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"Em Portugal um dia somos uns génios, outro dia somos uma merda"

Quando falamos de Filipe La Féria de imediato vem à cabeça o teatro, o talento, a arte em Portugal. Com uma personalidade impetuosa por natureza, o famoso encenador orgulha-se do seu caráter exigente e ao mesmo tempo interventivo. "Não tem papas na língua", tal como o próprio refere, facto que lhe trouxe alguns dissabores ao longo da vida. Contudo, não se arrepende de nenhum deles.

Aos 72 anos, Filipe La Féria tem uma energia invejável. Foi no teatro Politeama que encontrámos o encenador com um sorriso no rosto e pronto para uma conversa franca. Velho? Nem pensar. La Féria não gosta de encarar a passagem do tempo com essa perspetiva, até porque no espírito continua a ser um adolescente incorrigível. Desafiador e pronto a ser um eterno rebelde: esta é a faceta mais flagrante do senhor cuja vida se confunde com o teatro. Com a arte. 

Quando era criança já tinha a noção de que a sua vida passaria pelo teatro?

Com certeza, achava que a vida, além de ser efémera, era uma ilusão. Gosto de criar o meu mundo, a minha vida no palco.

Lembra-se da sua estreia no teatro?

Sim, foi com a Palmira Bastos e a Amélia Rey Colaço no São Carlos, numa peça de Gil Vicente. Fazia um pequeno papel e depois fui para a companhia da Amélia Rey Colaço… representei muito, tive 16 anos de uma boa carreira de ator. Mas a minha paixão sempre foi escrever, fazer os cenários e os figurinos. Sou um género de ‘faz-tudo’. Gosto de começar com um papel em branco e fazer tudo.

Acho que a democracia ainda não chegou à cultura em PortugalÉ mais desafiante trabalhar em teatro agora ou sentia mais dificuldades no passado?

É diferente. Tenho 52 anos de teatro, portanto já vivi de tudo. Havia a censura que era uma coisa terrível, acho que a democracia não é nada perfeita, mas viver em ditadura era um horror. Ensaiávamos peças durante meses e depois de um dia para o outro eram proibidas. Hoje há outra espécie de censura, é tudo muito mais sofisticado. Acho que a democracia ainda não chegou à cultura em Portugal e só se faz para uma minoria.

Depois o nosso povo tem muito pouca necessidade, pouca apetência, porque não é preparado nas escolas. Fui professor universitário durante 18 anos e sei bem como as pessoas chegam às universidades, num estado de ignorância… fui professor de comunicação, portanto, preparava futuros jornalistas. Havia sempre um grande desconhecimento e uma grande indiferença pela cultura, pela formação humanista, filosófica, literária e artística. A cultura permanece sempre em lobbys e cada vez são mais apertados. O teatro mais popular é visto sempre como mais inferior em relação aos outros, o que é uma loucura, porque o Shakespeare era popular. O grande teatro deve sempre ser para o grande público.

Sente que a nova geração de artistas tem potencial?

Muito. Tenho revelado quase todos os cantores, artistas e bailarinos. Estão muito bem preparados.

E quais as diferenças que nota ao comparar com a sua geração?

Na minha geração havia uma consciência mais humanista e política. Talvez fôssemos mais exigentes connosco próprios. Contudo, éramos muito menos, então era mais fácil [conseguir um trabalho]. Havia para aí sete atores da minha idade e eram sempre os mesmos. Agora, há uma concorrência muito grande, para um papel há 300 pessoas.

O povo português não gosta de si próprio, portanto, não gosta dos atores. É muito complexado. É pequeninoNão sente que muitos dos artistas têm eventualmente um certo fascínio pela fama?

Se assim for, vão ter todos uma grande desilusão, porque em Portugal um dia somos uns génios, outro dia somos uma merda. O anglo-saxónico, por exemplo, gosta dos atores, nós não temos consideração. ‘Ah, está muito velho, já não interessa’. O povo português não gosta de si próprio, portanto, não gosta dos atores. É muito complexado. É pequenino. Quando morrem [os artistas], nos primeiros dias fala-se, passam-se uns documentários na televisão e diz-se que eram muito bons artistas…. mas depois esquece-se. Até mesmo não falando nos atores, as pessoas estão sempre a desdenhar. A Amália toda a vida foi desdenhada, o Ronaldo é outro exemplo.

O ator arrisca a própria vida nas minhas encenações, trabalha sem redeMuitos dos profissionais que trabalharam consigo destacam a sua enorme exigência. Como lida com este género de apreciação?

Para qualquer profissão na vida temos de ter uma exigência muito grande perante nós próprios e os outros que trabalham connosco. Temos de exigir… o português não é muito exigente, há muito o desenrascar que é um palavra que odeio. O teatro faz-se com muita disciplina, como tudo na vida deve ser feito. Nada pode ser improvisado, tem de se saber ao segundo o que se vai fazer, porque os próprios atores estão em risco de vida. Se um técnico tocar no botão e o palco abrir, morre tudo. O ator arrisca a própria vida nas minhas encenações, trabalha sem rede.

É difícil aplicar essa disciplina aqui em Portugal? Pensa que os artistas estão mais predispostos a esse tipo de sacrifícios?

Comigo têm de estar porque ponho logo as cartas na mesa. Não acredito que um ator possa ter uma grande carreira sem disciplina. Por exemplo, hoje não me apetece nada escrever, estou até cansado, mas tenho de escrever porque daqui depende tudo [afirma enquanto aponta para o seu caderno em cima da secretária]. Tenho de exigir a mim e aos outros essa seriedade. Somos quase atletas da afetividade.

Na cultura pagam-se imensos impostos. Se eu tivesse uma publicação de revistas pornográficas pagava muito menos Em Portugal reconhece-se esse esforço?

Não, nada. O público gosta bastante de mim, isso é verdade. Estive quatro anos no Porto e nunca paguei um hotel, um almoço… se vou ali não pago nada, porque as pessoas gostam de mim. Agora tenho uma relação tensa com o poder, porque não tenho ‘papas na língua’ e digo o que acho que está profundamente mal. Por exemplo, na cultura pagam-se imensos impostos, nós só pagamos e o Estado não dá um tostão. Se eu tivesse uma publicação de revistas pornográficas pagava muito menos, é 6%, nós pagamos 16%, é horrível. Em Portugal não se tem noção do sacrifício que é fazer teatro ou ser artista.

Isso sente-se particularmente na cultura?

A cultura então é completamente desprezada pela política. É um meio de negócio, não há nenhuma sensibilidade cultural, especialmente na classe política de agora. Na classe anterior, o Mário Soares, por exemplo, era um homem muito culto. Acho que nunca fiz uma peça que ele não tivesse visto, mesmo na Casa da Comédia. Hoje em dia não vejo nenhum político com essa sensibilidade.

Se tivesse a oportunidade de ser ministro da Cultura por um dia qual seria a sua primeira decisão?

Seria uma reunião urgente com o ministro da Educação. É uma coisa lógica: como é que a Cultura pode estar divorciada da Educação? Depois há a televisão que é um meio muito perigoso...

É mais fácil estar fazer as ‘Casas dos Segredos’ e umas telenovelas de encher pela bocaPensa que a televisão fornece produtos de qualidade?

Nem pensar. Pagamos fortunas para a televisão pública que fornece conteúdos iguais aos dos outros canais, roçando também às vezes o Correio da Manhã. A televisão pública nem se devia preocupar com as audiências. Eles não apostam mas é na qualidade. É mais fácil estar fazer as ‘Casas dos Segredos’ e umas telenovelas de encher pela boca. A qualidade é mais cara. Nas telenovelas vejo os atores a fazer os pequenos papéis e depois há umas meninas e uns meninos para mostrar o corpo que fazem os grandes papéis. Depois os textos são muito fracos. É muito primário.

A nível financeiro o quotidiano continua a ser uma luta?

É uma grande angústia. O dinheiro só vem através dos bilhetes e que são baratos. Para ver o Aladino em Londres pagam-se 200 libras [229 euros]… aqui pagam-se uns 12 euros. Aliás, esta cantiga de dizerem que acabou a austeridade é uma grande trapalhice.

Nunca devemos nada aos artistas, podemos pagar um pouco mais atrasado, mas pagamos sempreEntão está longe de liquidar as dívidas que fez com o Politeama?

Eu não tenho muitas dívidas, porque tenho um grande público. Nunca devemos nada aos artistas, podemos pagar um pouco mais atrasado, mas pagamos sempre. O que me permite viver é que o Politeama é um teatro com público. Há um público e não é só o de Lisboa. Agora estamos também a usufruir deste ‘boom’ turístico que há em Lisboa. Os meus espetáculos são legendados em espanhol, inglês, alemão e francês e isso atrai bastantes turistas. Criei uma engrenagem que me permite viver, mas com muito trabalho e sacrifício.

Não se arrepende de não ter aproveitado as oportunidades para uma carreira internacional?

Não, mas toda a gente diz que teria um avião para ir de Londres para a Broadway, assim venho de elétrico para Lisboa. Tive essa oportunidade em Londres e tive essa oportunidade há bem pouco tempo para ir para Madrid. Mas eu gosto muito de Portugal. Sou um homem da geração de 25 de Abril, pensava que Portugal ia ser outro Portugal, que nunca será aquele que cada um tem na sua cabeça. Eram épocas em que tinha de deixar muito e sobretudo a minha família e as minhas netas. Sempre fui muito preso e talvez tenha sido um pouco de cobardia.

Sinto por vezes tristeza de viver num país em que o Estado nunca me ajudou e em que há muita inveja E não se sente cansado às vezes?

Cansado de quê? Estaria cansado se estivesse em casa. Não serei nunca um típico reformado, porque tenho muita fantasia e sou um eterno insatisfeito. Essa grande insatisfação também me dá sempre para ir para a frente. E eu sou um homem do futuro. Não me sinto nada com 70 anos. Olho para o espelho e tenho uma aparência no máximo de 50 anos, de cabeça tenho 16 ou 17 anos, acho que ainda estou na adolescência. Sempre fui um adolescente retardado. Sinto por vezes tristeza de viver num país em que o Estado nunca me ajudou e em que há muita inveja.

E quando já cá não estiver o que acha que vai acontecer?

Vão transformar logo o Politeama num hotel.

Como é que gostava que o recordassem?

Já não vou estar cá nessa altura, mas gostava que as minhas netas e a minha filha me recordassem como um bom homem que fez o que pôde. Acho que faço sempre o máximo que posso dentro de grandes limitações.

Se a sua vida fosse uma peça de teatro de que género seria?

Um musical! Mas a vida é sempre trágico-cómica. A vida nunca é totalmente um drama ou uma tragédia, nem uma farsa ou comédia.

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