Do medo à esperança. Ana Isabel Ribeiro administrou a 1.ª vacina cá
Num ano atípico, o Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) foi o ‘berço’ da esperança na luta contra a Covid-19 ao ‘abrir as portas’ para marcar o início da vacinação contra o vírus. Ana Isabel Ribeiro foi a enfermeira escolhida para administrar a primeira vacina e, numa entrevista intimista, recorda o ano em que tantas vezes viu a morte vencer. A vacina é, por isso, a esperança nesta luta contra a Covid-19.
© Filipa Matias Pereira | Notícias ao Minuto
País Covid-19
Ana Isabel Ribeiro estava longe de imaginar que seria o ‘rosto’ da esperança na luta de Portugal contra a Covid-19. Pelas suas mãos, no dia 27 de dezembro de 2020, foi administrada a primeira vacina contra o coronavírus e começou, então, a escrever-se um novo ‘capítulo’ na história desta crise pandémica sem precedentes.
Enfermeira do Serviço de Infecciologia do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), Ana Isabel Ribeiro testemunhou, ao longo do último ano, a solidão, as lágrimas nas despedidas e o medo de quem por ali passou enquanto lutava contra o SARS-CoV-2. Mas, para lá das portas deste Serviço, há mais do que isso. Há perseverança, há união e força para continuar a caminhada, que se adivinha longa.
Há sensivelmente um ano, no Hospital de São João, começava a escrever-se esta ‘narrativa’ sobre a Covid-19. No dia 31 de janeiro, cerca das 21h, dava entrada na unidade hospitalar o primeiro doente com suspeita de infeção pelo novo coronavírus, que, depois de fustigar a China, já se começava a espalhar pela Europa. “Estávamos a organizar protocolos, já tínhamos um plano delineado e correu muito bem. Na verdade, já temos experiência porque somos a referência de algumas doenças emergentes como o Ébola e, por isso, a organização foi mais fácil”.
Apesar de a organização interna dar tranquilidade aos profissionais, o medo do desconhecido continuava a pairar. “O que nos assustou foi o facto de não haver conhecimento sobre o vírus e sobre a doença. Sabíamos os modos de transmissão - a gotícula e o contacto - e a Direção-Geral da Saúde (DGS) já tinha divulgado uma norma sobre o equipamento de proteção individual (EPI) a usar, mas era tudo desconhecido”.
Até março, altura em que foi confirmado o primeiro caso do vírus em território nacional, a ansiedade ia-se avolumando entre os profissionais de saúde. “Havia uma grande rotatividade no nosso Serviço porque entravam os doentes suspeitos, faziam o teste - que nessa altura ainda ia para o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e para o nosso laboratório - e era uma ansiedade esperar por esses resultados”.
Os enfermeiros são do cuidar, do estar, do estabelecer relação empática com o doente. Essa realidade deixava-nos com o sentimento de que não estávamos a ser bons enfermeiros
No dia 2 de março de 2020, a ameaça confirmava-se. Era oficial, o vírus identificado em Wuhan tinha chegado efetivamente a Portugal. Sobretudo nessa fase inicial, em que pouco se sabia sobre o vírus, os enfermeiros tinham de cingir os cuidados ao estritamente necessário, deixando de lado o apoio emocional que estão habituados a prestar. “Nessa altura, não conseguíamos estar muito tempo dentro dos quartos. Era a informação que tínhamos, que devíamos fazer o que era necessário, mas tínhamos de estar com os infetados o menor tempo possível”.
E, como vinca Ana Isabel Ribeiro, “a enfermagem não trabalha assim. Os enfermeiros são do cuidar, do estar, do estabelecer relação empática com o doente. Essa realidade deixava-nos com o sentimento de que não estávamos a ser bons enfermeiros”.
O que mudou?
O Hospital de São João, uma das unidades mais afetadas pela crise pandémica, tem adaptado a resposta face às exigências das diferentes vagas de Covid-19. O Serviço de Infecciologia é exemplo disso mesmo, mostrando continuamente ter uma vertente ‘camaleónica’.
Assim que começaram a chegar os primeiros casos de Covid-19, “os doentes que estavam connosco foram transferidos para outros serviços e ficámos só com doentes infetados com o vírus. No verão, porém, voltámos a ter doentes do foro da infecciologia”, no hiato entre a primeira e a segunda vaga.
Nos corredores deste Serviço, onde a azáfama se vai adensando, a organização acaba por imperar. Na porta de cada quarto, um ‘stop’ acompanhado de um ‘C+’ alerta que no interior há um doente infetado com o novo coronavírus. A ‘ordem’ é parar e só entrar com equipamento de proteção individual (EPI).
Serviço de Infecciologia do São João© Filipa Matias Pereira | Notícias ao Minuto
O semblante dos pacientes espelha um misto de medo e de vontade de vencer o vírus. Já no rosto dos profissionais que trabalham na linha da frente o cansaço é evidente, mas para os doentes há sempre um sorriso, mesmo que escondido pela máscara.
Perante a quantidade de doentes internados, as tarefas vão-se multiplicando e o tempo vai escasseando. O nível de trabalho, como detalha Ana Isabel Ribeiro, "obrigou a repensar os cuidados. Tivemos de trabalhar mais em equipa: enfermeiros, médicos e assistentes operacionais. Tivemos de nos moldar aos cuidados. Tudo teve de ser pensado porque não conseguimos estar em todo o lado ao mesmo tempo”.
Mas não foi só na dinâmica dos serviços hospitalares que a Covid-19 impôs mudanças. A vida pessoal dos profissionais de saúde foi, sobretudo durante os primeiros meses da pandemia, deixada em segundo plano. Enquanto ‘personagens’ com ‘papel principal’ na luta contra o SARS-CoV-2, muitos foram os médicos, enfermeiros e assistentes que se afastaram das famílias como prevenção, temendo poderem ser agentes de transmissão.
Nos primeiros três meses de pandemia, Ana Isabel deixou a família, em Guimarães, para viver num hotel. A necessidade de proteger a família e de continuar a desempenhar a missão enquanto enfermeira sobrepôs-se às saudades. “Nós, enfermeiros, estamos um bocadinho formatados em ocuparmos muito da nossa vida para tratar dos outros. É a nossa missão e eu lido muito bem com isso”, assume.
Um vírus imprevisível
A imprevisibilidade continua a ser uma das características do novo coronavírus, apesar de a grande maioria dos cientistas à escala mundial se dedicar a estudá-lo. “Às vezes os doentes não sentem o quão mal estão e passam rapidamente para um estado crítico. O paciente até pode nem ter falta de ar, mas quando fazemos exames de diagnóstico percebemos que está em estado crítico”, conta, ao recordar os inúmeros casos que lhe passaram pelas mãos.
É muito complicado. Às vezes recebemos doentes e, passadas duas horas, estão nos cuidados intensivos. Não há um padrão, não conseguimos padronizar esta doença, sejam doentes mais novos ou mais velhos
Se noutras patologias, quando se impõe a necessidade de ventilação mecânica, a maioria dos pacientes já não está consciente, na Covid-19 o cenário pode ser muito diferente. “Noutras doenças, quando os doentes têm de ver ventilados, às vezes estão num estado crítico e nem têm noção. Neste caso não, informamos o doente, que ainda liga para a família a avisar que vai ficar em coma induzido e vai ser entubado”.
Num discurso intimista, Ana Isabel confessa que esta realidade é, inclusive, difícil de “gerir a nível emocional para os enfermeiros. É muito complicado. Às vezes recebemos doentes e, passadas duas horas, estão nos cuidados intensivos. Não há um padrão, não conseguimos padronizar esta doença, sejam doentes mais novos ou mais velhos”.
A “solidão, o medo que alguns doentes sentem e as despedidas” são marcas que Ana Isabel dificilmente conseguirá apagar da memória. Apesar de as visitas terem sido proibidas pela maioria das unidades hospitalares, no Serviço de Infecciologia do São João são abertas exceções em casos terminais. “Fazemos um esforço para que os doentes não morram sozinhos ou para que, pelo menos, tenham a visita de quem é mais próximo e tenho um orgulho muito grande nisso. Quando começamos a perceber que os doentes estão em fase terminal, contactamos a família, que vem de imediato. Claro que alguns casos são complicados porque os elementos da família também estão positivos ou em isolamento profilático”, revela.
“Isto da morte e da solidão mexe connosco”, confessa ao recordar o momento em que uma médica lhe perguntou se um doente podia receber uma visita porque estava em fase terminal. “Perguntou-me quem podia subir porque estava cá a mulher e os dois filhos. Pediu-me que escolhesse um deles”. Ana Isabel recorda que não conseguiu controlar a emoção, nem tão-pouco escolher. “Respondi-lhe que não ia escolher ninguém, que iam subir os três e despedir-se do familiar. Há coisas que nunca vou esquecer. Os doentes já não têm relação connosco e vamos privá-los da família, sabendo que nunca mais se vão ver? Não consigo”.
A esperança na ponta da agulha
Ana Isabel Ribeiro foi a enfermeira escolhida para administrar a primeira vacina contra a Covid-19 a António Sarmento, diretor do Serviço de Infecciologia, e, simbolicamente, marcar o ‘virar da página’ daquele ano que todos querem esquecer.
Ana Isabel Ribeiro | António Sarmento© Getty Images
Num sorriso que a máscara esconde mas que os olhos deixam transparecer, Ana Isabel confessa que ficou “surpreendida e ansiosa”, não pelo ato de vacinação, “mas pelo aparato mediático. Sabia que era um momento importante e estava muito contente por ter sido escolhida e por saber que nós, profissionais, íamos estar mais protegidos para conseguirmos, agora, continuar nesta fase complicada. Foi um dia muito especial”, recorda.
É uma das armas que temos para combater esta pandemia
Depois de meses intensos em que viu a Covid-19 roubar pais, irmãos, filhos, em que viu a morte tantas vezes vencer, Ana Isabel não tem dúvidas de que a vacina é a “esperança. É uma das armas que temos para combater esta pandemia”.
Questionada em relação à desconfiança que várias pessoas têm manifestado quanto à vacina, a profissional de saúde explica que o fármaco "não foi desenvolvido num curto espaço de tempo”, contrariamente ao que muitos pensam.
A técnica utilizada, RNA, tem vindo a ser “desenvolvida há muitos anos, e neste momento, todos os investigadores do mundo uniram-se para trabalhar na vacina. Temos de desmistificar isto à população em geral, temos de a tranquilizar. Vão existir reações adversas, sintomatologia que não é tão desejável, mas esta é a única forma que temos de controlar a Covid. Quem tem critérios para a fazer, acho que a deve fazer seguramente e confiar na ciência. No fundo, a escolha para serem os profissionais do país a serem vacinados primeiro também transmite confiança à população. Acho que foi uma excelente escolha”.
Numa altura em que o país supera, continuamente, recordes diários de infeções e de mortes por Covid-19, a enfermeira lembra que a evolução da pandemia depende da “responsabilidade. O bem de uns é o bem de todos. Isto é saúde pública. Todos temos responsabilidade e o que estamos a incumprir pode prejudicar os outros. Quanto mais cumprirmos as restrições, mais cedo nos vamos ver livres de algumas delas”.
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