O Interior ainda é duro para quem o escolhe como morada
O campo ainda é para os citadinos um lugar idílico onde a natureza domina. Há ar puro e silêncio, mas faltam "serviços, emprego e transportes". O interior continua a ser "duro" para quem o escolhe como morada.
País Mudanças
A mudança de famílias de zonas urbanas para o meio rural tem dado os seus passos, embora tímidos e incapazes de contrariar o fluxo migratório negativo do interior do país. Em terras onde os cemitérios são alargados e os postos de correio fecham, a vida está longe da imagem idílica normalmente alimentada pelas pessoas da cidade e pela própria imprensa, contam à agência Lusa famílias que trocaram a cidade pelo campo.
Há um misto de sentimentos quando Hugo e Inês Madeira começam a falar da opção de se terem mudado para a aldeia de Castelo Novo, no Fundão.
Ainda na casa dos 30, mudaram-se em 2016 para aquela que é uma das Aldeias Históricas de Portugal, cheios de sonhos e projetos. Compraram uma quinta abandonada, onde pastavam meia dúzia de cabras. Para trás, Hugo deixou Almada e Inês abdicou de Castelo Branco.
Queriam criar um projeto de agrofloresta nos oito hectares da quinta, transformar uma azenha em alojamento rural e fomentar a produção biológica na aldeia, suportados por um mercado.
Desenvolveram encontros para debater as potencialidades de Castelo Novo na área da agricultura, falaram com a Câmara Municipal do Fundão e com a junta de freguesia.
Mas, depressa, parte dos projetos começaram a perder fôlego. O projeto de agrofloresta teve a candidatura a fundos comunitários recusada, no mercadinho sentiram falta de apoio e a gota de água veio quando assumiram a gestão do bar da praia fluvial e ficou claro um antagonismo com a comunidade local e as intrigas que se foram gerando pela visibilidade que passaram a ter.
"Tivemos a ASAE [Autoridade de Segurança Alimentar e Económica] quatro vezes, denúncias para a Agência Portuguesa do Ambiente, cobras na água, rumores. Tudo", conta Hugo.
Pouco depois veio o incêndio que passou pela Serra da Gardunha e que ainda queimou algumas árvores que já tinham plantado.
"Porque é que ainda estamos cá? Já vai ver", diz Hugo, antes guiar a Lusa até à quinta que compraram, situada junto a uma cascata, alimentada por uma ribeira de água cristalina que nunca seca.
"Por aqui, passam lontras, garças, raposas. Agora percebe porque é que não saímos? É um sítio que nos permite fechar um pouco dessas coisas e ver o que é importante", realça, sublinhando que aquele pedaço de terra, que vai cultivando e dando forma, é aquilo que gostaria de deixar à sua filha, Francisca.
Inês, que ainda se lembra do avô cantar à desgarrada na sua taberna de Monsanto, não esperava uma mudança tão difícil para uma aldeia. "Eu venho de uma aldeia e caí na ilusão de que as pessoas gostavam de nós. Eu pensava que ia para o paraíso".
"Ou têm estofo emocional e meios próprios para investir ou então não vale a pena. Ou então jogar o jogo, dizer que sim a muita coisa, ir à missa, passar graxa", aconselha Hugo Madeira.
Olhando para trás, não faria as coisas da mesma forma. "Entrámos a 200 quilómetros à hora, com muita rotação, mas aqui o limite é 20", lamenta.
Também Diogo Galvão se apercebeu das dificuldades quando se mudou para Monsanto, no concelho de Idanha-a-Nova.
O país estava em plena crise e com a indemnização do despedimento decidiu mudar-se com a sua companheira de então para Monsanto, de onde o pai tinha saído há muitos anos para Lisboa.
Criou um projeto de turismo equestre, uma loja de produtos regionais para chamar a atenção para os novos produtores que despontavam na região e ainda uma pequena unidade de venda de borel.
O negócio corria bem, mas a vida em Monsanto tornou-se complicada, quando deixou de ser "um mero transeunte, quase turista, e se passa a ser um interveniente na sociedade local e não se concorda com algumas políticas".
Tinha várias ideias para aquela que é apelidada da mais portuguesa das aldeias de Portugal, mas sentiu falta de vontade do outro lado e antagonismos na comunidade.
"Estou aqui a chatear-me, a lutar todos os dias, a bater com a cabeça nas paredes, a gastar o que não tenho, para quê? Estás no meio do deserto, sem vontade de fazer nada, morres. Em vez de morrer, afastei-me e desisti", sublinha Diogo, que regressou a Lisboa em 2016.
"Tinham um projeto giro, que faltava em Monsanto. Era o casal com quem a gente se dava na aldeia", lamenta João Roque, de 46 anos, que se mudou com Helena para aquela terra há dez anos, vindos também de Lisboa.
À entrada da sua taberna, o nome de dois 'shots' apontam para "os cinzentos" de se morar ali - "Anti-antena" (a luta contra a instalação de uma antena na torre de Monsanto que valeu a inimizade com uma família local) e "Diabo de Fora" (nome dado a quem não é da aldeia e que a escolhe como morada).
"Somos portugueses, mas é como se fossemos estrangeiros", diz João, que acha a expressão "lindíssima".
Apesar dos cinzentos, a história de João e Helena é marcada pela alegria de poderem morar num sítio onde o horizonte se alonga e onde o ar é completamente distinto de Lisboa - local onde já só vai "como turista, para andar de tuk tuk".
Hoje, tem espaços de alojamento rural na aldeia, uma taberna e outro estabelecimento que se encontra fechado este ano por falta de funcionários numa localidade que terá "mais camas para turistas do que pessoas a morar".
"Estamos fora de onde há mão-de-obra", lamenta João.
Também Tiago Eiras se deparou com a falta de oportunidades, quando se mudou para uma pequena aldeia no concelho de Vila de Rei, onde moram pouco mais de dez pessoas.
Cresceu em apartamentos em Coimbra e não tinha qualquer relação com aquela região, que era a que menos conhecia e a que menos gostava.
No entanto, "surgiu um negócio engraçado" de uma casa para recuperar e decidiu comprá-la juntamente com a sua companheira com a ideia de a transformarem numa segunda habitação.
No final de 2016, Lara, a sua mulher, ficou sem emprego e decidiram mudar-se de Leiria para Vila de Rei.
"Ficámos nove meses", conta à Lusa Tiago Eiras, que continua a aproveitar qualquer oportunidade para estar por ali, onde o final de um dia de trabalho sabe "a férias. Há menos barulho, menos stress, mais contacto com a natureza".
No entanto, houve vários entraves para continuarem a viver em Valadas, explica. Lara não tem carta e isso, numa aldeia de Vila de Rei, dá "uma sensação de isolamento, de se estar numa camisa-de -forças". Para além disso, não encontrou qualquer oportunidade de emprego.
Além da falta de oportunidades de emprego, o comercial de 40 anos aponta também para a falta de "oportunidades de vida".
Para se ver um filme é preciso ir até Torres Novas, não há concertos ou teatro, o transporte público passa apenas uma vez por semana.
"É complicadíssimo para um casal novo estabelecer-se num destes sítios", resume.
Sara Patrão e Rui Martins, de 40 e 51 anos, respetivamente, também chegaram à mesma conclusão quando se mudaram da Graça, em Lisboa, para Envendros, no concelho de Monção.
A mudança já cirandava pela cabeça de Rui há algum tempo, mas a doença da mãe e a necessidade de encontrar um lar mais barato, apressaram a saída de Lisboa para a casa de férias da família que já tinham naquela localidade do Médio Tejo.
Pouco depois de começar a falar com a Lusa, Rui Martins pede para subir ao primeiro andar da moradia e mostra quatro 'routers' pagos. "Somos quatro, se quisermos ter acesso à internet ao mesmo tempo, cada um tem que estar ligado a um 'router' porque aqui só apanha dois [megabytes por segundo - em Lisboa teria 200]".
Logo a seguir dá outro exemplo da dificuldade de viver no interior: "Se quero comprar uns sapatos, tenho de ir a Abrantes. Pago 4,6 euros de portagens, sem contar com o gasóleo. Porque raio é que os meus sapatos devem ficar cinco euros mais caros? É absurdo".
Sara admite que tinha "uma ideia romantizada" acerca da mudança. Hoje, quando os seus amigos da Fnac, onde trabalhava, lhe dizem que tem sorte por viver no interior, apetece dar-lhes "duas lambadas".
"Isto é um pouco como o [cantor António] Variações dizia, só estou bem onde não estou", comenta Rui.
Apesar de tudo, não pensa em sair de Mação, que ali tem oportunidade de "ser pai presente", de poder acompanhar a vida dos filhos e de ficar descansado quando os deixa na escola.
Porém, isso não chega para impedir Rui de tecer um futuro bastante negro para o concelho, onde faltam pessoas, empregos e jovens (os dois filhos - em breve serão três - são as únicas crianças da aldeia).
"Isto é a desertificação total", alerta Rui.
Num país pequeno como Portugal, ainda há zonas onde "tudo fica muito longe", diz.
Algumas famílias já estavam à espera da dureza do campo, outras tiveram que se confrontar com algumas desilusões. Há quem desista, há quem resista e ainda há quem nunca pense em regressar cidade.
"Pede-me para cativar alguém a vir para cá. O que vou dizer?", pergunta Rui. "Não consigo".
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