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"Tenho capacidade para treinar qualquer equipa, em qualquer nível"

Em entrevista ao Desporto ao Minuto, João Carlos Pereira fez um balanço dos 25 anos de carreira enquanto treinador, desde as muitas equipas que treinou aos jogadores que lançou e aos técnicos com quem tanto aprendeu. Há praticamente quatro meses sem clube, o treinador de 56 anos não desiste da profissão e acredita que o período de paragem pode ser uma mais-valia para o futuro.

"Tenho capacidade para treinar qualquer equipa, em qualquer nível"
Notícias ao Minuto

08:11 - 28/03/22 por Miguel Simões

Desporto Exclusivo

A completar 25 anos de carreira, João Carlos Pereira conta já com um vasto currículo, tanto a nível nacional, como internacional, e a ambição passa sempre por evoluir mais e melhor.

Natural de Angola, o treinador português iniciou a carreira de jogador na adolescência, pendurou as botas aos 32 anos (em 1997) e abraçou o cargo de técnico logo de seguida, sem que nada o fizesse prever.

Começou pelo Marinhense, 'galgou' até à I Liga e começou a somar experiências lá fora (Kuwait, Chipre, Qatar e Suíça) intercaladas com aventuras em território nacional, a última das quais na Académica. Não só treinou e lançou grandes jogadores, como aprendeu com grandes nomes do mundo dos treinadores.

Em conversa com o Desporto ao Minuto, o treinador de 56 anos recorda a longa carreira enquanto treinador (praticamente metade da sua vida) e, apesar de não estar a orientar nenhuma equipa desde novembro do ano passado, confessa ter capacidade para abraçar qualquer projeto, em qualquer patamar, desde que reúna boas condições para executar o seu trabalho.

Depois de cerca de 20 anos a jogar futebol, como surgiu a ideia de ser treinador de futebol?

Quase que de forma fortuita. Eu achava que não tinha qualquer perfil para ser treinador, nunca me tinha passado pela cabeça, sequer, imaginar que daria este passo neste ramo de atividade, e tinha planeado a minha vida de outra forma. Quando acabasse de jogar, deixava o futebol e iniciava outro tipo de carreira, neste caso, na área do empreendedorismo e dos negócios. Disse às pessoas no Marinhense que ia sair, mas fiquei ligado ao clube porque insistiram comigo e propuseram-me ficar responsável pelo futebol juvenil. Recusei inicialmente, mas insistiram novamente e acabei por aceitar. Enquanto estava a preparar a época, a equipa sénior já tinha começado a treinar, mas o treinador principal adoeceu e, uma vez que tínhamos tido muitas conversas no passado, ele indicou que eu podia ser a pessoa para assegurar a equipa enquanto ele recuperava. Foi assim a minha entrada neste mundo do treino. Naturalmente que eu não me via como treinador, ainda por cima a treinar ex-colegas. Achava que não era o ideal, mas aceitei na ótica a prazo. A verdade é que ele continuou de fora e eu passei a assumir a equipa até mais tarde, até dezembro [de 1997], sem qualquer curso naquela altura.

O João começou no Marinhense, onde jogou muitos anos, e pouco depois chegou à I Liga enquanto técnico. Considera que começar por baixo, digamos assim, é um ponto-chave para evoluir?

Não creio que seja um ponto-chave. Acredito que cada um de nós faz o seu trajeto, e este foi o meu. Há colegas que, imediatamente após deixarem uma carreira de grande sucesso como futebolistas, ingressam como técnicos em equipas principais e profissionais, até em Ligas maiores. Acho que cada um de nós tem as suas oportunidades, cria os seus contextos e prepara tudo da forma como deve preparar. No meu caso, foi determinante ter este percurso, uma vez que eu não me preparei antes para vir a ser treinador de futebol, e, para mim, fez todo o sentido começar por baixo e ir evoluindo ao longo do tempo.

O meu contributo não é mais do que encaminhar, seduzir para a reflexão, tentar com que os jogadores tomem consciência das suas dificuldades e ajudar a evoluir nesse sentidoNestes cerca de 25 anos de carreira, já passou por vários clubes, sobretudo em Portugal. Que jogadores destaca entre os muitos que treinou?

Não queria ser injusto com nenhum, mas treinei bons jogadores. A minha primeira equipa na Académica, na I Liga [2003/04], era uma equipa com qualidade, lembro-me do Tonel, José António, Pedro Roma, Paulo Adriano, Fábio Felício, Paulo Sérgio... Enfim, não queria estar a evidenciar alguns e esquecer-me de outros. No Nacional [2004/05], tive jogadores como o Sérgio Baiano, Alexandre Goulart, Adriano, Belman... No Belenenses [2009/10], lembro-me do Zé Pedro e do Lima, que jogou no Benfica, e ainda de jovens promessa como André Almeida, Freddy Adu, Pélé, eram muitos. E mesmo na época passada, no Grasshopper [2020/21], treinei o Toti Gomes, que agora foi para o Wolverhampton. São jogadores que grande parte conhece e de qualidade.

Qual é o sentimento ao ver esses jogadores a brilhar, mais tarde, em grandes clubes, seleções ou competições?

Fico muito satisfeito por ter tido a oportunidade de trabalhar com eles, até porque eles também contribuíram para a minha evolução enquanto técnico. Fico satisfeito ao ver o Francisco Moura a jogar na equipa principal do Sporting de Braga e por ver outros jogadores que continuam a sua caminhada e, naturalmente, isso deve-se ao trabalho, esforço e qualidade que têm. Acho que o treinador existe para servir os jogadores, criar condições para que evoluam, e eu costumo dizer ao meu staff que, para uma época seja bem sucedida, os jogadores têm de sentir que evoluíram também. Podemos ganhar títulos, mas se os jogadores sentirem que não evoluíram, não se trata de uma época bem sucedida na sua plenitude. Isto acho que diz um pouco sobre aquilo que eu penso ser a relação entre um treinador e os jogadores, que são as estrelas maiores deste universo.

Entre muitos dos exemplos que deu, o Lima e o André Almeida foram treinados por si no Belenenses, jogadores que chegaram a cruzar-se no Benfica, na mesma equipa, entre 2012 e 2015...

Chegaram lá com rendimento. Consegui fazer a reflexão sobre a evolução deles e tentei perceber até que ponto a minha visão estava errada em torno do futuro desses jogadores, porque uma pessoa, quando pega num jogador, tem de definir um projeto também individual para cada um, e, assim, perceber que tipo de atleta tem em mãos, desde as características às valências. O André Almeida, naquela altura, era um ala. Lembro-me de que chegámos a ter algumas conversas sobre a possibilidade de ele, num futuro não muito longínquo, jogar como lateral, e percebi, a determinada altura, que o facto de ter jogado antes a médio-centro o ajudou a assimilar o entendimento mais claro e abrangente da lógica do jogo. Nestas coisas, nós sentimos uma satisfação enorme por eles. O meu contributo foi diminuto. São as nossas pequenas vitórias. Uma pessoa olha para trás e vê que eles evoluem sem que nós estragássemos nada.

O Francisco Moura [Académica 2019/20] e o Toti Gomes [Grasshopper 2020/21] são exemplos recentes de jogadores jovens que ajudou a crescer e que voltaram a ser aposta dos clubes que os tinham emprestado. Sente que teve impacto em relançar estes jogadores?

Creio que, no percurso de evolução dos jovens jogadores, quando os contextos e as circunstâncias são bem aproveitados, podem ser determinantes no crescimento deles, de uma forma positiva. O meu contributo não é mais do que encaminhar, seduzir para a reflexão, tentar com que os jogadores tomem consciência das suas dificuldades, ajudar a evoluir nesse sentido, e, no fundo, fazê-los perceber que não estão sozinhos no caminho. É uma caminhada feita em conjunto. Tenho casos de ex-jogadores que continuaram e continuam a questionar a minha opinião sobre isto e aquilo no rendimento, o que eu acho que é extremamente importante.

O Marco Silva é o forte exemplo de um jogador que orientou no Estoril [2008/09] e que atualmente se destaca enquanto treinador. Sentia que o Marco podia vingar como técnico, tal como tem conseguido em Inglaterra?

Sentia, claramente. Aliás, acho que chegámos a ter esse tipo de conversa. Ele era capitão de equipa e nós tínhamos algumas dificuldades nas bolas paradas, sofríamos muitos golos, então lancei-lhe o desafio de me ajudar na comunicação e na liderança dos seus colegas dentro de campo, porque, muitas das vezes, a mensagem do treinador não chega. Nós treinamos muitas coisas, mas, se não houver comunicação, partilha de responsabilidades ou uma chamada de atenção aos colegas, os jogadores ficam mais expostos ao erro e à falta de concentração. O Marco Silva era um jogador já mais experimentado, tinha a responsabilidade de ser capitão de equipa e eu achei que ele tinha condições para liderar nesse processo. Tinha perfil para isso. Acho que ele chegou a dizer publicamente que eu tinha dado um contributo grande para que ele se tornasse treinador, quanto mais não fosse porque eu lhe despertei alguma coisa que já devia estar lá na cabeça dele. Fico extremamente satisfeito com o seu percurso e a sua carreira, porque é um treinador diferenciado, com uma proposta de jogo positiva e alinhada com a minha visão e com a forma como eu sinto o jogo.

O treinador João Carlos Pereira de hoje não tem nada a ver com o que era há 25 anos. Isto só acontece porque refletimos sobre as coisas.O João já estagiou com grandes treinadores do futebol mundial. Quão importante foram esses momentos para o seu desenvolvimento como técnico?

Mais do que a quantidade de vezes que eu fui fazer estágios com as pessoas, o mais importante é eu facto de eu ser uma pessoa disponível para ir à procura do conhecimento, da partilha e de encontrar caminhos que me levem à evolução. Naturalmente que procurei sempre ir em busca de pessoas que pudessem aportar alguma coisa ao meu conhecimento, não era minha intenção estar apenas a colecionar estágios. Ainda em dezembro estive mais de uma semana em Barcelona, com o Xavi Hernández e o Oscar, que é irmão dele e que trabalhou comigo. Contínuo a achar que é importante haver partilha de conhecimentos e de experiências. Lembro-me com satisfação das vezes em que, a cada momento de pausa após o fecho de campeonato, eu tirava uma semana e via onde é que havia equipas a treinar, que tipo de treinador tinham e fazia a mala para ir pela Europa fora, ou mesmo aqui em Portugal. Aliás, os primeiros estágios que eu fiz foram em Portugal, com treinadores de referência que inspiraram outros, como o Jesualdo Ferreira, José Mourinho e até o Boloni, quando esteve no Sporting.

O que 'adotou' desses treinadores tendo em conta aquilo que são as ideias que privilegia no seu modelo de jogo?

Muitas das vezes vamos perceber que, se calhar, temos de refletir sobre algumas coisas, e vamos construindo uma forma de ver e de entender o treino, alinhavando uma metodologia, que é algo que vai evoluindo também. Para mim, é mais do que claro que o treinador João Carlos Pereira de hoje não tem nada a ver com o que era há 25 anos. Isto só acontece porque refletimos sobre as coisas. Fui vendo muita gente treinar, cometi alguns erros, ou muitos erros, diria. Como diz o Marcelo Bielsa, o erro augura o sucesso. Se tirarmos ilações dos ensinamentos e dos erros cometidos, só estamos a preparar o caminho dos próximos sucessos.

Há pouco referiu a questão de "ir pela Europa fora". Como foi, para si, estagiar em clubes como Barcelona e Ajax?

No início da minha carreira estive no Ajax, primeiro com o Ronald Koeman, depois com o Danny Blind. Passei depois pelo Sevilla. Fui tendo essas oportunidades ao longo do tempo e, depois, quando fui para a Aspire, a possibilidade que eu tinha para assistir aos treinos de equipas de topo a estagiar lá na academia do Qatar era real. Tinha acessos aos vídeos do treino, e tinha conversas individuais com os treinadores e elementos do staff. Essas coisas, depois, também nos levam a discutir coisas relacionadas com o treino e o jogo com outros colegas. A academia da Aspire tinha um lote de treinadores de grande nível, de diversas áreas do globo, e, aos poucos, fui construindo a minha teia de relações. Felizmente, ainda hoje tenho contacto direto com algumas dessas pessoas.

Qual a razão para ter embarcado nessa experiência pela Aspire [2013-2019], no Qatar, com mais de 15 anos de carreira? Valorizar-se mais enquanto técnico?

Sim. Sempre fui uma pessoa insatisfeita. Sempre fui uma pessoa que questionava e que questiono tudo. Entendo a complexidade deste método e sei que há variadíssimas formas de chegar ao sucesso. Podemos trabalhar mal e sermos bem-sucedidos, mas acredito que o sucesso e os resultados são uma consequência de muitas outras coisas. Creio que as probabilidades de ter sucesso ou de fazer as coisas bem aumentam exponencialmente quando nós sabemos o que estamos a fazer e temos uma bagagem e competência para isso.

Quais são as suas principais referências a nível de técnicos?

Tenho sofrido influências de muita gente, de todos estes nomes que mencionei. Revejo-me mais num estilo de jogo declaradamente ofensivo, com a baliza do adversário em mente, atacando com bastante critério e inteligência tática, mas, que acima de tudo, a equipa seja rápida na reação à perda da bola e que tente aproveitar este momento fundamental do jogo. O objetivo claro é recuperar a bola rápido e atacar o adversário, se os jogadores interpretarem o jogo e virem ali uma oportunidade para o fazer.

Académica? Eu achava que precisava de outro tipo de recursos para ter a certeza de que íamos chegar ao caminho que pretendíamos.Recentemente, estou para a história do Grasshopper ao devolver o clube à primeira Liga suíça. Como avalia essa última experiência fora de Portugal, na época passada?

Foi uma experiência fantástica. Para já, era um desafio grande, a pressão era enorme, as expectativas eram elevadíssimas e nós fomos competindo numa segunda Liga em que todos os jogos eram encarados pelos nossos adversários como 'jogos do ano'. Isso fez com que, a cada jornada, tivéssemos que dar o nosso melhor e apresentarmo-nos sempre ao nosso melhor nível porque éramos um alvo a abater. Cada jogo era uma oportunidade para os adversários para terem mais notoriedade e tempo de antena. Felizmente, conseguimos fazer uma época bastante regular. Começámos em primeiro e acabámos em primeiro na última jornada, sempre em primeiros. E isso, naturalmente, trouxe mais dificuldade, num campeonato muito particular jogado a quatro voltas e com oito candidatos em dez equipas, muito nivelado e em que toda a gente podia ganhar pontos a todos. Foi um campeonato extremamente competitivo, que me fez ser melhor. Tínhamos a necessidade de nos regenerarmos após um embate e estarmos preparados para o próximo, a jogar, muitas das vezes, com intervalos de tempo de três dias. Tivemos dois ou três meses em que jogámos 10/11 jogos num mês, o que é extremamente desgastante. Não creio que tivéssemos a melhor equipa do campeonato, mas conseguimos construir a equipa que chegou ao final em primeiro lugar e com todo o mérito.

Depois, passou novamente pelo comando técnico da Académica, pela terceira vez, depois de lá ter passado enquanto jogador também. Desta vez, aconteceu num contexto mais adverso e com menos sucesso [um triunfo em sete jogos]. Que ligação é essa tão especial ao clube de Coimbra?

Acho que não sou um caso único. Tenham vários colegas, ex-jogadores e treinadores que passaram pela Académica e todos sentem que é um clube diferente, tem uma cultura e uma carga histórica bastante acentuada. A Académica sempre teve um matriz de jogo distinta. Fui jogador do clube e cresci, não só como jogador, como também como pessoa. Aquele ambiente tocou-me de forma particular, e, quando me convidaram novamente, tive que olhar para aquilo que me propunham e pensar. No início, disse 'não' à Académica. Tinha acabado de sair da Suíça e não era bem aquilo que eu queria, mas acabei por aceder porque senti que as pessoas me queriam muito no clube, senti que era desejado e achei que podia ajudar a tirar a equipa daquela situação. Mas o clube está numa situação muito difícil, já há alguns anos tenho sentido que está cada vez mais doente, com dificuldades estruturais e chegou a uma fase em que já nem consegue ver de quem é a culpa. Provavelmente, as pessoas que lá estão são mais vítimas da realidade da Académica do que culpadas. O clube está numa situação delicada e já não tem capacidade para atrair talento como já teve há uns anos, o que faz com que tenham dificuldades em manter jogadores, e a renovação de plantéis não é fácil. Cada vez têm menos recursos e menos coisas disponíveis para tornarem o clube mais forte. Têm ainda o problema dos salários em atraso, o que dificulta, e de que maneira, o trabalho dos treinadores de 'sacar' rendimento ou de pôr os jogadores a render, não só aquilo que podem, mas aquilo que ainda não sabem que podem. Fica difícil, e foi por essa razão que eu, ao fim de dois meses, tomei a decisão de transmitir às pessoas que não queria ser um problema e achei que era melhor sair, de forma a que eles pudessem procurar outras soluções. Eu achava que precisava de outro tipo de recursos para ter a certeza de que íamos chegar ao caminho que pretendíamos.

Estamos a falar de um clube histórico, que já vai no quarto treinador da época e que parece estar a caminho da Liga 3, ainda que faltem algumas jornadas. No período em que lá esteve, perante as condições difíceis que descreve e os recursos que teve, sai com a sensação de dever cumprido?

Não tenho dúvidas. Quando uma pessoa dá o que pode e tenta encontrar soluções, no meio de todo o caos e toda a desorganização e falta de recursos, não olho para isso. Muitas das vezes, nós avaliamos os treinadores de forma errada, porque olhamos, sobretudo, aos resultados e à exposição mediática que as pessoas têm, sem pensar os recursos que têm para desenvolver o seu trabalho. Há treinadores que não são realmente os mais notáveis e que são muito competentes, com uma grande qualidade de trabalho. Isso sim, é importante perceber o perfil que tem o treinador, que tipo de competências possui, qual foi o seu percurso, que ideias tem... Há muitos treinadores bons, mas nem todos são os treinadores certos. É preciso encontrar uma base de empatia com as pessoas do clube, de forma a que possam trabalhar e desenvolver o projeto em conjunto, com todo o compromisso. A partir daí, os resultados serão uma consequência. Contínuo a achar que as pessoas sabem que que querem ter resultados, mas esquecem-se de ter um sem número de coisas antecipadamente. Uma delas é um treinador, e não pode ser uma escolha feita do ponto de vista emocional ou impulsivo. Tem de ser uma coisa bem amadurecida, procurar e tentar perceber o que um certo treinador pode aportar ou não, não é só olhar para ganhar o próximo jogo. Temos que perceber que as equipas que têm mais sucesso no mundo são aquelas que têm mais estabilidade nas suas bases, treinadores e direções, isso permite rentabilizar os recursos que têm. Há equipas que, infelizmente, caem neste tipo de urgência de ganhar jogos e que, num momento, têm um determinado perfil de treinador e jogadores, mas que, passado um mês ou dois, já há outro treinador e outro tipo de perfil. Estão sempre a reiniciar um ciclo e nunca conseguem atingir a maturidade deste processo que lhes permita ter um bocadinho mais de confiança, consistência e até ter resultados de forma mais sólida.

O João entra na Académica em setembro [de 2021], fica até novembro, mas refere a hesitação que teve na altura. Nesta fase, se a Académica o voltasse a contactar estaria disposto a aceitar o convite?

Não. Neste momento não faz qualquer sentido. A verdade é que as circunstâncias não mudaram. Contínuo a achar que, para desenvolver um bom trabalho, é preciso ter uma máquina montada. Temos de servir o treinador. Tudo tem de estar alinhado, de forma a que um treinador possa desenvolver o seu trabalho. Não estando, é preferível não dar esse passo.

No futebol, nós somos tão bons quanto o resultado do último jogo. E, a seguir, temos mais um para prepararRecuando até um feito histórico, na época 2004/2005, quando estava no Nacional, conquistou o maior resultado que uma equipa conseguiu no Estádio do Dragão até ao momento em competições nacionais, que foi a goleada por 4-0 sobre o FC Porto. Sente orgulho por, passados tantos anos, continuar a ser o detentor desta marca?

Recordo-me desse jogo e desse feito. Mas, no futebol, nós somos tão bons quanto o resultado do último jogo, e, a seguir, temos mais um para preparar. Não ando à procura de ter resultados históricos. Vejo-me como um treinador que procura trabalhar com qualidade, que tenta ter capacidade para pôr os jogadores a jogar aquilo que podem e que tenta ganhar. Posso não ganhar, mas, no fundo, temos de perceber que estamos numa competição e todas as equipas querem ganhar. Há muitas equipas que, em alguns desafios, jogam para não perder, mas a matriz de jogo da minha equipa é sempre para ganhar. Quanto melhor for organizado o clube e quanto melhores jogadores tiver, mais probabilidades há para ganhar mais jogos. Quem acompanhar com atenção o meu percurso enquanto treinador, percebe que tenho uma proposta de jogo positiva e sempre para ser superior aos adversários, independentemente de muitas vezes não conseguir.

Qual é que considera ter sido o ponto mais alto da sua carreira enquanto treinador?

Tenho diversos momentos. Por exemplo, quando consegui atingir a manutenção da Académica [2003/04], no meu primeiro ano como treinador no clube, estávamos numa situação complicada e tivemos dois ou três jogos comprometedores, mas também tivemos dois ou três jogos de excelência - lembro-me de termos ido ganhar ao Restelo, ao Belenenses [0-5], que também estava envolvido nesta luta pela manutenção. Mais recentemente, refiro a época passada no Grasshopper, que foi excecional. Nós temos memória curta e temos sempre tendência para recordar as coisas que estão mais frescas.

Invertendo a questão, qual foi o momento mais difícil da carreira?

Poderá ter sido este mais recente da Académica [na presente temporada]. Eu levo muito a sério o meu trabalho e não aceito que uma pessoa se entregue à derrota. Nós nunca podemos desistir e eu não sou pessoa de desistir, mas, às vezes, temos de o fazer. Depois de uma reflexão mais profunda, senti que era a melhor decisão para ambos.

Referiu a questão da forma como uma direção escolhe um treinador. Como é que avalia o peso que uma direção pode ter na visão estratégia do treinador? Já passou por casos em que uma direção 'atrapalhou' o seu trabalho?

Há algumas premissas que, para mim, são fundamentais. Não treino contra os meus jogadores, ou seja, os meus jogadores são meus parceiros e trabalhamos juntos para atingir um objetivo comum. Da mesma forma que também não sou o treinador para ir contra aquilo que é o projeto ou a filosofia do clube. Acho que, se as pessoas não estiverem alinhadas nesse caminho, fica mais difícil, não só a relação quotidiana nas questões mais básicas, como se torna mais difícil atingir objetivos. É fundamental nós estarmos alinhados. Recordo-me de dois clubes que, depois de acabar a época, fiz uma reflexão, porque as pessoas tinham outras ideias e queriam outro tipo de caminho, então decidi simplesmente vir embora. Acho que os bons treinadores têm de ser competentes, dominar todas as áreas do treino, mas também têm de perceber que, se não têm o caminho ideal ou a capacidade para criar um contexto, é melhor ir à procura de outro tipo de projeto. Isto para dizer que os treinadores ou têm o contexto ideal, ou então têm de criar o contexto ideal.

Costumo dizer que sou uma pessoa com uma carreira portátil. Tanto posso trabalhar aqui [em Portugal], como posso trabalhar noutra parte do globoEm Portugal, já passou pela I Liga ao serviço de Académica e Nacional. No futuro, ambiciona que tipo de equipas no principal escalão do futebol português?

Tenho capacidade para treinar qualquer equipa em qualquer nível. Tenho em mente que quero treinar equipas que têm recursos como todos os outros, no mínimo, ou seja, eu quero treinar uma equipa que sinta, primeiro, que eu sou a pessoa certa, e gostava de treinar com recursos que me permitissem tirar rendimento dos jogadores, uma vez que fica mais difícil quando não temos os recursos adequados. Portanto, ter uma organização, ter infraestruturas, ter um contexto onde nada nos falte. Não precisamos de ter um contexto de trabalho luxuoso fora do comum.

Se um clube da I Liga o escolhesse para treinador, mesmo que fosse para equipas a lutar pela manutenção, e concretizasse os objetivos, considera que isso podia ser uma espécie de 'porta aberta' para treinar equipas de maior dimensão em Portugal?

Sim, até porque isso leva-nos a refletir sobre o que vai acontecendo no futebol. Há muitas equipas com menos recursos, que não são os tais ditos 'grandes', a fazer épocas excecionais, altamente bem-sucedidas e não ficam nos primeiros quatro ou cinco lugares. Há equipas que têm feito percursos tremendamente bem-sucedidos e não foram necessariamente campeãs. Equipas como o Gil Vicente ou o Estoril, como sendo as equipas que este ano aparecem a ombrear com equipas que tradicionalmente lutam pelos primeiros lugares, têm menos recursos e não têm uma carga histórica, mas ao conseguirem estes resultados tratam-se de época muito bem-sucedidas, se calhar ao contrário de uma equipa que possa ficar em segundo ou terceiro e que tenha projetado e investido para ser campeã, o que acontece frequentemente, porque, no fim, só ganha um.

E no estrangeiro, tem alguma meta em especial a atingir? Sonha com alguma competição em específico?

Eu tenho como ambição trabalhar num clube que tenha um determinado tipo de perfil, o que pode tanto ser em Portugal, como fora. Para já, costumo dizer que sou uma pessoa com uma carreira portátil, ou seja, eu tanto posso trabalhar aqui, como posso trabalhar noutra parte do globo. Tenho realmente uma carreira global, fui-me preparando para isso e isso faz com que eu encare qualquer desafio fora de Portugal com a mesma naturalidade que encaro em Portugal. Creio até que tenho tido experiências lá fora, na sua maioria, bem-sucedidas. Não ganhei muitos títulos porque, infelizmente, nem todos nós temos a possibilidade de agarrar essas oportunidades, mas tenho atendido os objetivos dos clubes por onde passei, de uma forma geral, com alguma consistência. Preferia trabalhar no meu país, porque fica tudo mais fácil. A comunicação é mais fácil e conheço bem a matriz dos nossos campeonatos nacionais. O início do meu trabalho ficaria facilitado porque não tenho de fazer um estudo aprofundado da forma de jogar da equipa, do plantel, dos jogadores, da matriz da Liga, porque isso requer algum foco e energia para poder 'sacar' as informações mínimas e, assim, definir juntamente com a direção todo o caminho que se deve fazer.

Quando não estou a treinar, não deixo de estar ativo. Aliás, é o momento que eu aproveito para questionar coisas e tentar encontrar caminhos diferentesJá não está ao leme de nenhuma equipa desde novembro [de 2021], altura em que saiu da Académica. Tem saudades de treinar?

Não é tanto pelas saudades. Sinto falta do contacto diário com o treino, os elementos do staff, os jogadores. Os jogadores são uma coisa fundamental num jogo de futebol. Por outro lado, isto também me permite a mim trabalhar e refletir sobre o que tenho feito nos projetos anteriores, ou seja, preparar o próximo passo. Quando eu não estou a treinar, não deixo de estar ativo. Aliás, é o momento que aproveito para questionar coisas e tentar encontrar caminhos diferentes. Coloco em mim esta exigência e esta disciplina de trabalhar, de forma regular e densa sobre aquilo que é preparar o próximo desafio.

Quer isso dizer que este período sem clube pode ser uma mais-valia para apresentar melhores resultados futuramente?

É, não tenho dúvidas. É esse o meu objetivo. Há muitos treinadores que, felizmente para eles, não têm esta oportunidade. Já aconteceu comigo noutros momentos da carreira, em que nós por vezes desejamos ter uma pausa para poder questionar e desenhar as coisas de uma forma, que não tem de ser necessariamente diferente, mas pelo menos equacionar a possibilidade de haver algumas mudanças. Acho que as mudanças são importantes. A metodologia de um treinador vai sendo construída ao longo da carreira e vai sofrendo uma evolução. Se não houver esta capacidade ou disponibilidade para equacionar as coisas, fica difícil de o fazer. Fazer mudanças com o campeonato em andamento, com o comboio a andar, é difícil. Nós temos de nos preocupar, não em fazer experiências, mas em ganhar o próximo jogo e temos de trabalhar de forma bastante bem articulada, para potenciar todos os recursos que tenhamos com uma intenção clara: ganhar.

Nestes últimos meses, recebeu alguma proposta tentadora para treinar alguma equipa?

Recebi abordagens. Falei com algumas pessoas que me contactaram para integrar um outro projeto, mas a verdade é que eu achei que não era o melhor momento e o desafio que preciso ou que queria neste momento.

Estamos a falar de projetos em Portugal?

Uma ou outra abordagem, mas mais lá fora.

Sente-se desvalorizado por isso?

Não, de maneira nenhuma. Sinto que é um privilégio estar nesta situação, de poder escolher e esperar por aquilo que eu acho que é o melhor passo possível. Naturalmente que desejamos que amanhã me venham bater à porta da equipa que vai em primeiro lugar em qualquer campeonato do mundo, mas isso praticamente nunca acontece, porque as equipas que estão na frente é por alguma razão, o que seria uma ilusão.

Sendo o João um treinador ambicioso, com 56 anos, 25 dos quais a treinar, imagina-se a treinar até que idade?

Não me imagino a treinar até muito tarde. Isto é uma atividade muito desgastante, e, se nós não estivermos no topo das nossas faculdades, energia, conhecimento, e se não estivermos bem coadjuvados, fica muito mais difícil. Eu vejo o meu papel enquanto líder de um grupo de trabalho como alguém que tem de ter a capacidade para seduzir ou contagiar as pessoas num determinado sentido, e só o posso fazer se estiver nas minhas faculdades. Admito perfeitamente que, quanto mais tenho avançado na minha carreira, melhor estruturado está o meu conhecimento, que passa também a ser alguma sabedoria. Ficamos mais experientes, entendemos melhor a lógica das coisas e a forma como chegar à cabeça e ao coração dos jogadores, conhecemos melhor os atalhos... Tudo isto são vantagens, contrariamente a outras atividades. Quanto mais experientes formos, mais vantagens teóricas poderemos tirar, desde que acompanhemos a evolução das coisas, a tecnologia. Hoje em dia, cada vez temos de ter um conhecimento mais profundo das coisas e cada vez são mais importantes muitas ciências subsidiárias ao treino, que há 25 anos eram áreas em que não havia o conhecimento e o estudos que foram feitos. Estes contributos têm feito com que o futebol tenha evoluído e de que maneira.

Que balanço faz dos seus 25 anos de carreira enquanto treinador de futebol?

Aquilo que eu mais tiro deste percurso é que o caminho ainda está a ser percorrido, que hoje em dia o conhecimento é determinante e, mais do que isso, é conseguir colocá-lo em prática. É tudo muito dinâmico e complexo. Temos de estar preparados para os desafios que vão surgir e eu acredito que o melhor está por vir.

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