-me que o Partido dos Trabalhadores (PT) apresentará o seu candidato, que ainda não está bem definido quem será, e as forças à Esquerda do PT, que têm feito oposição a algumas das políticas do PT, como o PSOL e os movimentos sociais à volta do Vamos!, uma federação de movimentos sociais liderada pelo Guilherme Boulos, deverão apresentar um candidato, o próprio Guilherme Boulos, com uma vice-presidente que será a líder indígena Sônia Guajajara. As eleições serão sempre o melhor caminho, porque se não houver eleições é preciso que se crie uma situação de emergência nacional que pode levar a uma ditadura, que parece estar no horizonte, com o assassinato de líderes políticos, com muita violência no Brasil profundo.

Acredita que a hipotética vitória de Jair Bolsonaro nas eleições poderá levar os militares ao poder? No Rio de Janeiro já estamos a assistir uma intervenção militar.

De facto, Bolsonaro continua a ter uma presença muito forte nas intenções de voto, depois do presidente Lula. No entanto, uma observação mais cuidada da Direita brasileira mostra que ela não está unida e Bolsonaro não é, de modo nenhum, consensual. É um homem cujo passado e cujo perfil político são altamente questionáveis por gente de Direita, por tudo aquilo que tem dito, pelo que significa, pelo convite que tem feito a um regresso da ditadura e pela apologia que fez da tortura à presidente Dilma Rousseff. Por tudo isto, não é um candidato em que a Direita se reveja mas ela, neste momento, está dividida e não tem candidatos muito fortes. Isto leva-me a suspeitar que o plano da Direita é criar uma situação de emergência para que não haja eleições em 2018. Como observador estrangeiro, vejo com muita preocupação o facto de não se perfilar na Direita ninguém com um nível de consenso.

Tem de se ir tributar – não há outro modo - os mais ricos para poder redistribuir às classes empobrecidasCom a queda de Lula da Silva e perante a situação política e social que existe, por exemplo, na Venezuela, como analisa a influência da Esquerda na América Latina?

Acho que a Esquerda latino-americana está num processo de repensar-se. Em alguns países, ela esteve no poder algum tempo e durante esse período muito específico, em que os preços das mercadorias, da agricultura e dos recursos mundiais estiveram em alta no mercado mundial, permitiu que esses governos pudessem fazer uma redistribuição social sem grandes reformas políticas. Ou seja, os ricos continuaram a ser cada vez mais ricos e as políticas desses governos permitiram que os pobres fossem um pouco menos pobres. Foi isso, precisamente, que aconteceu no Brasil. O número de milionários cresceu no tempo do Lula, mas já tinha crescido no governo anterior. Portanto, não houve nenhuma alteração na desigualdade estrutural da sociedade brasileira.

Neste momento, a situação é totalmente diferente e para que a Esquerda se reconheça numa política muito moderada, mas de redistribuição de riqueza, que permita bolsas de família, de estudo, educação e saúde públicas, tem de haver um outro sistema fiscal. Tem de se ir tributar – não há outro modo - os mais ricos para poder redistribuir às classes empobrecidas, inclusive às classes médias, em que muitas delas estão já a resvalar para a pobreza. A situação económica e política internacional é muito diferente, os Estados Unidos estão muito atentos ao que se passa no continente e estão dispostos a intervir em qualquer política que ponha em causa o seu interesse pelos recursos naturais e pelo controlo dos mesmos na América Latina.

Os Estados Unidos estão dispostos a continuar por mais 15 anos a guerra da Síria, tal e qual como acontece com o AfeganistãoA Síria tem estado em foco nos meios de comunicação social, à medida que a tensão entre Rússia e Ocidente se tem agudizado significativamente. Que consequência poderá ter o escalar desta retórica?

Estamos num momento de escalada entre países, de facto, com risco de guerra. Mas a escalada com a Rússia tem de ser vista de um contexto mais amplo. A rivalidade principal dos Estados Unidos não é com a Rússia, é com a China. Os documentos da CIA, que são públicos, mostram que, em 2030, a China será a primeira economia mundial. Portanto, neste momento, há uma guerra aberta entre os Estados Unidos e a China. Só que como a China tem um grande poder económico, inclusivamente como credora dos Estados Unidos, um país muito endividado, não pode ser atacada diretamente, pelo que se ataca os seus aliados, como a Rússia, o Brasil e o resto dos BRICS, que tinham de ser neutralizados.

Fundamentalmente, o que se passa na Síria é que os Estados Unidos não podem permitir que a Rússia tenha uma vitória na Síria. Com a intervenção contra os rebeldes, a Rússia garantiu, praticamente, a paz. No momento em que a paz começou a ser negociada, os Estados Unidos entraram de novo a financiar os rebeldes, porque não podem admitir uma vitória russa no Médio Oriente e, para isso, estão dispostos a continuar por mais 15 anos a guerra da Síria, tal e qual como acontece com o Afeganistão. Estamos numa vertigem de guerra que visa retirar à China os seus aliados fundamentais. É lamentável que a União Europeia e os governos da Europa alinhem numa política de guerra num país praticamente destruído, quando houve, recentemente, condições para se concretizar a paz.

Todos os que são adeptos da paz e da democracia têm de estar preocupados com a situação no mundo atualEssa “paz” na Síria que refere, conduzida através da intervenção russa, não foi conseguida através de um massacre da população síria?

Depois do que aconteceu no Iraque, com dois milhões de mortos, e no Afeganistão, qual é a legitimidade do Ocidente? Não estou a dizer que Bashar al-Assad seja um democrata, tal e qual como o príncipe herdeiro da Arábia Saudita [Mohammad bin Salman] não é um democrata, como muitos outros protegidos pelo Estados Unidos também não o são.

Neste momento, os Estados Unidos não protegem a democracia, protegem governos que favorecem os seus interesses. Obviamente que na guerra civil [da Síria] houve muitas atrocidades contra inocentes e não estou, de modo nenhum, a pensar que Bashar al-Assad seja um santo. Houve tanta mentira no Médio Oriente, desde 2003, quando se disse que havia armas químicas no Iraque, que, hoje, quem é que pode acreditar que há massacres que vêm só de uma parte? O que se está a passar não é agradável de ver, e aí a vítima próxima não é a Síria, que já está neutralizada mesmo com Bashar al-Assad, é o Irão. Pode ser essa a guerra do presidente Donald Trump. Estamos a assistir a um momento de muita incerteza no sistema internacional, as Nações Unidas não têm nenhuma capacidade para atuar, portanto todos os que são adeptos da paz e da democracia têm de estar preocupados com a situação no mundo atual.

O Iémen é um caso de desastre extraordinário, que tem passado praticamente oculto nos meios de comunicação ocidentaisDonald Trump vai rasgar o acordo nuclear com o Irão? Caso tal aconteça, pode haver um confronto direto entre os Estados Unidos e o Irão, eventualmente com a envolvimento de Israel?

Israel está muito envolvido na guerra da Síria, inclusivamente com uso de aviação. O acordo dos Estados Unidos com o Irão não é apenas bilateral, foi estabelecido no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Portanto, qualquer violação deste tratado compromete ainda mais o sistema das Nações Unidas e, por isso, é de prever que tudo possa acontecer. Há muita loucura no Médio Oriente e no mundo e, mais uma vez, estamos a assistir a um momento em que quando as potências são suficientemente fortes, não são atacadas diretamente, são atacadas através dos seus aliados. Já falámos do caso da Rússia e, relativamente ao Irão, acontece o mesmo no Iémen, onde há muitas forças mais próximas de Teerão que estão a ser vítimas de uma enorme atrocidade de guerra. O Iémen é um caso de desastre extraordinário, que tem passado praticamente oculto nos meios de comunicação ocidentais, porque é uma guerra suja da Arábia Saudita, com o apoio dos Estados Unidos, para provocar o Irão. Não é de esperar coisa boa nas relações internacionais.

* Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui

Campo obrigatório